Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia
Por frei Gilvander Moreira[1]
Partindo de
Belo Horizonte, MG, dia 27 de setembro de 2015, após 27 horas seguidas de
viagem de avião, ônibus e automóvel, cheguei a Santa Terezinha, umas das
cidadezinhas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Por lá,
durante cinco dias vi e ouvi muita coisa que merece ser partilhada em nome da
responsabilidade que temos de honrar o imenso legado espiritual, ético,
profético e revolucionário que Dom Pedro Casaldáliga nos deixou. Vi com os meus
olhos, com a minha cabeça e com o meu coração. Eu já tinha ouvido dizer que a
região de São Félix é conhecida como sertão. Vi que é um sertão diferente do
mineiro e do nordestino e esta foi uma oportunidade de relembrar que não há
sertão, mas sertões e que “os sertanejos são homens fortes”, conforme
reconheceu Euclides da Cunha no livro “Os Sertões”.
O estado do
Mato Grosso era mato grosso, mas não é mais, porque “está sendo fritado em
pouca gordura”: o estado mato-grossense está sendo despelado, desmatado
impiedosamente. Lá, toda a cobertura vegetal que havia sobre a terra,
cobrindo-a como a pele, está sendo arrancada com desmatamentos para dar lugar à
pecuária e depois para as monoculturas da soja e do milho. O agronegócio vai
sendo imposto e com ele resta um rastro de devastação. Nas estradas de chão
batido, muitas carretas transitam levando commodities (grãos para exportação e
para acumular capital) produzidas em solo que vai se tornando cada vez mais
pobre. Nas veredas e no cerrado, ainda existem, é possível ver a presença de
muitas árvores de caju, pequi e buriti. “Onde a gente vê reserva florestal é
terra indígena. O que não é terra indígena já foi tudo derrubado e transformado
em pastagens e depois em lavoura de monocultura. Não sei para que índio precisa
de tanta terra,” comentava uma gaúcha no ônibus da empresa Xavante, empresa com
nome indígena, mas de propriedade de brancos enriquecidos.
Meu sangue
ferveu de ira ao ouvir um trabalhador negro, no pequeníssimo aeroporto da
pequena cidade de Confresa, dizer: “Porcaria de índio.” Ouvi falar que muitos
fazendeiros dizem: “Índio bom é índio morto” e que um grande político – coronel
moderno - foi aplaudido em praça pública ao dizer: “Índio não precisa de terra,
pois não trabalha”. Os mesmos que apunhalam os povos indígenas, a começar pela
linguagem preconceituosa, grilando suas terras, são os mesmos que já gritaram
muitas vezes: “Fora, dom Pedro Casaldáliga!” “Fora, Prelazia de São Félix!” Um
fazendeiro perguntou a um padre recém-chegado para ser missionário na Prelazia:
“O senhor é contra ou a favor do progresso?” E ameaçou: “Se for um dos nossos,
será bem-vindo! Se não ...!”
Meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não
fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das Irmãzinhas de
Jesus e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os
povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado
parte dos seus territórios.” Vi um grande grupo de indígenas delimitando seu
território reconquistado, fazendo cerca na divisa com um megalatifúndio. À
beira de uma estrada federal ainda sem asfalto e toda esburacada, vi ruínas de
um lugarejo que a Força Nacional e o Exército puderam, durante o governo de
Dilma Rousseff, devolver o território aos povos indígenas. “Vieram e disseram
para as famílias que quem aceitasse sair espontaneamente das terras indígenas
ganharia um lote de terra em outra localidade próxima, mas quem não saísse seria
expulso após seis meses. Assim aconteceu,” me informou um agente de pastoral.
Passei ao
lado da Fazenda Rio Preto com uma grande fachada e segurança privada na
entrada. “Essa fazenda tem 100 mil hectares. O dono cria 200 mil bois aí”, me
informaram. Ao lado dessa fazenda está o território do povo indígena Xavante,
com 160 mil hectares para 1400 indígenas. A Força Nacional e o Exército
estiveram na área em 2012 para desentrusar fazendeiros que grilavam terras
indígenas e derrubaram muitas casas de “brancos” que foram construídas na área
indígena. Muitas pessoas dizem que os indígenas têm muita terra, mas não acham
que 100 mil hectares para um só “branco” seja injustiça agrária e social.
O
agronegócio avança como um tsunami, mas deixa atrás de si um rastro de
destruição: áreas devastadas, nascentes exterminadas, terra, ar e águas
envenenadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e trabalhadores submetidos a
situações análogas à de escravidão, isso para citar apenas alguns dos prejuízos
causados pelo agronegócio. Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e
enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande
mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados
nas lavouras vai parar nos cursos d’água. Morre muito peixe e o número de
pessoas doentes cresce assustadoramente.” A UTI mais próxima está em Cuiabá,
MT, ou em Goiânia, GO, distante de 1000 a 1500 Km. Para se tentar salvar alguém
em situação grave só por meio de taxi aéreo, que custa cerca de 15 mil reais.
Acima das
coisas que vi com meus olhos, minha cabeça e meu coração, vi a eloquência do
testemunho espiritual profético de dom Pedro Casaldáliga, que segue irradiando
espiritualidade profética, agora partilhando vida em plenitude, após os últimos
anos em que esteve sentado em uma cadeira, ou deitado em uma cama, na companhia
do mal de Parkinson, de três bons samaritanos – padres agostinianos – e de
três anjos/as que o acompanhavam diariamente. Vi a paixão, a simplicidade, a
humildade e a profecia presente em toda a equipe de agentes de pastoral da
Prelazia de São Félix: leigos/as, freiras, freis, padres e o bispo dom Adriano
Ciocca, todos/as missionários/as, de mãos dadas tocando em frente o legado espiritual
e profético da Prelazia e abraçando os novos/velhos e grandes desafios da hora
presente. Obrigado a todos/as que me
acolheram na fraternidade e por tudo o que me ensinaram em poucos dias de
intensa convivência em retiro na Casa de Pastoral de Santa Terezinha, às
margens do rio Araguaia, onde tive a oportunidade de tomar um banho e
contemplar o irmão boto e toda a sacralidade do ambiente. Não foi por acaso “Trovas ao Cristo Libertador”, escrito por dom Pedro Casaldáliga (e musicado
por Cirineu Kuhn), naquele
lugar sagrado, da fé no Deus da vida, da espiritualidade libertadora, da luta e
da esperança ativa germina, brota e floresce ressurreição!
"Trovas ao Cristo
Libertador"
Dom Pedro Casaldáliga
Olhar ressuscitado, todo o teu Corpo
acompanhando a marcha lenta do povo.
Todo Tu debruçado, como um caminho,
traçando em tua Carne nosso destino.
No azul do Araguaia os roxos medos,
no sol de tua glória nossos direitos.
Sangue vivo no verde das índias matas,
faixas gritando viva a Esperança!
Procissão de oprimidos, rezando lutas,
e Tu, Círio de Páscoa, flor de aleluias.
Páscoa nossa imolado, em Ti enxertamos,
como Tu perseguidos, por Ti triunfamos.
Libertador vencido, vencendo tudo,
companheiro dos pobres, donos do mundo.
Guerrilheiro do Reino, maior guerrilha,
Tua cruz empunhamos em prol da vida.
Nossos mortos retornam, com nossos passos,
em teu Corpo vivente ressuscitados.
Em Ti, cabeça nossa, Libertador,
libertos, libertando, erguemo-nos.
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Sigamos de
cabeça erguida, firmes na luta! Viva a Esperança![2]
25/8/2020.
Obs.:
Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Poema "Trovas ao
Cristo Libertador",
Dom Pedro Casaldáliga, hino da Prelazia de São Félix do Araguaia.
2 - PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA -
Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga - 08/8/2020
3 - Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga:
místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020
4
- "Dom Pedro Casaldáliga vive para sempre em nós" (Padre Júlio
Lancellotti) - Pai Nosso dos Mártires.
5
- Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa
definitiva - 08/8/2020
6
- Missão de Dom Pedro Casaldáliga em Documentário da Verbo Filmes – 2011:
Espiritualidade libertadora
7
- DOM PEDRO CASALDÁLIGA - O PROFETA QUE ESCREVIA POESIAS | Marcelo Barros
8 - Dom Pedro Casaldáliga
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia
pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI/MG (Centro Ecumênico
de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos
Sociais de luta por terra e moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br - www.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora
em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.