terça-feira, 18 de maio de 2021

Dragão do Apocalipse e Mulher em dores de parto: e nós? Por Frei Gilvander

 Dragão do Apocalipse e Mulher em dores de parto: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]


O contexto do capitalismo com agronegócio causando brutal devastação sociambiental crescente, dizimando os biomas do Cerrado, da Mata Atlântica, da Amazônia, do Pantanal, dos Pampas e da Caatinga, desterritorializando o campesinato e os Povos e Comunidades Tradicionais, desertificando territórios, envenenando a terra, as águas, o ar e os alimentos com exagero de agrotóxicos e metais pesados jogados nos cursos d’água, desmatamento “sem fim” que levou a irupção da pandemia da covid-19, inclusive, nos leva a perguntar: está em ação o dragão do Apocalipse? A mulher em dores de parto do Apocalipse também está em ação? Quem vencerá? E nós, de que lado estamos?

Em linguagem simbólica para animar a quem está na luta, para não desistir e para driblar os opressores, na Bíblia, o livro do Apocalipse apresenta a visão de uma mulher e de um dragão (Ap 12,1-12). No céu, uma mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas, grávida e, em dores de parto, gritava. Apareceu um grande dragão, cuspindo fogo, com sete cabeças, sete diademas e dez chifres. Sua calda devastava 1/3 das estrelas do céu. Diante da mulher, o dragão esperava a criança nascer para devorá-la. Após nascer, a criança foi arrebatada para junto de Deus e de seu trono e a mulher fugiu para o deserto, onde seria alimentada por Deus por 1.260 dias. Houve uma batalha no céu. O anjo Miguel e seus companheiros guerrearam contra o dragão e o venceram. Derrotado, o dragão foi expulso para a terra. No céu foi celebrada a grande vitória: a expulsão do dragão. Na terra, o dragão pôs-se a perseguir a mulher que deu à luz a uma criança salvadora, e empreendeu perseguição ferrenha aos descendentes da mulher: os que observam os mandamentos de Deus e são testemunhas de Jesus Cristo.

Nas visões anteriores, o autor do Apocalipse parte do ano 33 da morte e ressurreição de Jesus Cristo, para falar da caminhada das primeiras comunidades cristãs. No capítulo 12 de Apocalipse, o autor se encontra nos anos 90 do século I da era cristã. O autor volta, simultaneamente, ao momento da criação e ao momento da vitória de Jesus Cristo sobre a morte. No momento da criação, Deus tinha pronunciado a sentença contra a serpente e anunciado a vitória à descendência da Mulher (Gen 3,1-19). Esta vitória acabou por se realizar no momento da morte e ressurreição de Jesus. A visão dos dois grandes sinais no céu - da mulher e do dragão - evoca a sentença de Deus contra a serpente depois da queda no paraíso terrestre, que não é saudade, mas esperança, segundo o biblista frei Carlos Mesters.[2] Em uma perspectiva alegórica, podemos dizer que a mulher em dores de parto simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas, as classes trabalhadora e camponesa superexploradas. Simboliza também Maria, a mãe de Jesus, e todas as mulheres, do passado e do presente, que de alguma forma acreditam na força da vida vencendo as barreiras. As dores de parto simbolizam o sofrimento que a humanidade suporta para defender a vida e fazer nascer vida nova. O dragão, na época em que o texto foi escrito, anos 90 do século I da era cristã, simbolizava o império romano, que, como um dragão cuspindo fogo, escravizava 1/3 da população e mantinha em semiescravidão outro terço e empreendia guerras de conquista, por meio das quais anexava territórios e submetia povos e mais povos a esse poder que parecia invencível. O dragão recorda também a antiga serpente, aquela do livro de Gênesis, capítulo 3. Ele cresceu durante a história e virou dragão, bicho imenso. O dragão simboliza o poder do mal, a morte e tudo aquilo que oprime e sufoca a vida. Tem um poder muito forte. O dragão está diante da mulher para lhe devorar o menino que está nascendo, luta desigual entre vida e morte. Porém, Deus toma posição em favor da vida. O texto de Gênesis (Gen 3,15) funda a esperança, pois a Mulher vai vencer. Deus intervém e defende a vida (o menino e a mulher). O menino nasce, vive, morre, ressuscita e sobe ao céu.

A mulher é levada para o deserto por Deus, onde é alimentada por Deus durante 1260 dias. Trata-se de um número simbólico que indica o tempo (Kairos) do fim. Deste tempo, só Deus sabe a hora e a duração exata. O tempo de 1260 dias é o mesmo que “um tempo, dois tempos, meio tempo” (Ap 12,14), o mesmo que quarenta e dois meses, ou três anos e meio, ou ainda metade de sete, que é o número perfeito. Metade de sete é imperfeito, ou seja, limitado pelo poder de Deus. Como vimos, o dragão é expulso do mundo de cima e cai no mundo cá de baixo. Para o Apocalipse a história humana é como um grande julgamento. Deus está sentado no alto de seu trono, é o juiz, mas de infinito amor. Ao lado dele estão o promotor (satã), e o advogado (goel). O satã, que é o promotor, antiga serpente, sedutor de toda humanidade, tinha acusado a humanidade diante de Deus, mas Jesus, o resgatador (goel), pelo seu amor infinito manifestado em sua vida, ensinamento, morte e ressurreição, anulou a acusação que pesava sobre nós. Por isso, satanás perdeu a sua função de acusador. Com a vitória no mundo de cima, um cântico proclama a vitória e explica o sentido do que tinha acontecido: “foi expulso o delator que acusava dia e noite nossos irmãos diante de Deus” (Ap 12,10). A morte não é vista como uma derrota, mas como uma participação na vitória de Jesus que realizou no mundo de cima. Essa vitória de Jesus, no mundo lá de cima, repercute no mundo cá de baixo. Devido a esta vitória, o dragão passa a perseguir os descendentes da mulher, as comunidades. Entretanto, a mística apocalíptica nos diz que o dragão – o império romano na época e os podres poderes de todos os tempos – não vencerá a mulher que está gerando vida, mas será jogado na lata de lixo da história. A mulher grávida, símbolo de todas as forças de vida, triunfará sempre, mesmo que tenha que enfrentar “noites escuras”, genocídio e martírio.

Nos dias de hoje, inspirados/as pela narrativa apocalíptica da mulher grávida e sua criança – Jesus Cristo e todos/as que lutam para garantir condições de vida e de fraternidade real - parodiando o autor do Eclesiastes, podemos dizer que é tempo para resistir ao genocídio, tempo para confrontar o agronegócio, tempo para infiltrar com agricultura familiar agroecológica, tempo para se rebelar diante das discriminações, tempo para desmascarar as fake news, tempo para acumular forças para lutas massivas por direitos, tempo para a formação de lideranças, trabalho de base, educação popular etc, mas certamente não é tempo para cruzar os braços e se omitir, o que se revela em posturas de quem diz “não tenho nada a ver com isso”, “isso não me compete”, “está tudo dominado”, “nada mudará”. Mudará, sim! Já podemos ouvir os gritos do novo que está nascendo em meio a dores de parto na noite escura do capitalismo, máquina de moer vidas. Assim como a violência brutal que matou George Floyd gerou a indignação, a organização e a luta popular que fizeram desmoronar o poderio do “todo poderoso” Trump, a chacina do Jacarezinho e todas as mortes matadas; seja pela política genocida do desgoverno federal com a cumplicidade dos outros poderes; seja pelo agronegócio que desertifica os territórios e com uso abusivo de agrotóxicos envenena a terra, as águas, o ar e os alimentos; seja pelas mineradoras que vão estuprando as entranhas da mãe terra, apunhalando os ventres dos biomas, derramando mercúrio e outros metais pesados nos cursos d’água que resistem; tudo isso está gerando uma crescente indignação e a organização que farão eclodir em breve as lutas populares massivas que derrubarão do poder todos os impostores, fascistas, genocidas, capitalistas e superarão todas as políticas opressoras em curso.

Coloquemos em prática o que exortou e alertou o Papa Francisco, em visita à Comunidade de Varginha, Manguinhos, na periferia do Rio de Janeiro, em 25 de Julho de 2013: "Não se cansem de trabalhar por um mundo justo e solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo!... A Igreja, "advogada da justiça e defensora dos pobres diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, que clamam ao céu" (Documento de Aparecida, 395), deseja oferecer a sua colaboração em todas as iniciativas que signifiquem um autêntico desenvolvimento do homem todo e de todo o homem."

18/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - As mulheres e o mundo do trabalho: a luta por direitos, emprego e renda dignos e vacina, já!

2 - Patriarcalismo, não! Genocídio, Não! E Pai nossa da pandemia

3 - Quilombo Pontinha, Paraopeba, MG, exige REPARAÇÃO INTEGRAL da Vale. Renato Moreira-Vídeo 2 - 15/5/21

4 - "Rodoanel em BH e RMBH, absurdo dos absurdos: mais crimes sociambientais"-José Geraldo, MAB-Vídeo 15

5 - Quilombo Pontinha, em Paraopeba, MG, violentado pela Vale S/A. (Renato Moreira) – 13/5/2021 –Vídeo 1



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. o livro de Carlos Mesters, Paraíso Terrestre: saudade ou esperança? Petrópolis: Vozes, 1985.

terça-feira, 11 de maio de 2021

A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander

A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]

Atualmente no Brasil, muitos grandes templos estão sendo construídos: várias catedrais da Igreja Católica, imensos templos de igrejas neopentecostais e “templos” do deus capital (shoppings) etc. Para entender bem a dimensão e o significado destes templos faz bem recordarmos o culto à deusa Ártemis, na cidade de Éfeso, na Ásia Menor, na segunda metade do século I da era cristã. É bom considerar que a deusa Ártemis aparecia na sua estátua com a parte superior coberta por numerosos peitos que representavam a fecundidade da deusa. Sobre a cabeça, havia uma meia-lua. A estátua de Ártemis estava no meio do Artemision, imenso templo de 120 metros por 70, rodeado por 128 colunas de 19 metros de altura. O Artemision era o centro fervoroso de toda a região da Ásia Menor. As peregrinações e romarias ao Artemision produziam trabalho e riqueza a uma multidão de artesãos e comerciantes. Algo parecido com os grandes santuários religiosos da atualidade ou com os "santuários" da idolatria do mercado: os Shoppings Centers.

O Templo de Ártemis tinha muitas semelhanças com o Templo de Jerusalém. A cidade de Éfeso era famosa por sua deusa Ártemis, o que representava a base de um nacionalismo religioso local. A idolatria popular estava ligada à economia, ao templo e à cidade. Tudo girava em torno de uma estrutura econômica de produção de artesanato religioso, que proporcionava grande lucro aos seus produtores e comerciantes. Por isso, estes recebem o Evangelho de Jesus Cristo, anunciado pelo apóstolo Paulo, como um perigo mortal para seus lucros, para o templo, para a deusa Ártemis e para a grande cidade de Éfeso.

O projeto de Jesus Cristo consola os injustiçados e incomoda os exploradores, porque tem implicações político-econômico-culturais. As primeiras comunidades cristãs procuravam viver um espírito de partilha, que se concretizava na socialização dos bens econômicos (cf. At 2,44-45; 4,32-37). Como consequência, torna-se cada vez mais claro que os interesses econômicos baseados no lucro e na acumulação de capital são idolatria e se contrapõem ao Evangelho de Jesus de Nazaré (cf. At 8,18-23; 16,16-24; 19,13-19). De fato, em uma sociedade capitalista, máquina de moer vidas, o lucro e a acumulação de capital de uma minoria custam o sangue da maioria das classes trabalhadora e camponesa.

O apóstolo Paulo enfrenta a idolatria da deusa Ártemis. O apóstolo Paulo está desempenhando sua missão e se vê no meio de um tumulto em Éfeso, um episódio das missões paulinas em um contexto diferente, segundo o livro de Atos dos Apóstolos. "Assim, a Palavra do Senhor crescia e se firmava poderosamente" (At 19,20). Com este refrão a justeza da missão evangelizadora de Paulo se confirma. Podemos perguntar por que o evangelista Lucas, autor também de Atos dos Apóstolos, insere o relato da revolta dos ourives entre a decisão de Paulo de partir de Éfeso (At 19,21) – subir a Jerusalém - e a sua partida de fato (At 20,1)? Lucas gosta de intercalar um relato no meio a uma narração diferente[2]. Lucas prefere colocar a revolta dos ourives dentro da subida de Paulo a Jerusalém e não dentro das missões de Paulo, para reforçar a tese, segundo a qual o caminho da legalidade é o mais favorável para a evangelização ir conquistando espaços dentro do monstro que é o império romano.

Segundo o autor de Atos dos Apóstolos, a evangelização de Éfeso termina em At 19,20. Logo, o tumulto ocorrido em Éfeso por causa do ensinamento de Paulo não pertence mais aos relatos missionários de Paulo, mas ao relato da sua “paixão[3]” no caminho para Jerusalém. Em Éfeso acontece um conflito entre a idolatria de um mercado com "capa religiosa" e o evangelho de Jesus Cristo anunciado por Paulo[4]. Por outra perspectiva, podemos dizer que o conflito em Éfeso se dá entre a proposta cristã e o politeísmo tradicional que conserva grande força de atração sobre o povo.

Os últimos acontecimentos em Éfeso: Revolta dos artesãos (At 19,23-40). "Houve um grande tumulto por causa do Caminho[5]" (At 19,23). Provavelmente os primeiros cristãos e cristãs eram encarados como o Grupo do Caminho, porque eram caminheiros/as, missionários/as, que estavam sempre viajando. O tumulto teria ocorrido porque o evangelho anunciado por Paulo provocava queda na venda dos objetos religiosos e colocava em risco a vida da grande cidade, do templo de Ártemis e do mercado em torno do sagrado. Uns tentam criar um tumulto para "linchar" o apóstolo Paulo e seus companheiros. Outros preferem seguir a rota da legalidade, denunciando Paulo diante das instâncias jurídicas da cidade e deixando correr um processo legal.

Solução pela ilegalidade ou pela legalidade e conciliação? Lideranças de Éfeso tentam resolver o problema de dois modos: solução pela via ilegal e solução pela via legal e conciliatória. Pela via ilegal, Demétrio[6], um fabricante de artesanato em ouro e presidente da associação comercial dos artesãos da prata, tenta provocar um tumulto violento, confuso e ilegal, que postula o linchamento de Paulo e seus companheiros. Os adeptos da idolatria do lucro percebem claramente que o evangelho anunciado por Paulo desmascara e desmistifica a áurea religiosa que envolvia o mercado em Éfeso. Demétrio lidera uma campanha em defesa do mercado religioso que rende dividendos para uma classe à custa do empobrecimento de muitos. Trombeteiam que não somente empregos estão em jogo, mas também o santuário do mercado "com fachada" religiosa. Uma propaganda enganosa e idolátrica se tornava cada vez mais ensurdecedora: "Grande é a deusa Ártemis dos efésios!" (At 19,19.34), bradavam. A repetição desta mentira mil vezes poderia torná-la palatável como verdade. Era como o mito do progresso e do desenvolvimento econômico capitalista, atualmente, considerado inexorável e que não pode ser questionado, segundo os arautos da idolatria do mercado.

Este conflito recorda-nos que vivemos no meio de uma verdadeira idolatria do mercado e de um mercado religioso. Sabemos que quanto maiores são as angústias humanas, maior a necessidade de agarrar-se a "uma tábua de salvação". O terreno fica propício para a ação inescrupulosa dos mercadores do sagrado. Na religiosidade, seja ela popular ou com fachada de secularismo, a distância não é grande entre o Santo e a imagem do Santo. O artesão fabrica somente a imagem, mas sabe que há uma relação estreita entre o Santo e a imagem. A competição religiosa pode rebaixar todas as religiões e igrejas, porque elas se deixam orientar pelos desejos forjados das massas. Desestabiliza algo estabilizado, gera crise e pode ser causa de conflitos sérios.

Pela via da legalidade, um magistrado da cidade, juntamente com os seus asiarcas (deputados do conselho regional da Ásia) propõe um processo legal, com audiências legais diante dos procônsules constituídos (At 19,35-40). Se existem queixas, existem também instâncias judiciárias. Que tudo seja feito dentro da ordem, da legalidade e do respeito às Instituições, dizem. "Além dos tribunais, existem as assembleias gerais do povo que são convocadas periodicamente e nas quais todos os homens adultos podem participar[7]". No final do discurso do magistrado está a advertência de que a assembleia é ilegal, porque não foi convocada por autoridades competentes. Logo, pode suscitar represálias do poder romano. O evangelista Lucas continua usando a estratégia da infiltração diante do poder opressor, não o confronto.

Nos dois modos de resolver o problema, podemos ver a diferença entre massa e povo. A massa é a multidão sem fisionomia; age por emoção e impulsivamente por sugestão. Já o povo é um grupo organizado e consciente que tem um projeto para a sociedade; age de modo consciente e planejado. Por que o autor de Atos dos Apóstolos opta pela via da legalidade? Como pano de fundo das primeiras comunidades cristãs sob influência de Paulo há um contraste: de um lado os empobrecidos, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e de outro, os enriquecidos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se preocupar com a miséria (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era importante "não dar murro em ponta de faca". Melhor infiltrar-se do que confrontar-se com uma força muitíssimo superior.  Lucas é intransigente frente à opressão econômica realizada pelo Império Romano e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para abrir brechas para o projeto de Jesus não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal. Lucas é duro contra os ricos e a riqueza (Lc 6,24: “Ai de vós, ricos!), mas denuncia a idolatria do capital de um modo a cativar os ricos para abraçarem a causa de Jesus e dos pobres. Lucas percebe, como Paulo Freire fez em nossos tempos, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas de opressão. Este pano de fundo ajuda-nos a entender porque o relato lucano opta pela legalidade. Lucas quer mostrar o baixíssimo nível das massas politeístas e caracterizar o culto de Ártemis como pura confusão e idolatria.

Enfim, o apóstolo Paulo não baixou a cabeça para a deusa Ártemis e nem para os grandes templos com seus grandes negócios. E nós? 

11/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Templos fechados na pandemia: ato de amor. “Vós sois templos!”– Frei Gilvander, Bella, Caio e Flávio

2 - De nada adianta frequentar o Templo e matar os profetas! At7,5l - 8,1a e Jo6,30-35 - Godoy-20/4/2021

3 - ALÇA NORTE do Rodoanel de Belo Horizonte e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

4 - 2ª live – ALÇAS SUDOESTE e OESTE do Rodoanel/RODOMINÉRIO de Belo Horizonte e RMBH: DEVASTAÇÃO ...

5 - Alça Sul do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados

6 - O Templo de Ártemis - As 7 Maravilhas do Mundo Antigo #03 - Foca na História



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Por exemplo, At 12,1-24 é intercalado no relato diferente, que começa em At 11,29-30 e continua em At 12,25.

[3] A "paixão" de Paulo, propriamente dita, será relatada de At 21,16-28,31.

[4] Em 2Cor 1,8 Paulo alude a perigos extremos que correu em Éfeso. Não parece que se trate destes incidentes a propósito dos ourives.

[5] A designação do Cristianismo como Caminho deve ter sido antiga (At 9,2; 19,9), pois se tratava de um modo de falar típico no judaísmo.

[6] Demétrio parece ter sido o presidente da Associação comercial dos artesãos da prata. Cf. J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 102.

[7] J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 104. Se somente homens adultos podem participar, as pretensas assembleias gerais do povo não eram na prática gerais, pois as mulheres, as crianças e os escravos eram excluídos.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Templo de Jerusalém e rebeldia de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander

 Templo de Jerusalém e rebeldia de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]



Segundo as comunidades cristãs do quarto evangelho da Bíblia, levou-se 46 anos para que o templo de Jerusalém fosse reconstruído pelo governador Herodes O Grande (Jo 2,20), que mandou construir a fortaleza Antônia, em um dos vértices do Templo de Jerusalém, o que foi considerado por muitos judeus como uma profanação ao modelo do templo construído pelo rei Salomão. Herodes mandou colocar no templo várias esculturas pagãs do Império Romano, inclusive a Águia Imperial, que motivou a ira de jovens judeus que se amotinaram e foram, por isso, presos e queimados vivos, a mando do rei Herodes Agripa. Essa foi uma obra faraônica que exigiu o trabalho de cerca de 10 mil operários diariamente.

Na época de Jesus, Jerusalém tinha cerca de 30 mil pessoas, estima-se. O templo era meio de vida para muita gente, pois gerava emprego para cerca de 18 mil pessoas; era símbolo de identidade; lugar de comércio com lucro abusivo; lugar de carestia: de 3 a 6 vezes mais caro do que no interior da Palestina; lugar de cobrança de impostos (de 25% a 50%); centro de peregrinação; “morada de Deus” no meio da comunidade e casa de oração.

O templo de Jerusalém era centro de romarias e peregrinações. Foi destruído pela força militar do império romano, sob o comando do general Tito Flávio, nos anos 70 do século I, e outra vez no ano de 135 da era cristã. Bastante suntuoso, composto de degraus, pórticos e tabernáculo com o Santo dos Santos, com arca da aliança e as tábuas da Lei. Muitos consideravam o templo como a morada de Deus no meio do povo. No Santo dos Santos só o sumo sacerdote entrava apenas uma vez por ano. Era considerado pelos judeus o lugar mais sagrado do mundo. Para consertar o Santo dos Santos os operários tinham que ser pendurados e baixados para não pisar no chão sagrado. Os judeus rasgavam suas roupas ao verem o Templo pela primeira vez. Ainda hoje na hora do casamento, o noivo precisa quebrar um prato para lembrar a todos a tristeza que sente pela perda do Templo. Os judeus de todo o mundo ao orarem se voltam para Jerusalém. Na época de Jesus, estima-se  que a população da Palestina era cerca de 600 mil habitantes. Em Jerusalém, 30 mil. Na festa da Páscoa, Jerusalém chegava a receber 180 mil pessoas. Além disso,  havia mais de 7 mil sacerdotes na Palestina, a maioria em Jerusalém, divididos em 24 grupos que se revezaram nos trabalhos litúrgicos do templo.

          A Aristocracia de sacerdotes e os saduceus administravam o tesouro do Templo. Historiador da época das primeiras comunidades cristãs, Flávio Josefo fala que na época de Jesus havia inflação, salários baixos, greves e revoltas populares. No livro Guerra Judaica, Josefo descreve assim o templo construído por Herodes: “O exterior arrebatava os olhos e o espírito. Por estar recoberto de ouro, refletia desde o amanhecer a luz do Sol tão intensamente, que obrigava a afastar a vista aos que queriam observá-lo. Aos estrangeiros que chegavam parecia uma montanha de neve, pois onde não estava coberto de ouro brilhava mármore branquíssimo. O cimo estava eriçado de pontas de ouro afiadas para impedir que as aves pousassem e sujassem o teto. Algumas das pedras da construção tinham vinte metros de comprimento...”[2]

          A Revolta popular de 66 da era cristã, liderada pelo movimento popular religioso dos zelotas, foi o estopim da Guerra Judaica, pois visava também destruir os arquivos do Templo onde estavam registradas as dívidas do povo escravizado e os impostos. 

Enfim, o templo de Jerusalém era o centro religioso-econômico e cultural da Palestina, era também centro político, pois aí se reunia o Sinédrio, sob a chefia do Sumo-sacerdote, vitalício e quase sempre do grupo dos saduceus – latifundiários da época -, os maiores detentores do poder econômico da época. Tudo parecia inquestionável, mas ...

De forma clandestina, Jesus e os seus entram em Jerusalém. Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), Jesus e o seu movimento popular religioso estão às portas daquela cidade. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu movimento entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus na capital Jerusalém. O tom midráxico da narrativa torna presente e viva uma profecia do passado, ainda que provavelmente não tenha acontecido tal como narrado pelo evangelho.

 Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem a verdade, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão. Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas, povo camponês e de periferia. “Bendito o que vem como rei...” (Lc 19,38). Viam em Jesus outro modo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.

Ao ouvir o anúncio dos discípulos e discípulas – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu, aliado do poder opressor, se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem” (Lc 19,39), impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos/as (profetas) se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!”

Jesus chuta o pau da barraca do deus capital. Os quatro evangelhos da Bíblia[3] narram que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres, porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que resistem em face de toda forma de  opressão: fascismo, política de morte (necropolítica) e genocídio, como o que brutalmente acontece no Brasil atualmente.

05/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Templos fechados na pandemia: ato de amor. “Vós sois templos!”– Frei Gilvander, Bella, Caio e Flávio

2 - Templos suntuosos, NÃO! Pequenas Comunidades, SIM! Ez 47,1-2.8-9.12 ; Jo 12,13-22/Padre Manoel Godoy

3 - Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados pelo Rodoanel de BH e RMBH: a ALÇA SUL

4 - Luta contra a mineração em Minas Gerais e na Amazônia e os territórios indígenas

5 - Frei Gilvander aponta brutal devastação socioambiental que Rodoanel causará em BH e RMBH - Vídeo 5




 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Guerra judaica, V, 222.

[3] Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17.