Capitalismo é idolatria do mercado? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Diversas vezes nos seus escritos, Karl Marx se refere ao capitalismo como um Moloch, um ídolo que exige o mundo inteiro como um sacrifício devido e como um monstruoso deus pagão, que só quer beber néctar na caveira da morte. A crítica da economia política de Marx está recheada de referências à idolatria: Baal, Moloch, Mammon, Bezerro de Ouro. E Marx usa também o conceito de fetichismo (Cf. LOWY, 2007, p. 301). Essas referências inspiraram teólogos da Teologia da Libertação, tais como Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Hugo Assmann e Jung Mo Sung, na elaboração da Teologia da Economia que compreende o capitalismo como idolatria do mercado e do capital, pois o mercado e o capital são endeusados.[2] No altar do mercado, o deus capital sacrifica seres humanos e toda a biodiversidade para continuar reproduzindo os ossos do capital.
Mais do que Marx, Friedrich Engels se dedicou a elucidar as formas históricas e sociais concretas da religião cristã em suas relações sociais na luta de classes. A cristandade foi entendida por Engels não como uma “essência” atemporal, mas como um sistema cultural que experimentou transformações em diferentes períodos históricos. Usando o método do materialismo histórico-dialético, o que explica a sociedade capitalista como movida pela luta de classes, Engels, em A guerra camponesa na Alemanha, entende que o clero – coletividade de sacerdotes - é integrado por um corpo socialmente heterogêneo. Assim diz Engels sobre o clero: “em certas conjunturas históricas, dividia-se internamente segundo sua composição social. É desta forma que durante a Reforma, temos por um lado o alto clero, cúpula da hierarquia feudal, e pelo outro, o baixo clero, que dá sustento aos ideólogos da Reforma e do movimento revolucionário camponês” (ENGELS apud LOWY, 2007, p. 302).
Por Reforma se entende aqui o Movimento Protestante que buscava inicialmente mover a Igreja Católica a fazer autocrítica, iniciado pelo padre Martinho Lutero, que afixou 95 teses na Abadia de Westminster na Alemanha, em 31 de outubro de 1517. Lutero denunciava o comércio das indulgências e propunha a leitura dos textos bíblicos como fundamento primordial para a igreja. Na contramão do Evangelho de Jesus Cristo, a Igreja Católica, em vez de fazer autocrítica, promoveu uma contrarreforma se fechando e empurrando para debaixo do tapete seus graves erros; contrarreforma tocada a partir do Concílio de Trento, que aconteceu entre 1545 e 1563.
Guardadas as devidas e evidentes diferenças, essa análise de Engels se verifica também no Brasil, pois uma pequena parcela do clero, com postura crítica, de protesto e subversiva, está comprometida com a luta por direitos humanos fundamentais dos povos superexplorados: luta pela terra, por moradia, pela superação do racismo estrutural e por muitos outros direitos sociais. Referimo-nos aos sacerdotes que acompanham as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as pastorais sociais (CPT, CIMI, Cáritas, Pastoral Operária, Pastoral dos Migrantes, Pastoral da Criança, Pastoral Afro etc.) e os Movimentos Sociais Populares, inspirando-se na Teologia da Libertação e na leitura bíblica feita pelo Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI)[3]. Mas a maioria dos padres cultiva e fomenta uma religião burguesa, isso por meio de modelos religiosos espiritualizantes, moralistas, com visão funcionalista da sociedade, legitimando, consequentemente, muitas vezes inconscientemente, a opressão e a superexploração perpetrada pelo capital e pela classe dominante. Engels entendeu a distinção entre a religião historicamente constituída e as primeiras comunidades cristãs, que eram formadas basicamente, salvo exceções, por pessoas da classe trabalhadora, entre as quais os ‘escravos do campo’ e os ‘escravos domésticos’[4], camponeses endividados e pessoas livres com direitos negados. O apóstolo Paulo afirma na primeira Carta à comunidade cristã de Corinto a existência do povo trabalhador nas primeiras comunidades cristãs: “Não há entre vós nem muitos sábios aos olhos dos homens, nem muitos poderosos, nem muita gente de família distinta” (1 Coríntios 1,26). O poeta romano Juvenal expõe a crueldade e a brutalidade da escravidão no império romano: “Para sua casa trêmula, era um monstro, nunca tão feliz como quando o torturador estava em ação e algum pobre escravo que roubara um par de toalhas estava sendo marcado com um ferro em brasa (JUVENAL. In: Sátiras 14,18-22)”. “Varas foram quebradas nas costas de uma vítima, a chibata deixou listras de sangue em outra, uma terceira foi açoitada com um chicote de nove tiras. Algumas mulheres pagam um salário anual aos açoitadores” (JUVENAL. In: Sátiras, 6,479-480). No interior do Império Romano, ao viver em comunidade e buscar colocar tudo em comum, as primeiras comunidades cristãs tentaram experimentar um tipo de comunismo primitivo.
Em suas Contribuições à história da cristandade primitiva, Engels assinala uma diferença essencial entre as primeiras comunidades cristãs e o socialismo: “Os cristãos primitivos escolheram deixar sua libertação para depois desta vida enquanto que o socialismo localiza sua emancipação no futuro próximo deste mundo” (ENGELS apud LOWY, p. 2007, p. 303). Na mesma esteira dialética, a Teologia da Libertação apresenta pequena variação dessa perspectiva de Engels, pois aponta que as primeiras comunidades cristãs, ao buscar colocar tudo em comum, já iniciavam a experiência do reino de Deus – sociabilidade sem opressões -, que deve começar no ‘aqui e agora’, mas não termina aqui e nem agora. E, também, pela prática comunitária antiacumulação, as primeiras comunidades cristãs infiltravam no tecido social um germe de subversão à acumulação de riquezas, base da engrenagem do sistema do imperialismo romano. Enfim, Engels trouxe à luz o potencial de protesto e revolucionário de segmentos religiosos, o que abriu pistas para o nascedouro da Teologia da Libertação que, ao usar o materialismo histórico-dialético para analisar a realidade, busca compreender os conflitos e as injustiças sempre considerando a/o trabalhador/a injustiçada/o, colocando em prática a opção pela classe trabalhadora e pelo campesinato.
Enfim, pelo exposto acima, não temos dúvida de que o capitalismo é, sim, na prática, idolatria do mercado e do capital. Portanto, ser pessoa cristã em uma sociedade capitalista implica e exige ser anticapitalista, o que passa necessariamente por viver a vida segundo o princípio da misericórdia, colocando o outro, principalmente o empobrecido como orientador da nossa forma de pensar e agir. Priorizar a luta pelo bem comum, viver em comunidade, superar o egocentrismo e não cair nas seduções do individualismo e nem do “comprar, comprar e acumular, acumular”, pois quem se isola e se reduz a ser consumidor de mercadorias do mercado idolatrado se consome aos poucos e morre lentamente de muitas formas. Viver é belo, mas conviver e lutar pelo bem comum é mil vezes melhor.
Referências.
LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.
22/02/2022.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)
2 – Celebração da Teologia da Libertação na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG. 31/05/15
3 - Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros - 29/7/2020
4 - Teologia Canastreira/Dom Mauro Morelli/2ª Pré-Romaria/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/7ª Parte./05/8/2018
5 - “Os evangélicos farão parte da derrota do Bolsonaro" (Pastor Henrique Vieira). Não ao abuso da fé!
6 - Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.
7 - “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto
8 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro
9- "Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da Bíblia/2021 - Frei Gilvander -13/8/2021
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Cf. ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia. Petrópolis: Vozes, 1989. Cf. também SUNG, Jung Mo. Mercado religioso e mercado como religião. In: Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 34, p. 290-315, abr./jun. 2014. Disponível em http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2014v12n34p290
[4] Eram tratados com menor severidade que os escravos do campo.
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