Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Fotos: Divulgação / Trabalhadores na Mina de Córrego do Feijão
Sob os ventos natalinos, como biblista, no
nosso texto semanal, eu gostaria de escrever sobre o Nascimento de Jesus Cristo
acontecendo na periferia, no meio dos pastores (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus: o divino no humano”)[2], -
que eram os mais discriminados e injustiçados em uma colônia da sociedade
escravocrata sob o Império Romano -, e sendo acolhido e reverenciado pelos
magos, que não eram astrólogos, mas “vindos do oriente”, de onde o sol nasce e
a vida revigora diariamente, driblaram o rei Herodes, opressor contumaz e
repressor sanguinário, seguiram a “estrela de Belém” e reconheceram Deus no
humano em uma criança nascendo em um acampamento improvisado na periferia da
pequena cidade de Belém. Entre os periféricos, Deus assumiu a condição humana
por amor infinito. Natal: Deus se apaixona tanto pelo humano, que larga o céu e
vem diariamente acampar com os humanos, todos os animais e seres vivos, mas sempre
a partir dos últimos dos últimos (Cf. nosso
artigo “Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!””)[3]. Entretanto, sob
a perseguição de Herodes, José e Maria tiveram que fugir para o Egito para
salvar o menino Deus.
Entretanto, o eloquente clamor de mais
um atingido soou como o choro do Menino Deus, o recém-nascido Jesus de Nazaré,
também espoliado pelos podres poderes da época, e inspirou-me e motivou-me a
falar sobre o Natal, denunciando um grande Herodes da atualidade, a mineradora
Vale S/A, que, com a cumplicidade do Estado, não apenas segue expulsando outros
Josés, Marias e o menino Deus, mas também, em Brumadinho, MG, dia 18 de dezembro de 2020, por volta
das 16h10, matou outro José, chamado
Júlio César de Oliveira Cordeiro, soterrando-o, após submetê-lo a trabalhar
em uma retroescavadeira na Mina de Córrego do Feijão, em condições de altíssimo
risco. Por esse crime, deixou outra “Maria”, uma mulher jovem, viúva com um
‘Jesus’ de apenas três meses nos braços. Por isso ecoaremos aqui o que já foi
denunciado pela Comissão Pastoral da Terra, em Minas Gerais: Mineradora Vale S/A mata mais um trabalhador, em Brumadinho, MG. Até
quando a Vale continuará impune e matando?
A mineradora
Vale S/A, com exploração predatória, assassinou mais um trabalhador na Mina de
Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde foram mortos, enterrados vivos, 272
trabalhadores e trabalhadoras, dia 25 de janeiro de 2019, com 11 corpos ainda
desaparecidos. Após quase dois anos do crime-tragédia cometido pela Vale S/A
com anuência do Estado, um dos maiores desastres ambientais do mundo e o maior
acidente de trabalho do mundo em perdas de vidas humanas, com a cumplicidade do
Estado, a Vale S/A continua matando, todos os dias, de várias formas, gente,
peixes, animais e sacrificando todos os ecossistemas e expulsando comunidades
de seus territórios. Enquanto dirigia uma retroescavadeira, um grande talude de
uma cratera na Mina de Córrego do Feijão desabou, soterrando a retroescavadeira
e o jovem trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos, empregado
da empresa Vale Verde, terceirizada da Vale S/A. Júlio César deixou sua esposa
viúva e órfão uma criança de 3 meses. Nossa solidariedade à esposa e a toda a
família de Júlio César, mais um trabalhador martirizado pela Vale com a
cumplicidade do Estado.
Denunciamos
que a Vale, com a cumplicidade do Estado, continua matando de mil formas. Por
exemplo, vem negando da forma mais vil o fornecimento de água potável a
milhares de famílias que só acham lama em suas torneiras; negligencia quanto ao
direito dos atingidos e das atingidas que se encontram fora do limite de 1 km
do rio Paraopeba, mas que sofrem os mesmos prejuízos e danos dos demais;
suspende indevidamente o auxílio emergencial de quem já possui este direito
assegurado, sem justificativas plausíveis. O consumo de água potável para beber
e cuidar das plantações e animais é um direito garantido pelos Direitos Humanos
em nível internacional, mas o que se apresenta na bacia do Paraopeba é um
cenário de pânico e de terror em várias comunidades, que sentem a cada dia as
crescentes consequências na saúde da população decorrente do consumo de água
com poluentes tóxicos e, provavelmente, com metais pesados. O adoecimento das
pessoas e a insegurança de saber se vão ou não receber o auxílio emergencial no
próximo mês causa uma grande tensão, além de conviverem diariamente com um rio
e um ar contaminado. Doenças respiratórias, gastrointestinais, renais, vários
tipos de câncer, depressão e outras enfermidades de ordem psicológica vêm se
alastrando, comprometendo assim a saúde física e mental da população como um
todo. Isso mata aos poucos. A Vale S/A, privatizada, mata também se
beneficiando da terceirização, pois os trabalhadores que são submetidos aos
trabalhos mais arriscados são os terceirizados.
O local
é uma área de alto risco, não poderia ter ninguém lá. O talude não cai de uma
vez. Sempre há indícios, rachaduras. Não se pode arriscar vidas humanas dessa
forma e é preciso investigar se não há risco de novos rompimentos. O medo e o
desespero das comunidades próximas àquele local é muito grande. Não foi um
acidente conforme informado pela Vale S/A e pela imprensa, foi mais um crime
premeditado e planejado. Em auto de infração de 15 dias atrás está registrado
problemas de segurança de disposição de rejeitos minerários na cratera da Mina
de Córrego do Feijão. Por isso, a Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha
paralisado os trabalhos na área. Os taludes estavam instáveis pela movimentação
de caminhões e gigantes “tratores”? Como foi possível a obtenção de uma licença
simplificada para uma operação tão arriscada e questionada por ambientalistas
que é depositar rejeitos de mineração na cratera da mina de Córrego do Feijão,
oferecendo altíssimos riscos aos trabalhadores e de contaminação dos lençóis
freáticos na região? Assim, a Vale S/A operava na ilegalidade ou em legalidade
suspeita.
É
notória a exaustão da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com mais de 300
anos de mineração. Com tantas crateras e túneis de muitos quilômetros,
inclusive debaixo da cidade de Belo Horizonte, com dezenas de grandes barragens
sinalizando que podem romper a qualquer momento e com vários pequenos abalos
sísmicos e tremores de terra é óbvio que os trabalhadores e as trabalhadoras
são submetidos a trabalharem em situações de altíssimo risco de morte.
Esse
crime e tantos outros crimes-tragédias, como o rompimento da barragem de
“Fundão” em Mariana, MG, (19 mortos), Barragem de Córrego do Feijão em
Brumadinho (272 mortos), rompimento da barragem da Mineradora Herculano em
2014, em Itabirito-MG (03 mortos), a morte do motorista Bruno Henrique do
Amaral Silva, em agosto de 2019, e a morte de dois caminhoneiros em meados de
2019 enquanto transportavam minério para a mineradora Mineral do Brasil,
vizinha à Mina do Córrego do Feijão, revelam como o modelo de exploração
mineral no Brasil é predatório e devastador, também em relação à vida humana. A
geração bilionária de lucro para as empresas do setor, a maior parte sob
controle de investidores estrangeiros, deixa apenas um rastro de desastres,
destruição, miséria e contaminação para as populações locais. Até quando a
Vale, a Samarco e outras mineradoras continuarão impunes e matando?
A
questão é mais ampla do que a revisão de uma política de barragens. O modelo
predatório de mineração a que temos sido submetidos considera a devastação de
territórios e a destruição da vida como um preço a ser pago pela enorme margem
de lucros do negócio. São especuladores também de minas de água e de aquíferos.
Cumpre recordar que com a Lei Kandir, de 1998, isentando do pagamento de
Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMs) as commodities para exportação, a Vale S/A
e as outras mineradoras nem ICMs pagam. Com isso, o Estado de Minas Gerais teve
uma perda de 140 bilhões de reais nos últimos 22 anos. E agora a Vale e o
Governo de Minas Gerais, com a participação das Instituições de Justiça
(Ministério Público de MG, Defensoria de Pública de MG e Tribunal de Justiça de
MG (TJMG)), SEM A PARTICIPAÇÃO dos/as atingidas, estão construindo um Acordão
que será muito bom para a Vale e péssimo para os/as atingidos/as.
Em
Sarzedo, MG, município muito próximo à Mina do Córrego do Feijão, há quase dois
anos, milhares de pessoas, longe dos holofotes da grande mídia corporativa,
convivem com o pesadelo de eventual rompimento de barragens da mineradora
Mineração Itaminas. Com mais de 5 mil pessoas cadastradas na área de inundação
por lama tóxica em caso de rompimento, a continuidade da utilização dessas
estruturas depende hoje do desfecho de uma Ação Civil Pública que até a
presente data não levou a nenhuma obrigação de desativação das barragens, não
foram realizadas perícias que possam minimamente tranquilizar a população. No
dia 18 de dezembro p.p., após a notícia de mais um soterramento causando a
morte do trabalhador Júlio César, milhares de pessoas do Bairro Brasília, em
Sarzedo, que estão sob as barragens da Itaminas, não conseguiram dormir com a
notícia e a chuva forte que aumentava os riscos de desabamento das barragens da
Itaminas. Muitos são os fatores de risco apontados pela população e ignorados
pelas autoridades, mas com o crime ocorrido na tarde de ontem em especial
merece ser lembrado. Um fator de grande risco que vem sendo totalmente
negligenciado até o momento pelas autoridades envolvidas é a existência de taludes
das crateras da Mina da Jangada, de propriedade da Vale S.A, a pouquíssima
distância da Barragem B4 da Itaminas, a barragem que oferece gravíssimo
potencial para ceifar 5 mil vidas em Sarzedo, MG.
Como no
caso da Barragem da Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais, MG, taludes são
estruturas integrantes das crateras de mineração, privadas de estabilidade
devido à enorme atividade que sobre elas impacta, desde a movimentação de
cargas de dezenas de toneladas por “tratores” gigantes a detonações rotineiras.
O senhor Ricardo Moraes e a senhora Rejane Moraes, moradores “expulsos” da sua
casa em Córrego do Feijão, denunciaram em videorreportagem que as explosões com
460 quilos de dinamite na Mina da mineradora MIB, distante apenas 700 metros da
Mina de Córrego do Feijão, pode ter desencadeado o rompimento da Barragem em
Córrego do Feijão dia 25/01/2019. Assim como as barragens, os taludes também
podem se desestabilizar, escorregando lentamente ou, em cenário mais grave,
romper bruscamente, sendo que tal movimentação é capaz de ocasionar um
rompimento das frágeis estruturas de contenção de rejeitos como é a Barragem B4
da mineradora Itaminas em Sarzedo. Ora, se na Mina do Gongo Soco, taludes de
uma cratera distante quase 2 (dois) quilômetros da barragem interditada foram
considerados fatores de risco do chamado “gatilho”, por qual motivo essas
estruturas da Mina Jangada, que estão muito mais perto da B4 não foram
consideradas como de risco à estabilidade e segurança da barragem? A Mina de
Jangada localiza-se nos municípios de Brumadinho e Sarzedo e faz parte do
complexo Paraopeba da Vale S/A. A mina vem sendo lavrada desde 1974, e em 2007
a Vale assumiu suas operações por meio do arrendamento do antigo empreendedor
Minerações Brasileiras Reunidas S.A (MBR).
Além de
suspender de forma preventiva o funcionamento de complexos minerários geradores
de risco para populações, de rever processos de licenciamento, auditar e
fiscalizar com rigor barragens e outras estruturas, é urgente avançar para um
maior empoderamento das comunidades nos seus territórios. Para que se possam
contrastar de maneira efetiva o projeto de morte revelado pela atuação das
mineradoras, é imprescindível que às lutas das comunidades atingidas possam se
somar todos que tenham compromisso com preservação do meio ambiente, a proteção
das condições de vida e a promoção da dignidade, desde lideranças políticas,
sociais e religiosas, passando por movimentos, organizações, entidades,
chegando até as instituições públicas. Todos os crimes praticados por essas
mineradoras, e que seguem impunes, são provas cabais de que para o capital
minerário não há limites em termos de devastação e destruição. Esse modelo
precisa ser interrompido para que centenas de territórios e sua gente deixem de
ser subjugados como tem ocorrido de forma especialmente intensa nas últimas
décadas.
Exigimos de todas as autoridades apuração contundente, julgamento e punição de mais esse crime da Vale S/A. Exigimos também que as autoridades do Estado não deixem a Vale continuar controlando a cena do crime. Nesse contexto de superexploração do capital – Vale S/A, agronegócio, transnacionais e capital financeiro especulativo -, além de acolher o menino Deus nascendo no meio dos atingidos e massacrados, temos também de denunciar os Herodes da atualidade. Em meio à guerra contra os pobres, contra a mãe terra, a irmã água, fauna e flora, oxalá sejamos Natal, presença do divino que revoluciona o humano para ser de fato humano, libertador.
22/12/2020
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Videorreportagem sobre o soterramento de
Júlio César na Mina de Córrego do Feijão, da Vale S/A
2 - Homilia de Dom Vicente em São José
do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale
3 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O
DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020
4 - "Basta de atrocidades! Exigimos
justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020
5 - A verdade está com os/as atingidos
pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020
6 - "Estado, não venda nossa dor
para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20
7 - "A gente se sente esfaqueada
pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020
8 - Gritos dos/das Atingidos/as
interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020
9 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela
Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida
10 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as.
Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20
11 - “Desde nossos avós vivemos aqui.
Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica
no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Natal de Jesus: o divino no humano, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-o-divino-no-humano/
[3] Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!”,
no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-cristo-na-periferia-de-belem-nao-tenham-medo/