“Bom”
samaritano: “impuro” e “odiado” como exemplo
Por Gilvander Moreira[1]
O início da vida pública de Jesus Cristo foi marcado
por uma grande e crescente receptividade do seu projeto (Ensinamento e Práxis)
pelo povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a todos. “As multidões acorriam para Jesus” (Lc
6,17-19), mas pouco a pouco Jesus foi aprofundando sua postura e radicalizando
sua Opção pelos Pobres, marginalizados e excluídos da sociedade (Lc 4,18-19). A
“lua de mel” com “gregos e troianos” - era de “paz e amor” - durou pouco.
Começaram a surgir conflitos com poderosos (Lc 13,31), pois sua prática
incomodava os interesses dos que viviam explorando e escravizando o povo. Jesus
descobriu que precisava formar melhor seus discípulos e discípulas, pois viu
que a adesão popular inicial era ‘fogo de palha’ e ‘oba oba’. Com o avanço da
missão pública de Jesus, os conflitos com os poderosos da economia, da política
e da religião foram aumentando gradativamente. Em seus últimos dias, os embates[2] de
Jesus com as autoridades judaicas e grupos religioso-políticos renomados se
intensificaram (Cf. PALLARES, 1994, p. 117).
Quem eram os samaritanos para os judeus e vice-versa? Por
razões históricas, reinava entre judeus e samaritanos um grande ódio. Alguns
motivos aparecem na Bíblia ao falar da infidelidade religiosa. Por exemplo, samaritanos
fazem resistência à reconstrução do templo de Jerusalém, após o retorno do
exílio babilônico (Cf. 2Rs 17,24-41 e Esd 4,1-5). Em Eclesiástico 50,25-26, os
samaritanos são considerados “um povo
estúpido”. Talvez Eclo 50,25-26 tenha influenciado o Evangelho de João (Jo
4,9), onde diz que os samaritanos não se davam bem com os judeus e Jo 8,48,
onde os judeus acusam Jesus de ser samaritano e, portanto, endemoniado. Uma interpretação
rabínica de Êxodo 21,14 diz expressamente que os samaritanos não são
“próximos”. “Do lado judeu, a hostilidade
era tão grande que nas sinagogas os samaritanos eram frequentemente malditos;
os judeus rezavam a Deus para não dar a eles nenhuma parte na vida eterna,
recusavam um testemunho feito por um samaritano, não aceitavam nenhum serviço
deles” (FEUILLET, 1980, p. 345).
“As relações entre os judeus e os mestiços
samaritanos, que estiveram submetidas às mais diversas oscilações, tinham experimentado
nos tempos de Jesus especial agravamento, depois que os samaritanos, entre os
anos 6 e 9 da Era Cristã, em Jerusalém, durante uma festa da Páscoa, por volta
da meia‑noite, tornaram a praça do Templo impura, esparramando aí ossadas
humanas; reinava de ambas as partes ódio irreconciliável. Vê‑se então
claramente que Jesus e o Evangelho de Lucas escolhem exemplos extremos” (JEREMIAS,
1976, p. 203). Segundo o historiador do primeiro século, Flávio Josefo, “os samaritanos armaram emboscadas para peregrinos
que vinham às festas judaicas e o procurador Cumanus, subornado pelos
samaritanos, não interveio. Assim judeus atacaram vilas samaritanas e
massacraram seus habitantes” (GIUSEPPE, 1904, XX. 5,4).
Muitos acontecimentos contribuíram para piorar as
relações entre samaritanos e judeus, tais como, a construção de um templo
samaritano sobre o Monte Garizin no 4º século antes da Era Cristã, e que foi
destruído pelos judeus sob o reinado de João Hircano em 129 antes da Era Cristã.
O Monte Garizin tem quase 3 mil metros de altitude e é muito mais imponente do
que o Monte Sion, onde foi construído o templo de Jerusalém. A própria questão
geográfica pode ter gerado ciúmes e críticas entre judeus e samaritanos. Também
azedou as relações entre samaritanos e judeus a finalização do Pentateuco
Samaritano na segunda metade do 2º século antes da Era Cristã. O texto sagrado
para os samaritanos se reduz ao Pentateuco (Torá), os cinco primeiros livros da
Bíblia, com algumas diferenças do Pentateuco judeu-cristão. Os samaritanos
recusam os demais livros da Bíblia como textos inspirados.
Esse "ódio irreconciliável" entre judeus e
samaritanos foi cultivado por quase mil anos de história. É possível que tenha
se iniciado após a morte do rei Davi, com a separação dos Reinos do Norte e do
Sul, em 931 antes da Era Cristã, quando Roboão se tornou rei em Judá, com
“duas” tribos, no sul, e Jeroboão se impôs como rei em Israel, nas “dez” tribos
do norte. Esta separação foi forçada e violenta e certamente deixou muitas
feridas (Cf. 1Rs 11,26-12,33). Em 722 antes da Era Cristã, o povo do Reino do
Norte foi exilado para a Assíria. É provável que os judeus "sulistas"
tenham cantado vitória dizendo: foram exilados, porque eram infiéis à Aliança e
idólatras. A Assíria "repovoou" o norte da Palestina com pessoas das
mais diversas etnias. No coração dos samaritanos nortistas pode ter ficado ressentimento.
A vez dos judeus "sulistas" chegou entre 597 e 587 antes da Era
Cristã, quando, após vários exílios, foram exilados para a Babilônia. Os judeus
do sul sentiram na pele aquilo que já tinha se passado com os
"irmãos" do norte. Depois vieram as diversas tentativas de retorno
para a Palestina, terra da promessa de Javé aos povos escravizados. A volta do
exílio e o processo de reconstrução foram muito complicados, porque havia
resistência dos judeus e samaritanos quanto à fixação novamente na terra. É a
partir desta história que se entendem os diversos atritos e agressões que se
sucederam entre judeus e samaritanos.
Nos tempos do rei Herodes houve um grande crescimento
econômico, à custa de uma tremenda injustiça social. Muitas terras de judeus
foram expropriadas no norte da Palestina, o que gerou uma massa de
desempregados urbanos no sul, com consequentes distúrbios sociais inseridos em
um contexto propício para a disseminação de insegurança social.
O Samaritano apontado pela Campanha da Fraternidade de
2020 como modelo/exemplo a ser seguido era: um personagem anônimo; identificado
pelo seu país de origem; estrangeiro; impuro e herege, segundo os judeus. “Está
em viagem”, no mesmo movimento que o Sacerdote e o Levita; não se sabe se ele
ia ou vinha de Jerusalém e este detalhe é importante: tanto o assaltado, quanto
o sacerdote e o levita viajavam no mesmo sentido, de Jerusalém para Jericó, mas
é possível que o samaritano estivesse viajando na direção contrária. Isto pode
significar que o samaritano tinha suas responsabilidades pessoais; estava
"em viagem" (de Jerusalém a Jericó?) trabalhando. Enquanto isso, o
sacerdote e o levita estavam voltando de seu turno de trabalho no templo, em
Jerusalém, e esta circunstância lhes daria maior disponibilidade de tempo.
Oxalá a Campanha da Fraternidade de 2020, na sua 56ª edição, nos ajude a
perceber que há muitos padres, pastores e leigos assumindo, na condução de
igrejas, postura de Sacerdote e Levita: insensíveis aos clamores do povo
injustiçado do nosso querido Brasil. Muitas vezes, com espiritualismos,
puritanismos, vida cômoda e amputando a dimensão social do Evangelho de Jesus
Cristo, esses falsos pastores ficam só na “toca” dos templos religiosos e se
fazem de cegos diante dos clamores dos crucificados dos nossos dramáticos dias.
Entretanto, existem, graças a Deus, muitas pessoas que são consideradas
‘impuras’, ‘hereges’, ‘de fora’ dos templos, ‘comunistas’ ... que, na prática,
estão sendo solidárias assim como foi o “bom” samaritano. Ah! O samaritano não
fez solidariedade ingênua, assistencialista que gera dependência. O samaritano
foi também profeta, pois exercitou um tipo de solidariedade que deixou brasas
sobre a cabeça do sacerdote, do levita, do escriba (doutor da lei = teólogo) e,
provavelmente dos podres poderes políticos, econômicos e religiosos da época.
Referências.
FEUILLET, A. “Le bom
Samaritain (Luc 10,25-37). Sa signification christologique et l’universalisme
de Jésus,” EspVie 90 (1980), p. 345.
GIUSEPPE, F. Antiquités Judaiques. Paris, 1904, XX.
5,4.
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas,
1976.
PALLARES, J. C. Dios es Puro Corazón, la misericordia de Dios en San Lucas. Messico, 1994.
BH,
MG, 03/3/2020.
Obs.: Os vídeos nos
links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Sr. Joel Pereira Gonçalves, 100 anos nas ruas de
Belo Horizonte/MG, bom samaritano. 20/4/17
2 - Palavra Ética na TVC/BH: Fernando de Gois, bom
samaritano da Chacará 4 pinheiros/trecheiro. 20/06/16
3 - Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de
crianças a adultos na rua. (1a parte). 06/16/16
4 - Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de
crianças a adultos na rua (2a parte). 14/06/16
5 - Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de crianças
a adultos na rua (3a parte). 14/06/16
6 - Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de
crianças a adultos na rua (4a parte). 14/06/16
7 - Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de
crianças a adultos na rua (5a parte) 14/06/16
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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