O
‘oba-oba’ religioso é opressor: 1ª
Carta de João.
Por frei Gilvander Moreira[1]
No Brasil atual, sem interpretação
sensata e libertadora dos textos bíblicos, afundamos cada vez mais em
fundamentalismos, em moralismos e em esquizofrenia religiosa. O caminho para
resgatarmos a construção de uma sociedade justa, solidária, democrática e sustentável
ecologicamente passa também pela leitura e interpretação da Bíblia a partir dos
injustiçados. Setembro é também mês da Bíblia, porque dia 30 de setembro é dia
de São Jerônimo, o tradutor da Bíblia da língua hebraica, aramaica e grega para
o latim, que era a língua do povo durante o império romano. Jerônimo colocou a
Bíblia na língua do povo, porque pensava que os textos bíblicos precisavam ser
democratizados, não podiam ser privatizados pelo clero. Em 2019, somos
convidados a ler e refletir a partir da 1ª Carta de João. Vamos chamar a
atenção para alguns dos muitos raios de luz e de força divina que irradiam a
partir da 1ª Carta de João.
“Quem
comete pecado pertence ao diabo. (...) O
Filho de Deus se manifestou para destruir as obras do diabo” (1 Jo 3,8),
afirma a 1ª Carta de João. Em um contexto povoado por religiões imperiais,
mistéricas e pagãs, com muitas correntes de pensamento que justificavam as
violências e a desigualdade social, compreender que as pessoas pertenciam a
Deus ou ao diabo poderia soar como visão dualista. Isso faz caricatura da
complexidade da realidade social. Atualmente ainda é pior, pois o contexto é de
avalanche de neopentecostalismo, dentro e fora da igreja católica, com teologia
da prosperidade e redução da religião cristã a autoajuda. “Anjos e diabos voando por todo lado”, dizem os que interessam
desviar o foco das reais causas das doenças, das injustiças e das violências
que se abatem diariamente sobre o povo injustiçado. As igrejas neopentecostais, com grande inserção nos
instrumentos midiáticos, usam e abusam do nome de Deus para surrupiar muito
dinheiro do povo aflito no meio das injustiças sociais. Isso se faz via
teologia da prosperidade, com missas e cultos de cura aparente, privatizando a
fé e reduzindo Deus a um quebra-galho para resolver problemas pessoais
que são frutos da superexploração promovida pelo capitalismo e pelos
capitalistas.
No entanto, a 1ª Carta de João alerta
para ninguém cometer pecado, ou seja, não agir de forma pecaminosa. A Carta
enfatiza também que Jesus Ressuscitado, o Filho do Homem, destrói as obras do
pecado. Diz ‘as obras’ e não o diabo em si. O diabo (satã, em hebraico e diabolos,
em grego) não significa o poder do mal de forma abstrata como se existisse um
deus que só maquina o mal, fazendo oposição ao Deus da Vida. Provavelmente a 1ª
Carta de João quer alertar que o espírito que é soprado pelo sistema opressor
da época levava muitas pessoas a agir agredindo os irmãos e as irmãs e ferindo
a fraternidade. Etimologicamente a palavra ‘diabolos’
significa o contrário de ‘simbolos’.
‘Diabólico’ é tudo o que desune, desarticula e infernaliza as relações sociais
e humanas. Por outro lado, ‘simbólico’ é tudo o que une, congrega e irmana para
a prática de uma fraternidade real e concreta nas relações sociais. O simbólico
e o diabólico não estão fora da realidade histórica, estão em nós, como
integrantes da condição humana, mas estão principalmente nas estruturas e
instituições opressoras da sociedade. Por exemplo, o Estado (poderes executivo,
legislativo e judiciário), o poder midiático, o sistema do capital, o
agronegócio e as mineradoras, ao reproduzirem as relações sociais que sustentam
a desigualdade, estão sendo, na prática, satânicos e diabólicos. Por outro
lado, os movimentos sociais populares e todas as forças vivas da sociedade, ao
lutarem por direitos sociais e alimentarem a convivência comunitária, pautada
em relações de igualdade, de equidade e de reciprocidade, estão sendo, na
prática, simbólicos. Logo, não podemos ler a 1ª Carta de João espiritualizando
os conflitos reais. Enfim, o autor da 1ª Carta de João exorta para a prática da
justiça e de tudo o que alimenta uma fraternidade real. E alerta contra os
perigos de práticas que corroem a fraternidade social. No artigo “Opositores de
dentro – tratamento dos separatistas na Primeira Epístola de João”, Hans-Josef
Clauck analisa que: “A descoberta da
identidade e a segurança da identidade de um grupo ameaçado em sua existência
vai fazer com que haja simultaneamente uma concentração numa comunicação
interna altamente desenvolvida e um isolamento para fora”[2]
(CLAUCK, 1988, p. 766).
“Quem
nasce de Deus não comete pecado” (1 Jo 3,9), diz a 1ª Carta de João. Aqui,
a 1ª Carta de João chama nossa atenção para a importância das nossas raízes e
da nossa origem. Somos devedores dos nossos pais, avós e de todos os nossos
ancestrais até chegar a Deus. A 4ª palavra do Decálogo, a Carta Magna do povo
da Bíblia, diz: “Honre seu pai e sua mãe”
(Ex 20,12). Deus é nosso Pai maior e primeiro. Logo, não podemos esquecer essa
origem. Para as Comunidades do Discípulo Amado não há como ser morno ou neutro:
ou se é filho/a de Deus ou, filho/a do diabo. O critério é a prática da justiça
justa, verdadeira. De forma enfática, repetindo várias vezes, o autor de 1ª
Carta de João alerta: “Toda pessoa que
não pratica a justiça, isto é, que não ama o seu irmão, não é de Deus” (1
Jo 3,10). Entre praticar a justiça e amar, praticar a justiça vem em primeiro
lugar. O autor da 1ª Carta de João associa umbilicalmente “amar o irmão/irmã” à prática da justiça. Com isso, a 1ª Carta de
João afirma que amar o próximo não é questão só de querer bem ou de sentimento,
mas implica prática da justiça, não qualquer justiça, mas a justiça que
liberta os injustiçados, o que passa pela superação de todo e qualquer
preconceito e discriminação. Enfim, romper com o pecado implica praticar o amor integral.
Na 1ª Carta de João há uma ênfase sobre
praticar o amor (1 Jo 3,11-24). “Amar uns
aos outros” (1 Jo 3,11.23) era a mensagem anunciada nas Comunidades do
Discípulo Amado desde a sua origem. Mais uma vez repete-se que amar é questão
de prática. A 1ª Carta de João recorda um paradigma bíblico: Caim matou seu
irmão, porque suas obras eram más (1 Jo 3,12). O fratricida Caim “era do maligno” (1 Jo 3,12). A falta de
compromisso com os pobres era algo muito grave que estava acontecendo ao redor
das comunidades e também estava seduzindo membros das comunidades. Os omissos
são considerados homicidas (1 Jo 3,15.17). Por isso, a ênfase na prática da
justiça e do amor ao próximo. O autor da 1ª Carta de João é incansável em
reafirmar a necessidade do amor mútuo: repete-se três vezes (1 Jo 2,7-11;
3,11-24; 4,7 - 5,3) e insiste na sua prática. Algo semelhante com o que se
observa atualmente com o povo das igrejas cristãs no Brasil. Fala-se em demasia
sobre Deus, canta-se muito nos cultos e celebrações religiosas, louva-se à
exaustão, porém, na prática, por exemplo, ao votar, eleva-se ao poder político
pessoas fascistas e reprodutoras do sistema de desigualdade social. Isso é o
cúmulo do absurdo e da injustiça. O autor da 1ª Carta de João revela sua
indignação diante da hipocrisia de muitas pessoas que se diziam filhas e filhos
de Deus, seguidores de Jesus Cristo. A 1ª Carta de João repudia o ‘oba-oba’ religioso e os espiritualismos
desencarnadores da fé cristã. Para as Comunidades do Discípulo Amado, a
dimensão social da fé é coluna mestra do Evangelho de Jesus Cristo.
“Não
estranhem, irmãos – e irmãs -, se o
mundo odeia vocês” (1 Jo 3,13), alerta a 1ª Carta de João. Com esta
exortação, é óbvio que o autor da 1ª Carta de João consola a comunidade e não
se refere ao mundo físico geográfico e nem a todas as pessoas do mundo.
Refere-se a ‘mundo’ enquanto o
sistema imperial e o tipo de organização social que se baseia em relações de
privilégio, de desigualdade social, de meritocracia e hierarquização. Para esse
tipo de mundo se manter de pé e se reproduzir, é preciso que a ideologia
dominante, seja ela política, econômica, religiosa ou cultural, não seja
questionada por quem acredita na construção de um mundo com organização social
pautada na justiça, na ética, na equidade, no amor ao próximo e na dignidade da
pessoa humana. As pessoas verdadeiramente cristãs incomodavam muito esse ‘mundo’ alimentador de desigualdade
social. Por isso, eram odiadas. As comunidades do evangelista Mateus também
experimentavam a incompreensão e a perseguição de seus membros. Por essa razão,
o evangelista Mateus animava seus integrantes, alertando: “Felizes os que – no bom caminho
- são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
Felizes vocês, se forem insultados e perseguidos, e se disserem todo tipo de
calúnia contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e contentes, porque será
grande para vocês a recompensa nos céus. Do mesmo modo perseguiram os profetas
que vieram antes de vocês” (Mt 5,10-12).
Referência.
CLAUCK,
H. Opositores de dentro. - Tratamento
dos separatistas na primeira epístola de João. In: Concilium, n° 6, p. 758-767. Petrópolis: Vozes, 1988.
Belo Horizonte, MG, 10/9/2019.
Obs.: Quem quiser
adquirir o Livrinho Texto-base do mês da Bíblia, do CEBI-MG, de 2019 – A
Comunhão entre Deus e Nós e como subtítulo Uma leitura
da Primeira Carta de João feita pelo CEBI-MG – entrar em contato
com CEBI-MG: Secretaria Estadual CEBI-MG
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Sala 1215 – Centro – Belo Horizonte/MG
CEP: 60.160-011 – Telefone: (31) 3222 1805 – E-mail : secretariado@cebimg.org.br
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[1]
Frei e
padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e
bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em
Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com– www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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