sábado, 27 de março de 2021

“Mataram Irmã Dorothy”, mas ela vive em nós, na luta pela Amazônia. Por Frei Gilvander

 “Mataram Irmã Dorothy”, mas ela vive em nós, na luta pela Amazônia. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Irmã Dorothy Stang



Outro dia fui convidado para apresentar um “filme de combate” para um site[2] do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação Social da UFMG[3].  Feliz com o convite, decidi apresentar o Documentário “Mataram Irmã Dorothy”, com direção de Daniel Junge e narração de Wagner Moura, exibido na Discovery e disponibilizado no Youtube e é sobre ele que agora escrevo aqui. Apresento o Documentário “Mataram Irmã Dorothy” por vários motivos expostos a seguir.

Por ser documentário que registra a brutal injustiça agrária e socioambiental que campeia e se reproduz cotidianamente no Brasil, com devastação crescente dos biomas, entre os quais a Floresta Amazônica, e expropriando e expulsando camponeses/as para as periferias das grandes cidades, as novas senzalas. O Documentário “Mataram Irmã Dorothy” registra que em uma manhã de sábado, dia 12 de fevereiro de 2005, irmã Dorothy Stang, uma idosa de 73 anos, foi assassinada à queima-roupa, com sete tiros, por jagunços de latifundiários grileiros de terra no município de Anapu, no oeste do Pará, na Amazônia. Um consórcio de fazendeiros pagou 50 mil reais aos jagunços pela execução de Irmã Dorothy, uma anciã indefesa, que portava apenas uma Bíblia em um embornal. Segundo um sobrevivente e testemunha, ela teria lido um versículo bíblico para os jagunços antes de eles a assassinarem: “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6).

Apresento este documentário, porque é uma amostra da cumplicidade do Estado com a violência que campeia no Brasil. Interessante observar as manobras asquerosas feitas pelos fazendeiros mandantes e por seus advogados, que, com acusações absurdas, tentam transformar a vítima Irmã Dorothy em algoz. As cenas de julgamento apresentadas no documentário são amostras de como o judiciário brasileiro trata os crimes das pessoas assassinadas, enquanto defendem com intrepidez os direitos humanos fundamentais. Por exemplo, um dos fazendeiros mandantes do crime foi condenado a 30 anos de cadeia no 1º júri popular. Um ano após, em novo julgamento, esse mandante foi inocentado. E, após titânica luta por justiça, dia 07 de abril de 2009, o julgamento que tinha inocentado o fazendeiro Vitalmiro foi anulado.

O Documentário “Mataram Irmã Dorothy” é muito importante também, porque mostra a longa história de luta da Irmã Dorothy, desde 1967, sendo anjo da Amazônia, uma guia na luta pela terra e guerreira na defesa da Floresta Amazônica. Irmã Dorothy dava força aos posseiros sem terra e denunciava os grileiros que estavam devastando a Amazônia. Em 2009, 1/5 da Floresta Amazônica já tinha sido devastada. Diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde (OMS), a médica María Neira afirma que a pandemia do coronavírus é mais uma prova da perigosa relação entre os vírus e os desmatamentos. Em livro, diz ela: “Os vírus do ebola, sars e HIV, entre outros, saltaram de animais para seres humanos depois da destruição de florestas tropicais.”

O Documentário também mostra a mística e a espiritualidade mais profunda que orientava a atuação da Irmã Dorothy. Para ela, “andar na Floresta Amazônica era como andar nos braços de Deus.” O Documentário revela o infinito amor que Irmã Dorothy tinha para com a Floresta Amazônica e para com os/as camponeses/as que tinham sede de justiça, de terra, de pão e de liberdade. O Documentário “Mataram Irmã Dorothy” apresenta também o pioneirismo da proposta defendida por Irmã Dorothy: a criação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que prescrevia que se podia produzir em 20% do lote no Assentamento, mas exigia-se a preservação de 80% deste. Se esse modelo já era sensato, necessário e justo, agora muito mais com o avanço do desmatamento na era de necropolítica, de “passar a boiada”, conforme acontece no desgoverno do antipresidente genocida Jair Bolsonaro. O desmatamento na Amazônia continua em níveis inaceitáveis.

No Documentário “Mataram Irmã Dorothy” está também um pouco da história do 1º PDS, eloquentemente chamado de Assentamento Esperança, com 600 famílias de posseiros sem-terra que assumiam com afinco o trabalho para produzir alimentos saudáveis em 20% do lote, com a condição de preservar os 80% restantes garantindo, assim, a preservação da Floresta Amazônica. Os testemunhos são muito eloquentes, como o de um camponês que exclama: “Com 55 anos de vida, é o meu 1º lote. Agradeço em primeiro lugar a Deus e depois à Irmã Dorothy.” Muito nos diz também o fato da serraria ser o símbolo do município de Anapu. “Acham que serraria é a vida do município”, denunciava Irmã Dorothy.

Marcante também neste documentário de combate é a postura do Procurador do Ministério Público Federal (MPF), Felício Pontes, que acolhia sempre as denúncias feitas pela Irmã Dorothy e continua atuando de forma idônea e aguerrida para que a justiça agrária se implantasse na região de Anapu. Digno de nota ainda no Documentário é a coragem demonstrada por Irmã Dorothy, que enfrentava de cabeça erguida os latifundiários grileiros de terra e não desistia mesmo diante das inúmeras ameaças de morte. Ela dizia sempre: “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar”. Irmã Dorothy tombou na luta, foi martirizada, mas se tornou semente de justiça agrária e por preservação da Floresta Amazônica. Irmã Jane Dwer continua a missão da Irmã Dorothy, denunciando: “Houve um consórcio de latifundiários para matar Irmã Dorothy e silenciá-la.”

No Documentário “Mataram Irmã Dorothy” causa repulsa e indignação a postura venal e covarde de Américo Leal, advogado dos latifundiários grileiros. Sem escrúpulo nenhum, com requintes de calúnias e mentiras, defendia que a Irmã Dorothy era a responsável pela sua própria morte. Só faltou ele dizer: “Peço ao júri que condene a 30 anos de prisão a Irmã Dorothy, morta com sete tiros à queima-roupa.” Antes de ser assassinada, Irmã Dorothy “deu nome aos bois’ e apontou quem eram os latifundiários que a ameaçavam. Destemida e cheia de esperança, Dorothy dizia: “Se cai um, mil se levantam.” Mataram não apenas uma pessoa, mas uma bandeira. Irmã Dorothy era cidadã do mundo. Entretanto, Dorothy não foi apenas sepultada, foi semeada e plantada na mãe terra e, agora em vida plena, vive em milhares de militantes na luta pela terra e pela preservação da Floresta Amazônica.

Irmã Dorothy defendia a Amazônia, por amor e porque sabia que lá encontra-se a principal fonte produtora de chuvas em grande parte da América do Sul. O xamã David Kopenawa, do Povo Yanomami, no livro A Queda do Céu, de leitura imprescindível, pergunta: “Será que os brancos não sabem que se acabar com a floresta, acabará com a água e sem água não há vida?” Na Amazônia há muita água no subsolo em aquíferos, no solo, nos rios, lagos e igarapés. Cada árvore centenária da Amazônia exala na atmosfera, por dia, mais de mil litros de água na forma gasosa, como a Sumaúma, uma das maiores árvores da Amazônia. Em toda Amazônia, as árvores com raízes profundas colocam no ar mais de 20 bilhões de toneladas de água por dia. Na atmosfera sobre território da Pan-Amazônia, se formam os rios aéreos voadores. Com as correntes de vento, a umidade produzida no processo de evapotranspiração forma os imensos rios aéreos voadores que, empurrados pelas correntes de ventos, criam as condições objetivas para que aconteçam chuvas no sudeste e no sul do Brasil, no Uruguai, no Paraguai e na Argentina. Esses rios aéreos voadores produzidos na Amazônia transportam uma quantidade maior de água do que os rios que estão na superfície do solo amazônico.

Conhecer de forma profunda a Amazônia se tornou uma necessidade para amarmos e defendermos de forma intransigente a sua preservação. Se não interrompermos com urgência a devastação ambiental da Amazônia, a desertificação da Amazônia causará a desertificação de grande parte do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, o aumento assustador da temperatura e o colapso d’água em várias regiões do Planeta Terra, o que tornará a vida humana impossível no Planeta Terra, nossa única Casa Comum. Imagine o que será da humanidade com a quantidade de dióxido de carbono jogada na atmosfera sem ter a floresta amazônica para absorver!

Enfim, esta minha modesta apresentação do Documentário “Mataram Irmã Dorothy” é apenas um aperitivo. Se você assistir a este documentário, você não será mais o/a mesmo/a, se tornará mais comprometido/a com lutas justas e necessárias. Irmã Dorothy dizia sempre: “A morte da Floresta é o fim da nossa vida”.[4] 

27/03/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Mataram Irmã Dorothy - Documentário

2 - Homenagens marcam os 16 anos do assassinato da Irmã Dorothy Stang

3 - Celebração dos 10 anos de martírio da Ir. Dorothy Stang

4 - DOROTHY STANG: A LUTA PELO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL | AMBIENTALISTA DA SEMANA | Marcela Miranda



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[3] Universidade Federal de Minas Gerais.

[4] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

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