terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander

Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Fotos: Divulgação / Trabalhadores na Mina de Córrego do Feijão

Sob os ventos natalinos, como biblista, no nosso texto semanal, eu gostaria de escrever sobre o Nascimento de Jesus Cristo acontecendo na periferia, no meio dos pastores (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus: o divino no humano”)[2], - que eram os mais discriminados e injustiçados em uma colônia da sociedade escravocrata sob o Império Romano -, e sendo acolhido e reverenciado pelos magos, que não eram astrólogos, mas “vindos do oriente”, de onde o sol nasce e a vida revigora diariamente, driblaram o rei Herodes, opressor contumaz e repressor sanguinário, seguiram a “estrela de Belém” e reconheceram Deus no humano em uma criança nascendo em um acampamento improvisado na periferia da pequena cidade de Belém. Entre os periféricos, Deus assumiu a condição humana por amor infinito. Natal: Deus se apaixona tanto pelo humano, que larga o céu e vem diariamente acampar com os humanos, todos os animais e seres vivos, mas sempre a partir dos últimos dos últimos (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!””)[3]. Entretanto, sob a perseguição de Herodes, José e Maria tiveram que fugir para o Egito para salvar o menino Deus.

Entretanto, o eloquente clamor de mais um atingido soou como o choro do Menino Deus, o recém-nascido Jesus de Nazaré, também espoliado pelos podres poderes da época, e inspirou-me e motivou-me a falar sobre o Natal, denunciando um grande Herodes da atualidade, a mineradora Vale S/A, que, com a cumplicidade do Estado, não apenas segue expulsando outros Josés, Marias e o menino Deus, mas também, em Brumadinho, MG, dia 18 de dezembro de 2020, por volta das 16h10, matou outro José, chamado Júlio César de Oliveira Cordeiro, soterrando-o, após submetê-lo a trabalhar em uma retroescavadeira na Mina de Córrego do Feijão, em condições de altíssimo risco. Por esse crime, deixou outra “Maria”, uma mulher jovem, viúva com um ‘Jesus’ de apenas três meses nos braços. Por isso ecoaremos aqui o que já foi denunciado pela Comissão Pastoral da Terra, em Minas Gerais: Mineradora Vale S/A mata mais um trabalhador, em Brumadinho, MG. Até quando a Vale continuará impune e matando?



A mineradora Vale S/A, com exploração predatória, assassinou mais um trabalhador na Mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde foram mortos, enterrados vivos, 272 trabalhadores e trabalhadoras, dia 25 de janeiro de 2019, com 11 corpos ainda desaparecidos. Após quase dois anos do crime-tragédia cometido pela Vale S/A com anuência do Estado, um dos maiores desastres ambientais do mundo e o maior acidente de trabalho do mundo em perdas de vidas humanas, com a cumplicidade do Estado, a Vale S/A continua matando, todos os dias, de várias formas, gente, peixes, animais e sacrificando todos os ecossistemas e expulsando comunidades de seus territórios. Enquanto dirigia uma retroescavadeira, um grande talude de uma cratera na Mina de Córrego do Feijão desabou, soterrando a retroescavadeira e o jovem trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos, empregado da empresa Vale Verde, terceirizada da Vale S/A. Júlio César deixou sua esposa viúva e órfão uma criança de 3 meses. Nossa solidariedade à esposa e a toda a família de Júlio César, mais um trabalhador martirizado pela Vale com a cumplicidade do Estado.



Denunciamos que a Vale, com a cumplicidade do Estado, continua matando de mil formas. Por exemplo, vem negando da forma mais vil o fornecimento de água potável a milhares de famílias que só acham lama em suas torneiras; negligencia quanto ao direito dos atingidos e das atingidas que se encontram fora do limite de 1 km do rio Paraopeba, mas que sofrem os mesmos prejuízos e danos dos demais; suspende indevidamente o auxílio emergencial de quem já possui este direito assegurado, sem justificativas plausíveis. O consumo de água potável para beber e cuidar das plantações e animais é um direito garantido pelos Direitos Humanos em nível internacional, mas o que se apresenta na bacia do Paraopeba é um cenário de pânico e de terror em várias comunidades, que sentem a cada dia as crescentes consequências na saúde da população decorrente do consumo de água com poluentes tóxicos e, provavelmente, com metais pesados. O adoecimento das pessoas e a insegurança de saber se vão ou não receber o auxílio emergencial no próximo mês causa uma grande tensão, além de conviverem diariamente com um rio e um ar contaminado. Doenças respiratórias, gastrointestinais, renais, vários tipos de câncer, depressão e outras enfermidades de ordem psicológica vêm se alastrando, comprometendo assim a saúde física e mental da população como um todo. Isso mata aos poucos. A Vale S/A, privatizada, mata também se beneficiando da terceirização, pois os trabalhadores que são submetidos aos trabalhos mais arriscados são os terceirizados.

O local é uma área de alto risco, não poderia ter ninguém lá. O talude não cai de uma vez. Sempre há indícios, rachaduras. Não se pode arriscar vidas humanas dessa forma e é preciso investigar se não há risco de novos rompimentos. O medo e o desespero das comunidades próximas àquele local é muito grande. Não foi um acidente conforme informado pela Vale S/A e pela imprensa, foi mais um crime premeditado e planejado. Em auto de infração de 15 dias atrás está registrado problemas de segurança de disposição de rejeitos minerários na cratera da Mina de Córrego do Feijão. Por isso, a Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha paralisado os trabalhos na área. Os taludes estavam instáveis pela movimentação de caminhões e gigantes “tratores”? Como foi possível a obtenção de uma licença simplificada para uma operação tão arriscada e questionada por ambientalistas que é depositar rejeitos de mineração na cratera da mina de Córrego do Feijão, oferecendo altíssimos riscos aos trabalhadores e de contaminação dos lençóis freáticos na região? Assim, a Vale S/A operava na ilegalidade ou em legalidade suspeita.



É notória a exaustão da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com mais de 300 anos de mineração. Com tantas crateras e túneis de muitos quilômetros, inclusive debaixo da cidade de Belo Horizonte, com dezenas de grandes barragens sinalizando que podem romper a qualquer momento e com vários pequenos abalos sísmicos e tremores de terra é óbvio que os trabalhadores e as trabalhadoras são submetidos a trabalharem em situações de altíssimo risco de morte.

Esse crime e tantos outros crimes-tragédias, como o rompimento da barragem de “Fundão” em Mariana, MG, (19 mortos), Barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho (272 mortos), rompimento da barragem da Mineradora Herculano em 2014, em Itabirito-MG (03 mortos), a morte do motorista Bruno Henrique do Amaral Silva, em agosto de 2019, e a morte de dois caminhoneiros em meados de 2019 enquanto transportavam minério para a mineradora Mineral do Brasil, vizinha à Mina do Córrego do Feijão, revelam como o modelo de exploração mineral no Brasil é predatório e devastador, também em relação à vida humana. A geração bilionária de lucro para as empresas do setor, a maior parte sob controle de investidores estrangeiros, deixa apenas um rastro de desastres, destruição, miséria e contaminação para as populações locais. Até quando a Vale, a Samarco e outras mineradoras continuarão impunes e matando?

A questão é mais ampla do que a revisão de uma política de barragens. O modelo predatório de mineração a que temos sido submetidos considera a devastação de territórios e a destruição da vida como um preço a ser pago pela enorme margem de lucros do negócio. São especuladores também de minas de água e de aquíferos. Cumpre recordar que com a Lei Kandir, de 1998, isentando do pagamento de Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMs) as commodities para exportação, a Vale S/A e as outras mineradoras nem ICMs pagam. Com isso, o Estado de Minas Gerais teve uma perda de 140 bilhões de reais nos últimos 22 anos. E agora a Vale e o Governo de Minas Gerais, com a participação das Instituições de Justiça (Ministério Público de MG, Defensoria de Pública de MG e Tribunal de Justiça de MG (TJMG)), SEM A PARTICIPAÇÃO dos/as atingidas, estão construindo um Acordão que será muito bom para a Vale e péssimo para os/as atingidos/as.

Em Sarzedo, MG, município muito próximo à Mina do Córrego do Feijão, há quase dois anos, milhares de pessoas, longe dos holofotes da grande mídia corporativa, convivem com o pesadelo de eventual rompimento de barragens da mineradora Mineração Itaminas. Com mais de 5 mil pessoas cadastradas na área de inundação por lama tóxica em caso de rompimento, a continuidade da utilização dessas estruturas depende hoje do desfecho de uma Ação Civil Pública que até a presente data não levou a nenhuma obrigação de desativação das barragens, não foram realizadas perícias que possam minimamente tranquilizar a população. No dia 18 de dezembro p.p., após a notícia de mais um soterramento causando a morte do trabalhador Júlio César, milhares de pessoas do Bairro Brasília, em Sarzedo, que estão sob as barragens da Itaminas, não conseguiram dormir com a notícia e a chuva forte que aumentava os riscos de desabamento das barragens da Itaminas. Muitos são os fatores de risco apontados pela população e ignorados pelas autoridades, mas com o crime ocorrido na tarde de ontem em especial merece ser lembrado. Um fator de grande risco que vem sendo totalmente negligenciado até o momento pelas autoridades envolvidas é a existência de taludes das crateras da Mina da Jangada, de propriedade da Vale S.A, a pouquíssima distância da Barragem B4 da Itaminas, a barragem que oferece gravíssimo potencial para ceifar 5 mil vidas em Sarzedo, MG.

Como no caso da Barragem da Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais, MG, taludes são estruturas integrantes das crateras de mineração, privadas de estabilidade devido à enorme atividade que sobre elas impacta, desde a movimentação de cargas de dezenas de toneladas por “tratores” gigantes a detonações rotineiras. O senhor Ricardo Moraes e a senhora Rejane Moraes, moradores “expulsos” da sua casa em Córrego do Feijão, denunciaram em videorreportagem que as explosões com 460 quilos de dinamite na Mina da mineradora MIB, distante apenas 700 metros da Mina de Córrego do Feijão, pode ter desencadeado o rompimento da Barragem em Córrego do Feijão dia 25/01/2019. Assim como as barragens, os taludes também podem se desestabilizar, escorregando lentamente ou, em cenário mais grave, romper bruscamente, sendo que tal movimentação é capaz de ocasionar um rompimento das frágeis estruturas de contenção de rejeitos como é a Barragem B4 da mineradora Itaminas em Sarzedo. Ora, se na Mina do Gongo Soco, taludes de uma cratera distante quase 2 (dois) quilômetros da barragem interditada foram considerados fatores de risco do chamado “gatilho”, por qual motivo essas estruturas da Mina Jangada, que estão muito mais perto da B4 não foram consideradas como de risco à estabilidade e segurança da barragem? A Mina de Jangada localiza-se nos municípios de Brumadinho e Sarzedo e faz parte do complexo Paraopeba da Vale S/A. A mina vem sendo lavrada desde 1974, e em 2007 a Vale assumiu suas operações por meio do arrendamento do antigo empreendedor Minerações Brasileiras Reunidas S.A (MBR).

Além de suspender de forma preventiva o funcionamento de complexos minerários geradores de risco para populações, de rever processos de licenciamento, auditar e fiscalizar com rigor barragens e outras estruturas, é urgente avançar para um maior empoderamento das comunidades nos seus territórios. Para que se possam contrastar de maneira efetiva o projeto de morte revelado pela atuação das mineradoras, é imprescindível que às lutas das comunidades atingidas possam se somar todos que tenham compromisso com preservação do meio ambiente, a proteção das condições de vida e a promoção da dignidade, desde lideranças políticas, sociais e religiosas, passando por movimentos, organizações, entidades, chegando até as instituições públicas. Todos os crimes praticados por essas mineradoras, e que seguem impunes, são provas cabais de que para o capital minerário não há limites em termos de devastação e destruição. Esse modelo precisa ser interrompido para que centenas de territórios e sua gente deixem de ser subjugados como tem ocorrido de forma especialmente intensa nas últimas décadas.

Exigimos de todas as autoridades apuração contundente, julgamento e punição de mais esse crime da Vale S/A. Exigimos também que as autoridades do Estado não deixem a Vale continuar controlando a cena do crime. Nesse contexto de superexploração do capital – Vale S/A, agronegócio, transnacionais e capital financeiro especulativo -, além de acolher o menino Deus nascendo no meio dos atingidos e massacrados, temos também de denunciar os Herodes da atualidade. Em meio à guerra contra os pobres, contra a mãe terra, a irmã água, fauna e flora, oxalá sejamos Natal, presença do divino que revoluciona o humano para ser de fato humano, libertador.

22/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Videorreportagem sobre o soterramento de Júlio César na Mina de Córrego do Feijão, da Vale S/A

2 - Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale

3 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020

4 - "Basta de atrocidades! Exigimos justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020

5 - A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020

6 - "Estado, não venda nossa dor para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20

7 - "A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020

8 - Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020

9 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida

10 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20

11 - “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Natal de Jesus: o divino no humano, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-o-divino-no-humano/

[3] Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!”, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-cristo-na-periferia-de-belem-nao-tenham-medo/

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas. Por Frei Gilvander

 Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Você já percebeu que em todas as cidades há carroceiros e carroceiras? Você já ficou sabendo que nas origens e no desenvolvimento de todas as cidades estão os/as carroceiros/as? Você sabe que o Povo Carroceiro é Povo e Comunidade Tradicional protegida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização das Nações Unidas (ONU)? Você sabe que parte dos/as carroceiros/as são ciganos, outro Povo Tradicional com cultura milenar? Você sabe que em Montes Claros. MG, estima-se a existência de 3 mil carroceiros/as e que em Belo Horizonte e Região Metropolitana há mais de 10 mil carroceiros? Pergunto, porque muitas vezes, cegados pela ideologia dominante, não vemos a beleza da imensa diversidade cultural existente no nosso país. Como amar, admirar e respeitar se não conhecemos? Em todo o Brasil, deve ter alguns milhões de carroceiros/as. Belo Horizonte, por exemplo, começou ao lado de um curral Del Rey e entre os/as trabalhadores/as que foram imprescindíveis na construção da capital mineira, estão os/as carroceiros/as. Porém, com as cidades se tornando cada vez mais cidades-empresas, o processo de asfixia e de encurralamento da imensa diversidade cultural segue atropelando modos de vida maravilhosos.

Em contexto de agravamento da pandemia do novo coronavírus, injustamente, dia 15 de dezembro de 2020, um Projeto de Lei (PL 142/2017), que insistia há quatro anos em criminalizar o modo de vida dos carroceiros e das carroceiras na cidade de Belo Horizonte, MG, foi aprovado em segundo turno na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) por 24 vereadores dos 41 da câmara. Apunhalaram pelas costas cerca de 10 mil famílias de carroceiros/as de BH e RMBH. Escondendo os verdadeiros motivos - interesses políticos para eleição da Mesa Diretora da Câmara, interesses econômicos de empresas e caçambas, de deputados e vereadores que se elegem capitalizando essa pauta - e com argumento falacioso de defesa dos direitos animais, busca-se substituir os cavalos por motos adaptadas. Segundo os/as carroceiros/as, “querem trocar os cavalos que fazem parte da nossa família por “cavalos de lata”, um absurdo. Sob a liderança da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de Belo Horizonte e Região Metropolitana, com o Lema “A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”, esse Povo Carroceiro, que é Comunidade Tradicional, friso, repudia com veemência tal projeto pelos seguintes motivos: a) a proibição das carroças afetaria a vida de cerca de 10 mil famílias não só de Belo Horizonte como também da região metropolitana, cujo sustento se baseia no trabalho na carroça. Não tendo mais zona rural, a cidade de Belo Horizonte se encontra (faz divisa) com Sabará, Santa Luzia, Vespasiano, Ribeirão das Neves, Contagem, Ibirité, Sarzedo, Nova Lima e Brumadinho. Por isso, milhares de carroceiros/as que moram nos limites de BH trabalham em dois ou até três municípios com suas carroças; b) desde os anos de 1990, foi construída em Belo Horizonte uma política de limpeza urbana que sempre tratou os carroceiros e carroceiras como verdadeiros agentes ambientais, responsáveis pela destinação correta de milhares de toneladas de resíduos da cidade. Nas gestões de Patrus Ananias e Célio de Castro foram construídas 34 Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes (URPV); c) os cavalos e as éguas não são meros animais, mas sim companheiros/as de trabalho dos/as carroceiros/as, têm nome, história e fazem parte da família e da Comunidade Tradicional Carroceira. A tentativa de trocar cavalos e éguas por motos demonstra o desconhecimento da relação que existe entre carroceiros/as e seus/suas companheiros/as animais. E mais, nos leva a pensar em escusos interesses do capital de empresas que querem vender mais 10 mil motos e com isso aumentar o número de acidentes com motociclistas, poluir mais o ar com dióxido de carbono e poluição sonora. E os 10 mil cavalos e éguas substituídos seriam abandonados à própria sorte até a morte ou seriam sacrificados para se tornarem invisíveis?; d) os casos de maus-tratos aos animais não fazem parte do modo de vida carroceiro e são veementemente repudiados pelos mesmos. Os carroceiros e carroceiras participam, inclusive, desde 2017, de várias discussões com a Prefeitura, buscando regulamentar o trabalho e os critérios de cuidado dos cavalos e éguas. “Se há joio no meio do trigo, não se pode cortar o meio de vida do trigo por causa de algum joio existente no meio e somos os primeiros interessados em ver todos os cavalos e éguas e todos os animais bem cuidados. Que a prefeitura, as faculdades de veterinária e a sociedade nos ajudem a garantir condições dignas para todos os cavalos e éguas e que se aplique a lei de maus-tratos aos animais. Tem que acabar com os maus-tratos que injustamente acontece aqui ou ali e jamais proibir nosso meio de vida”, dizem os/as carroceiras. “Mas com a desculpa de defesa dos cavalos e éguas, matar aos poucos os carroceiros e nossas famílias não é justo”, afirma o carroceiro Cláudio, descendente de pais, avós e bisavós carroceiros; e) a cidade de Belo Horizonte foi construída com a participação ativa dos carroceiros e carroceiras, constituindo um patrimônio histórico e cultural da cidade. Ai de quem pisa na própria história e não honra suas origens!; f) o projeto de lei viola os artigos 215 e 216 da Constituição Federal que prevê que o Estado deve garantir o direito à manifestação da diversidade de todos os grupos que compõem o país; g) o PL 142 é autoritário, pois pugna apenas por proibição e repressão de um modo de vida tradicional e também porque foi formulado sem a participação dos/as Carroceiros/as. O presidente da Associação dos/as Carroceiros de BH e RMBH, Sr. Sebastião Alves Lima, carroceiro há 48 anos, denuncia: “Esse PL é racista, porque, sem nos conhecer e nem nos ouvir, insiste em violentar e massacrar nosso modo de viver e de cuidar dos animais. Por que quem defende esse covarde projeto só pensa em repressão e proibição? Quem disse proibição por si só resolverá os casos de maus-tratos, que são uma exceção no nosso meio?”. É óbvio que esse projeto se ancora em racismo estrutural, algo execrável e corolário de relações sociais escravocratas. Assim como sedentarismo nos adoece, adoece também os cavalos e éguas. Trabalhar de forma ética e justa no oficio de carroceiro/a faz bem tanto para os/as carroceiros/as e suas famílias quanto para os cavalos e éguas.

Além disso, os carroceiros e carroceiras da capital mineira já se autodeclararam como Povo e Comunidade Tradicional, com modos de vida próprios e cujo direito está garantido pela Convenção 169 da OIT da ONU, da qual o Brasil é signatário. A autodeclaração é o suficiente para garantir os direitos assegurados pela Convenção 169 da OIT. Além disso, o Decreto 6040/2007 e a Lei 21147/2014, que criaram, respectivamente, as Políticas Nacional e Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais, também garantem o direito dos/as carroceiros/as a manter seu modo de vida. Assim, qualquer tipo de ação, seja do setor público ou privado, que comprometa o modo de vida dos carroceiros e carroceiras, caracteriza uma clara violação à Convenção, à Constituição e às leis citadas. Desta forma, os/as carroceiros/as reivindicam aos vereadores e vereadoras de Belo Horizonte que garantam os direitos humanos e animais, arquivando de vez o perverso, inconstitucional e injusto PL 142/17 e solicitam que criem leis que garantam que as condições de vida dos/as carroceiros/as e seus companheiros animais sejam plenamente asseguradas.

Se há algo que o PL142 não faz é garantir o respeito aos direitos dos cavalos e éguas, e ainda viola de forma cruel os direitos humanos básicos. Viola o direito à livre expressão da diversidade cultural e viola o direito ao trabalho, já que o trabalho com os cavalos e éguas é a única fonte de renda para essas famílias. Há carroceiros que estão há quarenta, cinquenta anos na lida com as carroças. Muitos herdaram os saberes de seus pais, tios, avós, outros aprenderam com amigos. E pela pouca escolaridade, poucos teriam condições de tirar carteira para dirigir motos e nem condições econômicas para comprar moto, pagar seguro, IPVA e garantir manutenção.

Ao propor a substituição das carroças por motos adaptadas, o PL 142 trata de forma equivocada os cavalos e éguas como meros objetos substituíveis. Os setores do movimento de defesa dos direitos animais, que apoiam esse projeto fascista e etnocêntrico, sempre alegam que os cavalos e éguas, animais sencientes, são escravizados pelos/as carroceiros/as. Intencionalmente, promovendo sensacionalismo, divulgam em várias capitais as mesmas fotos sem data e sem localização, fotos sem identidade. Como o lugar social condiciona o olhar epistemológico, quem não convive com os/as carroceiros/as, de longe e do seu “lugar social”, que não é da classe trabalhadora, mesmo tendo boas intenções se equivoca redondamente. Sabemos que de boas intenções a estrada para o inferno está pavimentada. Triste quem ignora a Pedagogia da Libertação, de Paulo Freire, que diz que jamais quem está longe e fora da realidade pode apresentar solução correta para os problemas dos oprimidos. São os/as carroceiros/as quem têm experiência e saberes frutos da vivência cotidiana e, por isso,  capazes de propor soluções para a superação dos problemas existentes no meio dos/as carroceiros/as. O Poder Público - Executivo, Legislativo e Judiciário - precisa ouvir os/as carroceiros/as para que um Projeto de Lei realmente justo e que respeite os direitos dos carroceiros/as seja elaborado e aprovado. Os/as carroceiros/as organizados se regem por um Decálogo (“Dez Mandamentos”) dos/as Carroceiros/as[2].  Cavalos, éguas, burros são sujeitos de direitos, parte de famílias e comunidades, têm nome, temperamento, personalidade. O fato de carroceiros/as e cavalos e éguas se dedicarem a um trabalho de grande esforço físico certamente é interpretado por esses pretensos defensores dos direitos animais, em sua maioria brancos e de classe média, como algo degradante. Afinal, a elite sempre tratou os trabalhos braçais como atividades de terceira categoria, destinados a suas empregadas, pedreiros, porteiros, entre outros/as, ao fim e ao cabo, descendentes de seus parentes que foram escravizados do século XIX. “Hipócrita, tire primeiro a trave do seu olho antes de apontar o cisco no olho do/a irmão/ã” (Mateus 7,5), alerta o Evangelho de Jesus Cristo.

Atenção, esquerda cirandeira! Cuidado com as pautas identitárias para se eleger, que ignoram o recorte de classe em jogo na luta dos/das carroceiros/as. Via de regra são aliados da classe dominante que insistem em pisotear em um Povo e Comunidade Tradicional que tanto bem tem feito ao povo brasileiro: os/as carroceiros/as. A guerra contra os/as carroceiros/as é só mais uma página da guerra contra os pobres, mais uma trincheiro capitalismo que urbaniza e uniformiza tudo para dominar e lucrar, que tem horizonte tenebroso: apagar qualquer traço da vida camponesa na metrópole. Mas, expropriado e expulso do campo, os/as camponeses/as resistem há 520 anos. E resistiremos sempre, pois sabemos que é nosso único modo de viver. Por isso seguiremos, de cabeça erguida, na luta por todos os nossos direitos[3]. Carroceiros e Carroceiras, uni-vos, pois o rolo compressor de aliados dos capitalistas está atropelando e buscando asfixiar-nos.

15/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - “Pelos direitos dos Carroceiros, vereadores/as de BH, arquivem o PL 142” Prof. Emanuel/UEMG/14/12/20

2 - Grito dos carroceiros de Belo Horizonte contra o PL 142/2017: "Somos Povo Tradicional!" – 13/12/2020

3 - Luta de carroceiros/as de BH/MG: Trabalho e respeito aos cavalos e éguas. 6ª Parte. 07/7/2018.

4 - Luta dos carroceiros/as e cavalos em BH/MG: pelo direito de existir na cidade/5ª Parte/07/7/2018.

5 - Luta dos/das carroceiros/as pelo direito de trabalhar com cavalos e éguas/BH/MG. 4ª Parte/07/7/2018

6 - Carroceiros/as, cavalos e éguas em BH/MG: dignidade e sobrevivência, 3ª Parte. 07/7/2018.

7 - Carroceiros/as de BH/MG: Cuidado com o meio ambiente e respeito aos animais/2ª Parte/ 07/7/2018.

8 - Carroceiros e carroceiras de BH/MG: Respeito à cultura, direito ao trabalho. 1ª Parte. 07/7/2018.

9 - Carroceiros/as de Belo Horizonte PROTESTAM na CMBH contra a aprovação do PL 142 INJUSTO - 14/12/20



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Decálogo dos Carroceiros e Carroceiras:

1º - Amar o animal como se fosse seu próprio filho.

2º - Manter seu animal sempre bem cuidado.

3º - Ser feliz e orgulhoso por ter seu animal sempre bem cuidado.

4º - Manter o cavalo feliz com uma carroça sempre com os pneus calibrados, boa carroça e arreata adequada.

5º - Zela pelo trato do animal dando banho, alimento, água e o descanso necessário.

6º - Andar sempre com atenção em vias púbicas, respeitando a legislação.

7º - Contribuir para a união e a solidariedade entre os carroceiros e as carroceiras.

8º - Aprender a ser amigo/a, compartilhando os conhecimentos.

9º - Ter boa convivência com os clientes/fregueses e servidores públicos, tratando-os com respeito.

10º - Jogar os materiais transportados apenas nos locais permitidos, contribuindo para a limpeza urbana. 

[3] São co-autores deste artigo o Prof. Emanuel Almada, da UEMG e do Grupo Kaipora, e todos/as Carroceiros/as da Associação de Carroceiros/as Unidos/as de Belo Horizonte e RMBH.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

São José de Brumadinho, sob Herodes: a Vale. Por Frei Gilvander

 São José de Brumadinho, sob Herodes: a Vale. Por Gilvander Moreira[1]

Foto: Divulgação / MAM

Sem apresentar estudo sério e idôneo, a mineradora Vale anunciou, dia 18 de novembro último (2020), a elevação do nível de emergência para 2 da barragem Norte/Laranjeiras em Barão de Cocais, MG. Tal justificativa foi também usada para a retirada forçada de mais de 30 famílias e mais de 800 animais na região das comunidades de Laranjeiras e São José de Brumadinho, onde encontra-se  o Santuário de São José. A barragem, que tem 56 metros de altura e 32,3 milhões metros cúbicos de volume, já estava interditada desde março deste ano, pela falta de Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) exigida pela Agência Nacional de Mineração (ANM). A estrutura está classificada como de Dano Potencial e Categoria de Risco (CRI) altos e desativada desde 2019, mas, segundo os trabalhadores, ela não apresenta riscos de rompimento iminente. Com esse anúncio, as famílias vivenciam situações marcadas pelo terrorismo psicológico promovido pela Vale e pelos funcionários do poder público municipal e estadual. Todo o território tem sido alvo de tentativas de apropriação pela Vale há anos, desde o início de implantação da mina Brucutu, em 2006, em região próxima. Agora, a empresa se aproveita desse difícil momento em meio à pandemia da Covid-19 e usa a elevação do nível de emergência da barragem como estratégia para se apropriar de mais um território.

Essa é a estratégia recente que a Vale tem utilizado para invadir, se apropriar e controlar os territórios de interesse da mineradora e, pior, com apoio do Estado. Assim foi com a região de Socorro, em Barão de Cocais, que desde 08 de fevereiro de 2019 sofreu remoção forçada e que tem sido tomada por inúmeros projetos de exploração mineral, inclusive da própria Vale. O mesmo foi realizado no distrito de Antônio Pereira, no município de Ouro Preto, MG, com a remoção forçada de dezenas de famílias e que também é alvo de projetos de expansão minerária da Vale. Recorde-se do absurdo que foi o desgoverno Bolsonaro ter colocado “mineração como atividade essencial” durante a pandemia. Com essa ‘carta branca’ do Estado, a Vale tem disseminado covid-19 nos territórios e continua de forma acelerada sacrificando povos, a mãe terra, as águas e toda a biodiversidade em nome do acúmulo de lucros exorbitantes. E continua matando de mil formas em todos os territórios das bacias do Rio Paraopeba e do Rio Doce.

As comunidades de São José de Brumadinho e Laranjeiras possuem uma extraordinária história de resistência ao avanço do projeto de mineração da Mina do Brucutu, que visa transformar em um grande complexo de barragens de rejeitos a região que é um paraíso natural, ecológico e cultural. As comunidades possuem patrimônios culturais tombados pela Prefeitura e o Santuário de São José de Brumadinho é reconhecido como um local de peregrinação e encontros religiosos. Uma das Comunidades que está sendo expulsa pela Vale abriga o Santuário de São José de Brumadinho, onde, segundo devotos de São José, aconteceu um milagre em 1742 e, por isso, a região recebe mensalmente, no dia de São José, centenas de pessoas que vêm exercer sua fé e celebrar com o padroeiro dos trabalhadores.

A Mina de Brucutu, a maior da Vale no estado de Minas Gerias, está em plena expansão e ameaça toda a região do distrito de Cocais. A barragem de rejeitos do Torto já está em instalação, há o plano de construção de uma terceira barragem, denominada Tamanduá, que junto com a barragem Norte/Laranjeiras transformará o território em um complexo de reservatórios de rejeitos. Ademais, a cava do projeto da Mina de Brucutu segue em direção à sede do distrito de Cocais e planeja o desvio de um trecho da rodovia estadual MG-129, a estrada mais importante de ligação dos municípios da região.

Essa é mais uma ação criminosa da Vale que conta com a cumplicidade do Estado em utilizar o terror das barragens para fazer remoções forçadas em territórios onde a criminosa reincidente possui interesse em ampliar mineração devastadora. Muitas famílias estão resistindo a sair dos locais até possuir todas as informações da condição de segurança da barragem e as comunidades não abrirão mão de seu local sagrado, o Santuário de São José de Brumadinho. “São José fica e a barragem sai!”, eis o lema da luta no território sob a sanha insaciável de acumulação de capital da Vale.

Com o apoio do Estado, a mineradora Vale, contumaz servidora da idolatria do mercado e do capital, avança fazendo guerra contra os povos, os territórios e toda a biodiversida. A Vale, que já tentou comprar várias propriedades na região, está removendo os sitiantes para casas alugadas na cidade. Todos os moradores desalojados da comunidade de Socorro, que foram tirados de suas casas devido ao risco de rompimento da barragem Sul Superior, de Gongo Soco, em fevereiro de 2019 ainda não puderam voltar para casa, mesmo sem o rompimento que não aconteceu. Alguns venderam seus terrenos para a mineradora e mesmo aqueles que ainda os mantêm tiveram sua vida bastante modificada para pior. A vida deles nunca mais será a mesma. “A criminosa Vale mata nossos sonhos e nosso direito de viver todos os dias”, dizem as pessoas atingidas de mil formas.

O sítio do senhor Miguel Antônio de Almeida, de 85 anos, foi o primeiro a ser “visitado” por funcionários da Vale e da Defesa Civil. Sr. Miguel ouviu de um coordenador da remoção forçada: “Nos próximos 20 dias, vamos trabalhar a mudança do senhor e de todas as pessoas desta comunidade.” Uma funcionária da Vale foi incisiva: “Tem que sair, não tem como vocês ficarem aqui, estamos seguindo um protocolo da Defesa Civil. Não tem a opção de não querer ir. Será feito um inventário de tudo do sítio e vocês vão receber uma cartilha com todas as orientações”. Sr. Miguel, aterrorizado, ainda encontrou força para ir cuidar de algumas vacas no curral e desabafou: “A minha vida está aqui neste lugar. Se eu sair daqui, morro”. O filho do Sr. Miguel, Délcio Almeida, contou que o pai levanta todos os dias de madrugada, às 3h30. “Isso aqui é a vida dele. Ele capina, tira leite e faz queijo. A minha mãe veio para aqui para construir esta casa, devido à capela de São José do Brumadinho, aqui em cima. Ela faleceu em 2014, e amava este lugar. Não pode fazer isso com a gente. Aqui é onde a nossa família gosta de viver”, afirmou.

Dia 6 de dezembro último, Dom Vicente Ferreira, bispo da Arquidiocese de Belo Horizonte, da região de Brumadinho e da Comissão de Ecologia Integral da CNBB, celebrou missa diante do Santuário de São José do Brumadinho, em Barão de Cocais. Na homilia, Dom Vicente profetizou: “Sob cruel perseguição do rei Herodes, São José teve um sonho de que deveria fugir para o Egito com Maria e Jesus para salvar o menino Deus. Nosso sonho, agora, diz: São José fica e a barragem é que deve ser retirada! Nós queremos São José aqui! O Santuário não pode ser retirado daqui. Ontem, Herodes; hoje, a Vale. De que vale louvar o Pai do céu, se estamos matando a mãe Terra? Juntar a prece e nos apressar na luta por tudo o que é justo, eis nossa missão. A Vale faz propaganda mentirosa e enganosa. Temos que ficar indignados e revoltados diante da ganância sem fim desta mineradora que só pensa em destruir. Urge conversões eclesial, ecológica e cultural. Precisamos sair às pressas para lutar em defesa da Casa Comum. Não temos a opção de desistir, pois quem desiste morre aos poucos. A história é cheia de dragões e Herodes. Não podemos ter medo de nominar os Herodes de hoje. Jamais a Vale vai matar a nossa capacidade de sonhar um mundo justo. Quem deixar algum atingido para trás terá que prestar contas a Deus. A única coisa que a Vale quer é dominar os territórios para ganhar mais dinheiro. A Vale troca a vida pelo lucro.”

Reproduz-se em Minas Gerais, no Brasil e no mundo a luta de Davi contra Golias e, segundo o livro do Apocalipse, a luta da mulher em dores de parto ameaçada por um dragão cuspindo fogo para devorar a criança que está na iminência de nascer. Assim como Davi venceu Golias e a mulher venceu o Dragão do Apocalipse, a mineradora Vale e o Estado cúmplice serão vencidos pelo povo que segue se organizando e resistindo de cabeça erguida. A Vale, apesar de parecer invencível, pode e deve ser derrotada pois usa de mentiras, está recheada de contradições e, por isso, tem “pés de barro”, sangue nas mãos e espalha um vírus letal do seu corpo para as pessoas e os territórios onde atua[2]. Enfim, de fato, a Vale "é a morte, é o mercado financeiro... A Vale não vale nada, nada..."

08/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale

2 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020

3 - "Basta de atrocidades! Exigimos justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020

4 - A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020

5 - "Estado, não venda nossa dor para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20

6 - "A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020

7 - Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020

8 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida

9 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20

10 - “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Gritos dos/as Atingidos/as interpelam nossa consciência. Por Frei Gilvander

 Gritos dos/as Atingidos/as interpelam nossa consciência. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Charge de Latuff sobre mineração.

Caso não seja cancelada, dia 09 de dezembro de 2020 acontecerá mais uma reunião no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) sobre o Acordo que a mineradora Vale está costurando com o Governo de Minas Gerais e com Instituições de Justiça (TJMG, Ministério Público de MG e Defensoria Pública de MG). Indignados/as, diante de uma série de indícios, atingidos/as estão alertando que “esse acordo, caso seja firmado, será um acordão, uma negociata, leilão dos direitos dos/as atingidos/as de toda a Bacia do Rio Paraopeba, de Brumadinho até o município de Três Marias, MG”. Tivemos que criar o Programa “Grito dos/as Atingidos/as” para ouvirmos atentamente e ecoar as legítimas, justas e necessárias reivindicações de milhares de atingidos/as. Quanto mais ouvimos os clamores, os sofrimentos e as injustiças que todo o povo e toda a biodiversidade da Bacia do Rio Paraopeba estão sofrendo, e que aumentam e se agravam cotidianamente, mais comovidos ficamos e profundamente indignados nos sentimos com o conluio do Estado com a mineradora Vale.

A impunidade da criminosa reincidente mineradora Vale reproduz e faz crescer os crimes e tragédias continuadas. Da boca dos/as atingidos/as ecoam palavras de fogo e perguntas que interpelam nossa consciência. Por exemplo: Até quando vão ficar sem julgamento e condenação as mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton pelo crime/tragédia acontecido cinco anos atrás a partir de Mariana? E o crime hediondo a partir de Brumadinho, também vai continuar impune até quando? É ético negociar com uma mineradora criminosa reincidente, aceitando, injustamente, que a mineradora criminosa apresente contraproposta rebaixando ainda mais a proposta de acordo que já é péssima? Como pode o Governo de MG, o TJMG, Ministério Público de MG e Defensoria Pública de MG pensar em usar a dor, o sofrimento e barganhar com os direitos dos/as atingidos/as para ampliar o metrô e/ou construir rodoanel em Belo Horizonte? Se os/as atingidos/as já estão organizados em Comissões em cinco territórios, de Brumadinho a Três Marias, ao longo da Bacia do Paraopeba, por que não se respeita os/as atingidos/as como sujeitos e protagonistas para tratar de qualquer assunto que diz respeito a indenizações, à reparação integral, a acordo etc? Por que manter a “confidencialidade”, que na prática é sigilo, de um acordo que deveria respeitar os princípios da transparência e da publicidade? Trocar a Fundação Renova, que é da mineradora Vale/Samarco – gestora do Acordo no caso do crime em Mariana - pelo Governo de MG para gerenciar bilhões de reais que a Vale deve ao povo atingido e a toda a biodiversidade não será trocar “seis por meia dúzia” e continuar sacrificando milhares de atingidos/as? Por que manter o critério de considerar atingido/a apenas quem reside a menos de um quilômetro do Rio Paraopeba, se os/as atingidos/as já demonstraram à exaustão que esse é um critério injusto? Milhares de pessoas trabalhavam no Rio Paraopeba como pescadores, extratores de areia, próximo ao rio, na agricultura familiar e em hortas, em associações de pequenas agroindústrias de frutos do cerrado, em turismo ecológico etc, mas residem para além de um quilômetro de distância do rio e estão endividados, sem renda e adoecendo cada vez mais. Por que o Governo de MG mantém a mesma estrutura de licenciamento ambiental, via Comissão de Atividade Minerária (CMI) do COPAM (Conselho de Política Ambiental) do Governo de MG) que continua licenciando todos os projetos de mineração devastadora? Os representantes do Governo de MG sempre votam em sintonia com os representantes das organizações que defendem os interesses das mineradoras. As autoridades do Estado (poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) não aprenderam nada com os crimes/tragédias das Mineradoras, a partir de Mariana e Brumadinho?  Se a Vale não está cumprindo vários pontos do Acordo sobre o crime em Mariana e não cumpre vários compromissos na Bacia do Paraopeba, como oferecer água para o povo, pagar o Auxílio Emergencial para todos/as os/as atingidos/as, o que garante que ela cumprirá um acordão com Governo de MG e Instituições de Justiça? Por qual razão dar um longuíssimo prazo de 10 anos para a mineradora criminosa, que lucra absurdamente, cumprir um acordo que passa longe de reparar todos os direitos socioeconômicos e ambientais violados?

Na Minuta de acordo vazada para imprensa, a Vale diz que quanto à reparação socioambiental pretende reparar para retornar “ao status quo de antes” do crime, o que viola o Tratado Internacional Marco de Seidan, do qual o Brasil é signatário, que diz que nos casos de desastres ocorridos em grandes empreendimentos “o violador tem que reparar para melhor as condições socioambientais” e não apenas para “o que era antes”. A Vale também quer excluir normas internacionais, como o Marco de Seidan, e se pautar por critérios de uma empresa privada multinacional, a Arcadis. O acordo coordenado pela cúpula do TJMG viola o princípio constitucional do juízo natural, já que pretende que o Presidente do TJMG seja o juízo que homologue o acordo, e não o juiz responsável pelo processo (2ª Vara de Fazenda Pública Estadual). Ou seja, a cúpula do TJMG está atropelando o juiz de 1ª instância e também o 3º vice-presidente do TJMG (nesse caso, pois é ele quem deveria estar conduzindo as negociações no âmbito do CEJUSC de 2º Grau, e não o presidente do TJMG). Na minuta há uma cláusula abusiva: a que diz que as lacunas e omissões serão superadas por consenso entre as partes, o que dá poder excessivo de veto para a Vale. Ou seja, se a Vale não concordar, fica conforme os interesses dela, o que violará direitos dos/as atingidos/as e do Estado, inclusive. Ainda segundo a minuta de acordo, será dado um prazo de 10 anos para o cumprimento do acordo. Só após se pode arguir o descumprimento do acordo. É um longo tempo para a Vale continuar sacrificando e se esquivando do pagamento da imensa dívida que contraiu com milhares de pessoas atingidos/as, melhor dizendo, golpeadas pelo hediondo crime/tragédia.

Um dos maiores clamores dos/as atingidos/as é: “QUEREMOS JUSTIÇA!” Todo o povo atingido já julgou a Vale e repete cotidianamente a sentença: “VALE ASSASSINA REINCIDENTE!” Nas falas dos/as atingidos/as fica claro que estão aumentando o adoecimento das pessoas, o empobrecimento das famílias e não se vê nada sendo feito de forma consistente no sentido da necessária revitalização do Rio Paraopeba. Primeira medida para viabilizar a revitalização do Rio Paraopeba é proibir mineração em toda sua bacia. Por que não se faz isso? Segunda medida: mais do que um mísero “Auxílio Emergencial”, é preciso efetivar um Programa de Renda Permanente para todo o povo da Bacia do Paraopeba com, no mínimo, uns 15 bilhões de reais para ser investido para iniciar o resgate das condições objetivas de vida do povo e de toda a biodiversidade. Todos dizem: “Antes do crime/tragédia vivíamos sem precisar de Governo, nem da Vale e nem de prefeitura, pois pescávamos, tínhamos turismo ecológico e, na agricultura familiar, produzíamos o necessário para vivermos. Tudo que produzíamos vendíamos com facilidade. Agora estão nos matando diariamente, aos poucos. Mataram nossos sonhos. A Justiça está cega, surda e muda, pois não ouve nossos clamores.”

Nos assentamentos Queima Fogo e Chácara Chório, em Pompéu, MG, tudo o que as 49 famílias produziam nos assentamentos era vendido na orla do Rio Paraopeba. Denuncia Tatiane Menezes, da Comissão dos Assentamentos Queima Fogo e Chácara Chório: “A Vale reconheceu como atingido/a quem ela quis, pôs vizinho contra vizinho e disseminou discórdia entre os/as atingidos/as. Pessoas que moram na beira do rio Paraopeba estão passando sede e vendo as criações morrerem. A Vale está pagando o Auxílio Emergencial para quem ela quer. Um grande número de atingidos/as não estão recebendo o Auxílio Emergencial, todo o Território 5, inclusive. São várias empresas terceirizadas da Vale sempre invadindo nosso território diariamente. Perdemos renda e meios de vida. Fomos pegos de surpresa por esse acordo da Vale com o Governo, sendo negociado a portas fechadas. A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo. Estamos revoltados. A gente vê que o Governo de MG quer construir grandes obras, como o rodoanel em Belo Horizonte, que não vai gerar nenhum benefício para nós atingidos/as. O primeiro objetivo precisa ser recuperar o Rio Paraopeba e reparar integralmente os imensos danos socioambientais. Lamentavelmente, agora, muitas famílias estão sobrevivendo com cesta básica. Eu vendia queijo, frango e tudo o que a gente produzia no nosso lote. Estamos endividados, porque a gente não tem mais a renda que tínhamos. O Governo de MG deve pensar primeiro em nós atingidos/as e só depois, se sobrar dinheiro, em rodoanel e outras obras.”

Não podemos ficar indiferentes diante dos gritos dos/das atingidos/as contra esse acordo injusto e desumano que o Estado de Minas Gerais tenta costurar com a criminosa mineradora Vale, com aval de Instituições de Justiça de Minas Gerais. Exigimos RESPEITO, JUSTIÇA E AGILIDADE no CUIDADO com a vida das pessoas e de toda a biodiversidade atingida.

1º/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - “Somos vivos mortos pela Vale e Estado. Cadê Justiça?” ORMINDO DE BRITO, Felixlândia, MG – 30/11/20



2 - “Acordo do Governo com Vale e TJMG está nos atropelando”, diz ABDALAH NACIF, de Fortuna de Minas/MG



3 - “Governo de MG, cúmplice da Vale. Acordo sacrificará os/as atingidos/as!” - ABDALAH NACIF– 29/11/20



4 - “Acordo da Vale com Governo de MG será nos apunhalar de novo!” TATIANE MENEZES, Pompéu/MG – 28/11/20



5 - "Acordo da Vale com Governo de MG: leilão de direitos para cofre?" - Fernanda Perdigão - 27/11/2020



6 - Grito! Construir Rodoanel em BH usando direitos dos/as Atingidos/as? – Joelisia Feitosa - 26/11/20



7 - "Acordo?" - Grito dos/as Atingidos/as pela mineradora Vale e pelo Estado - Eliana Marques - 25/11/20



8 - Quilombolas de Brumadinho/MG no Dia da Consciência Negra: "E nossos Direitos? E reparação da Vale?"



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Há racismo estrutural, SIM! Por Frei Gilvander

Há racismo estrutural, SIM!  Por Frei Gilvander Moreira[1]

 


Na noite de 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, nosso irmão negro JOÃO ALBERTO SILVEIRA FREITAS foi barbaramente linchado e assassinado, em Porto Alegre, RS, em um supermercado da Rede Carrefour. Primeiro, nosso abraço solidário à família do João Alberto, ao pai João Batista Freitas, aos filhos, à companheira Milena Borges Alves, aos amigos e amigas. João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, outro George Floyd brasileiro, barbaramente assassinado por um segurança e um policial militar que trabalhava como segurança (na prática, jagunços, que de humanos só têm a aparência). João Alberto Silveira Freitas, mais um irmão NEGRO assassinado e martirizado no Brasil racista.

Repudiamos com veemência mais esse assassinato e também repudiamos o vice-presidente General Mourão e o fascista lá do Palácio do Planalto que deveriam ter vergonha de afirmar que “no Brasil não há racismo”. É assim que um Governo racista, fascista e genocida mata: de mil formas. O general Mourão e o que adora torturadores não dizem apenas uma mentira deslavada, mas agem criminosamente incitando a reprodução de outras barbáries. Se 50% da terra brasileira está sequestrada nas mãos de apenas 2% de latifundiários, empresários e chefes do agronegócio, é porque há racismo estrutural no Brasil. Se no Tribunal de (In)Justiça de São Paulo só tem desembargadores brancos como nos demais tribunais do país, com raras exceções, é porque vivenciamos, sim, o racismo estrutural. Se entre os 140 ou 150 novos médicos que se formam semestralmente na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) só há um ou dois negros, é porque há racismo estrutural. Se é reservado ao povo negro os trabalhos manuais com apenas salário-mínimo e milhões de irmãos e irmãs de cor preta são obrigados a sobreviver na informalidade, é porque há racismo estrutural. Se no Bairro Mangabeiras, zona nobre de Belo Horizonte, em um quilômetro quadrado vivem folgadamente e luxuosamente apenas 1.000 pessoas, enquanto no Aglomerado da Serra, geograficamente ao lado, sobrevivem quase 50 mil pessoas em apenas 1 quilômetro quadrado, é porque há racismo estrutural. Se há poucos os negros e negras eleitas para ocupar posições nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é porque há racismo estrutural. Se apenas um em cada 10 alunos de escolas privadas da cidade de São Paulo é negro, é porque há racismo estrutural. Se nos bairros luxuosos moram só brancos, salvo exceções, e nas favelas está o povo preto, é porque há racismo estrutural. Se entre os 800 mil presos jogados nos presídios brasileiros, que na verdade são novos navios negreiros, mais de 95% dos internos são pretos, é porque há racismo estrutural. Se ... Se continuarmos citando os exemplos de racismo estrutural, a lista será interminável.

Na barbárie de uma sociedade capitalista, uma máquina de moer vidas, muitas vezes temos que dizer o óbvio para desmascarar as mentiras (fake News) criminosas ditas e repetidas por integrantes da classe dominante para pavimentar a reprodução da superexploração que campeia no nosso querido país. Que fazer para superarmos o capitalismo, a desigualdade social e o racismo estrutural? A superação deste status quo que violenta e mata de mil formas passa pela classe camponesa realizar, “na lei ou na marra” uma revolução agrária, que é a partilha, a democratização, a socialização da terra. Enquanto continuar o Cativeiro da Terra (Leia o livro de José de Souza Martins), com a estrutura latifundiária se reproduzindo e ampliando, teremos as condições materiais objetivas que sustentam o racismo estrutural. Os Povos e Comunidades Tradicionais precisam retomar todos os territórios que lhes pertencem ancestralmente. Os Povos Originários, Povos Indígenas devem resgatar todos seus territórios que foram invadidos por brancos capitalistas. Uma das tarefas do povo da cidade é boicotar a Rede Carrefour em todo o Brasil. Não entre em nenhum Carrefour! Não compre e não consuma nada desta transnacional racista e criminosa. Paremos de comprar nas lojas e empresas que sustentam e reproduzem o racismo estrutural existente na sociedade capitalista do Brasil, país com umas maiores desigualdades sociais e raciais do mundo.

Faz bem inspirar-nos em alguns relatos bíblicos. Os evangelhos da Bíblia (Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17) relatam que Jesus Cristo, jovem galileu rebelde, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, furioso, ocupou o Templo de Jerusalém - lugar considerado o mais sagrado -, fez um chicote de cordas, “chutou o pau da barraca” e expulsou todos os vendilhões do Templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio”. O Planeta Terra é “templo sagrado” que está sendo invadido e saqueado pela idolatria do mercado e do capital. Fazer boicote às grandes empresas racistas, que violentam a dignidade da pessoa humana e a dignidade de toda a biodiversidade se tornou uma necessidade para a sobrevivência da humanidade sobre nossa única casa comum.

Segundo a Bíblia, as mulheres parteiras do Egito, em Êxodo 1,8-22, diante de um “Decreto Lei/Medida Provisória” que, para controlar a natalidade, mandava matar as crianças do sexo masculino, se organizaram e fizeram greve e desobediência civil. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à pessoa e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão e violência”, diziam, em seus corações, as Mulheres do “Movimento de saúde pública” do Egito. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras”. O povo se tornou numeroso e muito poderoso (Êxodo 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.

Os pobres organizados que seguiram Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., mártires dos violentados, fizeram desobediência civil: desafio às leis injustas sem agredir pessoas. Como gestos extremos, acordaram consciências anestesiadas, cúmplices de sistemas opressivos. A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas. O boicote do sal e do tecido inglês, na Índia, o dos ônibus segregacionistas, nos Estados Unidos, e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo causaram grandes prejuízos materiais aos capitalistas, mas trouxeram para a humanidade exemplos de enfrentamento a um sistema de relações sociais preconceituosas e racistas assentadas em um passado escravocrata.

Oxalá o povo brasileiro se revolte como aconteceu nos Estados Unidos com o assassinato de George Floyd que animou e inspirou um massivo movimento antirracista que foi decisivo para derrubada do fascista Trump nas urnas. Basta de racismo! Malditos sejam todos os racistas! Que João Alberto Silveira Freitas, martirizado, continue animando e inspirando o movimento antirracista! Oxalá a morte deste nosso irmão não caia no esquecimento e que este movimento continue crescendo e nos ajude a derrubar do poder todos os fascistas, genocidas e racistas![2]

 

24/11/2020

Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Morte de João Alberto provoca onda de protestos contra o racismo pelo Brasil


2 - No Recife, manifestantes pedem fechamento do Carrefour


3 - Luta contra Racismo/Violência contra as Mulheres/Opressão do Capital. "Uni-vos!" (Frei Gilvander)


4 - Três Comissões da OAB/MG em defesa do Quilombo dos Luízes, Belo Horizonte/MG. Racismo, não! 04/8/17


5 - Comunidade Quilombola dos Luízes, em Belo Horizonte, vítima de invasão/violência/racismo. 01/8/2017


6 - CPT-MG 40 anos - Madalena: "Nossa luta é contra o latifúndio, arma mortífera" - Vídeo 5 - 07/3/2018


7 - Ameaçado por lutar contra o latifúndio, DIM CABRAL, da Cooerco.SD, Uberlândia/MG. Justiça! 24/5/18


8 - Violência do latifúndio cresce no norte de MG/Audiência Pública/ALMG/Toninho do MST. 25/4/2018



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.