DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo? Por Gilvander Moreira[1]
No
Brasil, a Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988 pode ser vista como
uma espécie de Livro do Deuteronômio na vida do povo brasileiro. Após muita
luta social, resgatando a memória das lutas de resistência popular, o povo
organizado, na luta, conquistou a inserção de vários princípios e regras na
Carta Magna para garantir respeito à dignidade de todas as pessoas, tais como:
‘função social da propriedade’, ‘desapropriação de latifúndios que não
cumprem sua função social’; forte ênfase nos direitos sociais, entre os quais estão: ‘o direito à educação, à saúde, à terra, à
moradia, ao meio ambiente saudável e equilibrado’; princípios libertadores,
ou seja: ‘respeito à dignidade da pessoa
humana’, ‘direitos humanos’, ‘liberdade de expressão’, ‘espírito republicano’, ‘direito de manifestação’, ‘liberdade religiosa’; prescrição para se
demarcar as terras dos Povos e Comunidades Tradicionais, tais como: ‘indígenas,’ ‘quilombolas’ etc.
Tudo isso está assegurado na Constituição Federal, mas a
classe dominante, cotidianamente, mais do que impedir a efetivação desses
direitos sociais, os destroem. A história demonstra que só com luta social
permanente se conquistam direitos e se impedem retrocessos de direitos
conquistados com suor e sangue pela classe trabalhadora. Se o povo se acomoda,
vai sendo violentado aos poucos, até ser sacrificado.
O
livro do Deuteronômio contém narrativas de um povo comprometido pela ALIANÇA (BeRiT, em hebraico,) com Yahweh, Deus
solidário e libertador, que “libertou do
Egito o povo escravizado”. O fio condutor do Deuteronômio é um povo que
busca, eticamente, colocar em prática o projeto de Aliança firmado entre eles,
POVO escravizado por mais de 500 anos sob o imperialismo dos faraós no Egito, e
o Deus YAHWEH, acima de tudo, libertador. Para isso, marcham no deserto por
cerca de “40 anos”, a fim de conquistar uma “terra onde corre leite e mel” (Dt 26,9), e, no final, ao sopé do
Monte Sinai, celebram a projetada Aliança.
Por
isso, o livro de Deuteronômio rechaça, com veemência, as práticas que se
ancoram em imagens distorcidas de Deus: idolatria.
Os redatores e as redatoras do livro de Deuteronômio são tão radicais contra a
idolatria e percebem tão bem que os falsos profetas e os falsos pastores são
propagandistas da idolatria, que alertam: “Não
dê ouvidos a profeta que apresenta sinal ou prodígio. Mesmo que apresente
prova, não dê ouvidos!” (Dt 13,2-4). Mais! Falso profeta não pode ser
respeitado e nem tolerado: “O falso
profeta deverá ser morto.” (Dt 13,6). É claro que não podemos entender esse
versículo como uma autorização para pena de morte para os falsos profetas e
falsos pastores, mas como um alerta para os estragos humanos e sociais que os
mesmos causam no tecido social. O correto e ético é ‘puxar o tapete’ que sustenta esses falsos profetas e pastores,
retirando deles todas as armas de morte que usam, com sutilezas, para enganar o
povo, ao invés de cuidar desse povo injustiçado.
O
texto de Dt 15,12-18, que apresenta um ensino sobre a libertação dos escravos
hebreus, retoma e desenvolve a lei que está em Ex 21,2-6; fazendo isso, porém,
em linguagem que liberta e evangeliza, e não em linguagem legislativa.
“Quando um de seus irmãos, hebreu ou
hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você durante seis
anos. No sétimo ano, você o deixará ir, em liberdade. Contudo, quando você
deixar que ele vá em liberdade, não o despeça de mãos vazias: carregue os
ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de
uva. Dê-lhe de acordo com a bênção que Javé seu Deus tiver concedido a
você. Lembre-se que você foi escravo no Egito, e que Javé, seu Deus,
resgatou você” (Dt 15,12-15).
O
texto evoca um contexto do povo da Bíblia sobrevivendo em tempos de escravidão,
sob relações sociais escravocratas, nas quais quem detinha poder econômico e
político comprava pessoas como se fossem mercadoria e as escravizava. Vários
povos dos tempos bíblicos foram escravizados durante uns 500 anos pelo
imperialismo dos faraós no Egito, mas se libertaram por volta de 1200 antes da
Era Comum. Após alguns séculos, foram escravizados novamente pelo Império
Assírio, depois pelo Império Babilônico e, posteriormente, pelo Império Persa,
Grego, Romano e, na sucessão da história, pelos impérios: português, espanhol,
inglês, estadunidense, império das transnacionais etc., como assistimos hoje.
Pela
narrativa de Dt 15,12-15, os escravos são reconhecidos pelo autor de
Deuteronômio como ‘irmãos’ e, surpreendentemente, inclui a perspectiva de
gênero (‘hebreu’ ou ‘hebreia’). É inspirador ver no Deuteronômio o
reconhecimento da igualdade de dignidade entre homem e mulher. Mesmo que o
contexto seja de escravidão, o texto ensina que a escravidão não será “ad
aeternum”: será apenas por ‘seis anos’. Ninguém nasce destinado a sobreviver,
pela vida inteira, como escravo. Nascemos para a liberdade, mas não para uma
liberdade abstrata. Liberdade, sim, mas com condições materiais objetivas capaz
de efetivá-la.
A orientação para descansar no 7º ano, Ano Sabático, é
oriunda da mística segundo a qual o Deus criador, após criar todas as criaturas
nas ondas da evolução, descansou no
7º dia. Por isso, intui-se que Deus quer que descansemos no 7º dia. Daí decorre
a orientação para deixar a mãe terra descansar no 7º ano, em uma perspectiva de
agricultura ecológica. E após 49 anos (7 anos x 7 anos), no Ano do Jubileu,
deve se fazer uma reorganização geral da sociedade: as terras compradas ou
invadidas deverão ser devolvidas aos seus ancestrais, todas as dívidas devem
ser perdoadas, as pessoas escravizadas devem ser libertadas e a sociedade deve
ser revolucionada, para que todos e todas tenham condições materiais e
objetivas de ‘ter vida e liberdade em abundância’.
Cultivando
essa mística, o livro de Deuteronômio alerta: “Não escravize ninguém para
além de seis anos” (Dt 15,12a.18). “Liberte
quem você escravizou, no sétimo ano.” (Dt 15,12b.18). Isso é anunciado de
forma enfática, pois se diz em Dt 15,12 e se repete em Dt 15,18 na conclusão da
unidade textual. No entanto, muito eloquente é o fato de que o livro de
Deuteronômio não prescreve apenas libertação formal, que concede liberdade
abstrata, mas que muitas vezes, até aumenta as amarras escravizadoras, como
aconteceu no Brasil. Em 1850, 38 anos antes da Abolição formal da escravidão de
milhões de negros escravizados, escravizou-se a terra, com a Lei 601, Lei de
Terras, ao legislar, afirmando que a única possibilidade de acesso à terra
seria por meio de compra. Criou-se, assim, o cativeiro da terra antes de acabar
com o cativeiro dos negros escravizados. Procedendo assim, juridicamente se
pavimentou a estrada para se criar outro tipo de escravidão sob a égide de
liberdade abstrata e formal. Com a abolição formal da escravidão no Brasil, em
13 de maio de 1888, os negros escravizados saíram de mãos vazias, sem jamais
ter condições de ter acesso à terra, pois não tinham dinheiro para comprar nem
mesmo um sítio. Consequentemente, de escravizados
juridicamente se tornaram sem-terra,
iniciando o que muitos chamam de escravidão moderna ou contemporânea, na
prática, em muitos casos, até mais cruel. Como? Nos moldes de intensificação do
trabalho por metas de produção, ganho por produção, trabalho intermitente,
terceirizado, uberizado ou... sabe-se
lá o que mais...
Portanto,
relacionando o Livro do Deuteronômio com a Constituição de 1988, reconhecemos a
caminhada e a luta do povo como um constante êxodo, em busca de libertação,
guiado por um Deus que, sendo Pai-Mãe, atrai, educa, é Deus-Amor, Deus-Libertador!
Belo Horizonte, MG, 09/9/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o
Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020
2 - Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do
CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral - 18/6/2020
3 - Livro do Deuteronômio, Levitas
Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG - Parte I
4 - Livro do Deuteronômio, a pregação
dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa - Parte II
5 - Livro do Deuteronômio - chaves de
leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI. Vídeo 1
5 - Deuteronômio/Mês da Bíblia
2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 - 02/2/2020
6 - Livro do Deuteronômio - Mês da
Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael
Rodrigues - Entrevista completa
7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia
de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020
8 - Live - Deuteronômio, um grito por justiça:
resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
Nenhum comentário:
Postar um comentário