Brasil na UTI: e agora? Por Frei Gilvander Moreira[1]
É tempo
de Páscoa, mas o Brasil continua afundado em uma das maiores sexta-feira da
paixão da nossa história. Sob as boas energias da Páscoa, que é passagem da
escravidão para a libertação de todas as correntes, com a alegria da presença
de Jesus Cristo ressuscitado no nosso meio, em nós, nos empobrecidos e em
todos/as os/as crucificados/as da história, em todas as forças de vida, temos
que seguir a luta pela salvação do povo brasileiro. A quaresma de 2021 passou,
mas a quarentena que a pandemia requer precisa continuar e com maior rigor. A
Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 terminou, mas tornou-se necessário encararmos
de forma permanente a luta para que o tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso
de amor” se torne uma realidade perene no nosso conviver social.
Escrito cerca
de 40 anos após os acontecimentos, no Evangelho de Marcos, na Bíblia, em Mc
15,33-41 podemos encontrar uma cena altamente eloquente: Jesus de Nazaré crucificado.
“Escuridão sobre toda a terra”. Jesus
exclama: “Eloi, Eloi, lamá sabactâni?”,
que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por
que me abandonaste?” [...] “Jesus
lançou um forte grito, e expirou. A cortina do santuário se rasgou de alto a
baixo, em duas partes. Um oficial do exército, que estava bem na frente da
cruz, viu como Jesus havia expirado, e disse: “De fato, esse homem era mesmo
Filho de Deus!””. De fato, condenaram um justo e inocente, que de tão humano
se tornou Filho de Deus, à pena de morte, sob crucifixão – a pena mais
execrável imposta pelo Império Romano -, após processo falso, sob a presidência
de juízes suspeitos e parciais, em duas instâncias: 1) uma religiosa, sob
Caifás, sumo-sacerdote, que presidia o sinédrio - um tipo de senado religioso,
administrativo e jurídico – dominado por saduceus, os grandes invasores de
terra da época que expropriavam os camponeses empurrando-os para a miséria; 2) e
uma instância política, sob Pilatos, governador imposto pelo Imperialismo Romano,
que “lavou as mãos”, mas pela neutralidade impossível ficou com as mãos suja de
sangue, pois “entregou Jesus para ser crucificado”.
Com essa
trama brutal dos podres poderes da época, só podia mesmo resultar em “noite
escura sobre toda a terra”. Por ter se tornado sumamente humano, Jesus Cristo
sente o horror da crueldade que lhe era imposta e clama: ‘Por que está
acontecendo isso comigo? Meu Deus me abandonou?’ Eis uma experiência
profundamente humana. Quando uma tragédia se abate sobre nós, as primeiras
perguntas são: Por que isso? Tem a mão de Deus nisso? Entretanto, precisamos
afastar e banir a interpretação bíblico-teológica que chega ao absurdo de
afirmar que Jesus Cristo teria sido crucificado, porque Deus quis para nos
salvar da condenação após a morte. Esta afirmação é absurda e execrável, por
vários motivos: 1) Um Deus que quisesse a morte do seu filho seria um deus
sádico e masoquista, não seria Deus, Pai e Mãe de infinito amor; 2) Não podemos
espiritualizar e negar a trama histórica acontecida, que diz que Jesus foi
condenado à morte, torturado e crucificado, porque pelo seu ensinamento
libertador e por sua práxis transformadora, ele consolava quem estava sendo injustiçado/a
e, assim, incomodava muito os opressores que eram titulares dos poderes
religioso, político e econômico; 3) Jesus Cristo se tornou servo sofredor e doou
sua vida por amor ao próximo, testemunhando que o caminho para construirmos uma
verdadeira Páscoa inclui necessariamente doar a vida pelo próximo colocando em
prática a lógica do amor e os princípios da misericórdia e da indignação contra
toda e qualquer injustiça. Isso desmascara os opressores e exploradores.
A
ressurreição de Jesus Cristo atesta que faz história e aponta o caminho justo a
seguir quem se doa ao próximo construindo uma sociedade justa, solidária,
(macro)ecumênica, sustentável ecologicamente e respeitosa quanto à imensa
diversidade cultural. Por outro lado, foi, é e sempre será jogado na lata de
lixo da história os opressores e exploradores, os que adoram na prática o ídolo
capital. Nas entrelinhas, Jesus crucificado pergunta: “Meu Deus, meu Deus, para
que me abandonaste?” Diante desta pergunta, nas entranhas da história, o Deus
de infinito amor responde: ‘Não te abandonei. Os opressores te condenaram à
morte cruel, mas eu estou contigo, porque te amo imensamente assim como amo
todos/as os/as outros/as bilhões de filhos/as. Desta brutalidade surge um
sinal: que todos/as sigam o seu exemplo, vivendo e lutando como você, meu amado
filho viveu e lutou’.
“A
cortina do templo se rasgou”. Ou seja, o projeto de Jesus rompeu radicalmente
com o projeto dos podres poderes acumpliciado com o Império Romano. E também
não há mais separação entre história profana e história da salvação. Há uma
única história e é nas entranhas da história que o divino age e está
ressuscitado no nosso meio. Por fim, é olho-no-olho, cara-a- cara, que até um
ser humano usado para reproduzir a escravidão e a superexploração do Império
Romano, um soldado, concluí: “Realmente,
este crucificado é Filho de Deus!”
O povo
brasileiro continua afundado em uma das maiores sexta-feira da paixão da nossa
história. Mais de 340 mil irmãos e irmãs nossos já foram crucificados pela
covid-19 e pela política de morte genocida em curso no Brasil. “Eu não consigo
mais respirar”, clamam pedindo socorro milhares de irmãos e irmãs nossos
entubados ou na fila de espera por uma UTI. A espada de dor da fome voltou a
golpear milhões de corações de mães que ouvem seus filhos pedindo pão e não têm
para lhes oferecer. O coronavírus está sendo letal para milhões em todo o mundo.
Quem tem fome tem pressa, pois a fome mata como uma bomba que implode a pessoa
por dentro e impõe morte lenta. Em 2,3 anos, com a política de morte do inominável
antipresidente, o povo brasileiro empobreceu a níveis de “50 anos” atrás. Ai de
quem negar os sinais dramáticos da brutalidade da pandemia da covid-19 e do
desgoverno dos fascistas e genocidas que se apossaram do poder no Executivo
Federal e está também em cerca de 70% do Congresso Nacional e com tentáculos no
Supremo Tribunal Federal (STF), em empresários que adoram o ídolo capital e em
pessoas cegadas por fake news disseminadas por fundamentalistas que dizem
defender abstratamente a família, mas não praticam o que dizem, estão matando
milhões de famílias aos poucos, de muitas formas!
Os sinais são alarmantes. O número de mortos pela
covid-19 e de difusão do contágio segue aumentando dia a dia. Só em março
último, foram 66 mil mortos no Brasil, número maior do que o número de vítimas no
mesmo período em 109 países. Já ultrapassamos a média de 3 mil mortos por dia. E
os dados oficiais de hospitais brasileiros apontam que o
número de mortes por covid-19 já pode ter passado de 443 mil, quase 120 mil a
mais que as estatísticas divulgadas pelo desgoverno federal. A mesma estimativa
aponta que morrem cerca de 4 mil pessoas por dia no país. Pelos registros
oficiais, com apenas 3% da população mundial, o Brasil
tem 33% das mortes por dia no mundo. Pesquisa
da Universidade de Washington e de vários pesquisadores brasileiros, entre os
quais o neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke (EUA)
Miguel Nicolelis, prevê para abril 100 mil mortos pela covid-19 podendo chegar
em julho de 2021 com quase 600 mil mortos. Estão em falta vários tipos de
remédios necessários para cuidar dos milhares que estão internados em UTIs. Assim,
de abril a junho poderemos ter cerca de 300 mil mortos, o que levará o Brasil
ao colapso funerário e a um ponto de não retorno da pandemia. Segundo o
professor Miguel Nicolelis, esse colapso funerário resultará em contaminação do
solo, do subsolo, dos lençóis freáticos, podendo eclodir muitas outras doenças epidêmicas
gravíssimas. Todos os alertas dos cientistas têm se cumprido.
Repudiamos
com veemência a decisão do ministro Nunes Marques, do STF, de 03 de abril, que
determinou a abertura de igrejas para cultos/celebrações, fazendo, assim, uso
político do Judiciário para favorecer interesses econômicos de grupos,
inclusive religiosos, amparado em falsas e grosseiras motivações constitucionais.
A liberdade de culto não pode comprometer outros direitos como a saúde e a vida
das pessoas. Malditos os falsos religiosos que abusam da fé dos pobres para se
enriquecerem, estão mais interessados no dízimo do que em cuidar espiritualmente
das pessoas. Caso o plenário do STF não casse a decisão injusta do ministro Nunes
teremos um aumento do contágio e daqui a 15 dias veremos o aumento do número de
pessoas com covid-19 e de mortos. Prescrever que haja cultos com apenas 25% da
capacidade das igrejas é medida insana, porque no 1º dia após a decisão vimos
pelo Brasil afora centenas de igrejas lotadas. As prefeituras e a Polícia
Militar não têm efetivo suficiente para fiscalizar todas as igrejas. O
descontrole da pandemia exige com urgência o que já foi feito em vários países
bem governados: lockdown nacional rígido de pelo menos 30 dias, sem
aglomerações, com circulação apenas de atividades essenciais, com fechamento de
portos, aeroportos, rodovias e rodoviárias. Tornou-se questão de vida ou morte:
evitar aglomerações, levar a sério as medidas sanitárias de distanciamento
social e corporal, uso correto de máscaras, higienização das mãos com
frequência, vacinação de pelo menos 2 milhões de pessoas por dia, auxílio
emergencial justo e digno, de, pelo menos, 600 reais para mais de 60 milhões de
pessoas até o fim da pandemia, políticas públicas que garantam a vida das
micro, pequenas e médias empresas. Quem no desgoverno federal e no Congresso
Nacional determinou o fim do Auxílio Emergencial de 600 reais em dezembro de
2020 e a recriação somente de uma migalha de 250 reais apenas após três meses sem
nenhum auxílio está sendo cúmplice do genocídio do povo e está com as mãos
encharcadas de sangue. Não dá mais para tolerarmos a cumplicidade de 70% dos
deputados/as e dos/as senadores/as e de parte do STF com o genocídio
protagonizado pelo desgoverno federal. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco,
e o presidente da Câmara Federal, Arthur Lira, ao não colocarem em votação os
mais de 60 pedidos de impeachment do antipresidente, estão sendo cúmplices do
genocídio em curso. O STF também está tolerando o intolerável: política de
morte que viola com requintes de crueldade a Constituição Federal. Na prática,
o Congresso Nacional e o STF estão tentando servir a dois senhores: o mercado
idolatrado (interesses do grande capital) e a vida do povo, oferecendo apenas
migalhas para a parte mais empobrecida da população e bilhões para os
banqueiros, por exemplo. Com medidas paliativas, a pandemia seguirá se
agravando e matando massivamente. O Evangelho de Mateus registra que para Jesus
Cristo “ninguém pode servir a dois
senhores. Vocês não podem servir a Deus e ao capital” (Mt 6,24).
Enfim,
quanto mais continuar só com vacinação a conta gotas, sem auxílio emergencial
justo e digno e sem lockdown sério, só aumentarão os milhares de mortos;
podendo chegar a mais de 1 milhão. E a quem está resistindo, sugiro já ir
treinando e se acostumando a viver com pouco, de forma simples e austera, pois
nunca mais será possível voltar ao “normal capitalista de antes”. Precisamos
voltar ao estilo de vida dos povos originários, dos indígenas, Povos e
Comunidades Tradicionais: conviver de forma respeitosa com a natureza e
cultivar um estilo de vida simples.[2]
Eis a condição para a humanidade não ser extinta da nossa única Casa Comum, o
planeta Terra.
07/04/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram
o assunto tratado acima.
1 - “Brasil à beira de colapso funerário, do ponto
de não retorno da pandemia”, alerta Miguel Nicolelis
2 - Live - FRATERNIDADE E DIÁLOGO: LUTA PELA VIDA.
Feliz Páscoa com vacina, já! E Fora, Bolsonaro!
3 - Saúde e Educação em Tempos de Pandemia. Vacina,
Já! Auxílio Emergencial, já! Fora, Bolsonaro, já!
4 - Margareth Dalcomo, da Fiocruz: "Teremos o
março mais triste de nossas vidas." 14/3/2021
5 - "Não tenho ar": o desespero de
brasileiros na semana mais letal da pandemia - Fantástico - 07/3/2021
6 - Bolsonaro é “imoral” e “genocida”, afirma o
Padre Adauto Tavares, da Paraíba, em missa – 04/03/2021
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica
no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora
em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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