É preciso
resistir para existir: 1ª Carta de João.
Por Gilvander Moreira
Estamos em setembro, mês da Bíblia. Em
2019, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais Sociais - Igreja que faz Opção pelos
Pobres - nos convidam para refletirmos a partir da 1ª Carta de João, no Segundo
Testamento Bíblico. Vamos focalizar aqui alguns dos muitos raios de luz da 1ª
Carta de João. Por exemplo, a 1ª Carta de João afirma de forma altaneira: “Quem ama o irmão e a irmã não morre” (1
Jo 3,14-15), passa pela morte, mas ressuscita e vive para sempre. Ao contrário,
quem não ama o próximo e não pratica a justiça já está morto. Aqui percebemos que
era presente nas Comunidades do Discípulo Amado a fina flor da teologia
política refletida no livro da Sabedoria, o último livro do Primeiro Testamento
bíblico a ser escrito, por volta dos anos 50 a 30 antes da era cristã. O sábio
autor do Livro da Sabedoria enfatiza um tipo de fé revolucionária que carrega a
seguinte convicção: os justos viverão para sempre e os injustos serão
aniquilados. “As pessoas injustas se
tornarão para sempre cadáveres desonrados e objetos de zombaria entre os mortos
[...] e a memória delas desaparecerá”
(Sb 4,19). Ao contrário, as pessoas justas, mesmo que tenham vida curta, “quando morrem, condenam os injustos que
continuam a viver” (Sb 4,16). Assim acontece com todos/as os/as
oprimidos/as e injustiçados/as da história: fazem história e permanecem na
história os que são justos e militam na defesa da justiça, no sentido da
construção do bem comum para todos/as sem nenhuma discriminação ou privilégio.
“Os justos vivem para sempre” (Sb
5,15), assevera o sábio autor da Sabedoria, ao fazer teologia política.
“Amar
implica doar a vida pelos outros” (1 Jo 3,16), enfatiza a 1ª Carta de João.
“Prova de amor maior não há que doar a
vida pelo irmão...”, cantam as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
inspiradas nesta Carta de João. Quem é egocêntrico, não se faz solidário a quem
está passando necessidade e não luta por justiça profunda não está amando a
Deus. Impossível amar a Deus se não se ama o próximo. Dizer que ama, mas só com
palavras e com a língua, é conversa fiada. “Ame
com obras e de verdade” (1 Jo 3,18), recomenda o autor da 1ª Carta de João.
Segundo a 1ª Carta de João para praticar
o amor é preciso saber discernir entre o justo e o injusto (1 Jo 4,1-6). A
parte de 1 Jo 2,29-4,6 termina exortando as Comunidades do Discípulo Amado a
saber discernir e não cair nas armadilhas dos opressores e nem nas ciladas dos
falsos profetas. Um critério básico é sugerido pelo autor da 1ª Carta de João:
fala de Deus verdadeiramente quem aceita Jesus Cristo encarnado (1 Jo
4,2) e histórico. Não é mensageiro autêntico de Jesus Cristo quem nega e
não aceita o Jesus histórico, que viveu consolando os aflitos e incomodando os
opressores e, por isso, foi condenado à pena de morte pelos podres poderes da
política, da economia e da religião. Quem volatiliza Jesus Cristo
desencarnando-o e espiritualizando sua práxis e seu ensinamento é falso
profeta, falso pastor, falso sacerdote, não é verdadeiro discípulo de Jesus
Cristo, é anticristo (1 Jo 2,18), é opositor e mentiroso (1 Jo 4,3.6). O
espírito da verdade gera vida e o espírito do erro gera morte. Mais uma vez, a
1ª Carta de João demonstra sintonia com o quarto Evangelho ao afirmar que a
verdade liberta (Jo 8,32) e a mentira mata.
Eis um critério para discernir entre o
que é verdade ou erro/mentira: Todo tipo de religião, pensamento, sistema
político e econômico, ou proposta, que não esteja em sintonia com a prática e o
ensinamento de Jesus não vem de Deus. Logo, se não gerar vida e respeito para
todos/as não está em conformidade com o Evangelho de Jesus Cristo.
Para dizer em uma linguagem da
atualidade latinoamericana, praticar a justiça querida e defendida pelas
Comunidades do Discípulo Amado implica ser justo e ser ativista na construção
da sociedade do Bem Viver e Conviver. Mas o que é Bem Viver e Conviver? Segundo
Alberto Acosta: “O conceito de Bem Viver parte
do princípio de que o fundamento para a vida sustentável e
equilibrada como meio necessário para garantir dignidade e
sobrevivência à espécie humana e do planeta são as relações de produção
autônomas, renováveis e autossuficientes. O Bem viver também se
expressa na articulação política da vida, no fortalecimento de relações
comunitárias e solidárias, assembleias circulares, espaços comuns de
sociabilização, parques, jardins e hortas urbanas, cooperativas de produção e
consumo consciente, comércio justo, trabalho colaborativo e nas diversas formas
do viver coletivo, com diversidade e respeito ao próximo” (ACOSTA, 2016, p.
15-16). Importante ressaltar que “respeito ao próximo”, atualmente, não inclui
apenas as pessoas, mas também todos os seres vivos da biodiversidade. Nós,
seres humanos, somos os animais que mais dependem dos outros seres vivos. Sem
justiça ambiental não pode haver justiça de nenhum tipo: nem social, nem
agrária, nem urbana e nem religiosa.
A justiça querida pelo Deus das
Comunidades do Discípulo Amado não cai pronta do céu, nem se constrói de cima
pra baixo e nem de fora pra dentro, mas se constrói quando os explorados se
reconhecem como explorados e, irmanados, em comunhão, lutam coletivamente para
construir caminhos de libertação, conforme nos diz tão bem Thiago de Mello: “As colunas da injustiça sei que só vão
desabar quando o meu povo, sabendo que existe, souber achar dentro da vida o
caminho que leva à libertação”.
A justiça querida pela 1ª Carta de João
passa pela superação da ‘injustiça agrária’, que é uma avalanche colossal de
conflitos e violências agrárias que se abatem sobre o campesinato brasileiro,
imposta pelo sistema do capital e pelo agronegócio, que usa e abusa da
propriedade capitalista da terra, reproduzindo de forma crescente a
concentração fundiária no país e a consequente expropriação da terra dos
camponeses e camponesas; indígenas e quilombolas; seguindo-se a expulsão deles
e delas para as periferias das cidades e, às vezes, o seu aniquilamento.
A ideia do ‘Deus justo’ deve nos
comprometer com a emancipação humana, o que passa pela construção de uma
sociabilidade que supere as relações sociais do capital, em que todos os seres
humanos e os seres vivos da biodiversidade sejam respeitados e ninguém seja
explorado e injustiçado. É impossível ser autêntico/a seguidor/a de Jesus
Cristo e ser cúmplice do capitalismo, que é uma máquina satânica e diabólica de
moer vidas. O mundo capitalista odeia as pessoas verdadeiramente cristãs e as
persegue.
Para as pessoas exploradas conquistarem
a justiça querida pelo Deus que é justiça, é preciso resistir para existir.
Importa deixar claro que resistir não é violência, é legítima defesa. Diante de
qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista,
que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas resistir diante das opressões
perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus e do Deus da Vida.
Em uma sociedade desigual, com tanta violência institucional e empresarial, com
tanta alienação religiosa, fazer desobediência civil, econômica, política e
religiosa é um caminho a ser seguido por nós, discípulos e discípulas de Jesus,
o rebelde de Nazaré. Enfim, essa é uma leitura que fazemos hoje da 1ª Carta de
João: mensagem libertadora diante de tantos espiritualismos e desencarnações da
fé cristã, atualmente.
Referências
Bibliográficas
ACOSTA,
Alberto. O Bem Viver. - Uma
oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Ed. Elefante, 2016.
CLAUCK, H. Opositores
de dentro. - Tratamento dos separatistas na primeira epístola de João. In: Concilium, n° 6, p. 758-767. Petrópolis:
Vozes, 1988.
Belo Horizonte, MG, 17/9/2019.
Obs.: Quem quiser
adquirir o Livrinho Texto-base do mês da Bíblia, do CEBI-MG, de 2019 – A
Comunhão entre Deus e Nós e como subtítulo Uma leitura
da Primeira Carta de João feita pelo CEBI-MG – entrar em contato
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