A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Atualmente no Brasil, muitos
grandes templos estão sendo construídos: várias catedrais da Igreja Católica, imensos
templos de igrejas neopentecostais e “templos” do deus capital (shoppings) etc.
Para entender bem a dimensão e o significado destes templos faz bem recordarmos
o culto à deusa Ártemis, na cidade de Éfeso, na Ásia Menor, na segunda metade
do século I da era cristã. É bom considerar que a deusa Ártemis aparecia na sua
estátua com a parte superior coberta por numerosos peitos que representavam a
fecundidade da deusa. Sobre a cabeça, havia uma meia-lua. A estátua de Ártemis
estava no meio do Artemision, imenso templo de 120 metros por 70, rodeado por
128 colunas de 19 metros de altura. O Artemision era o centro fervoroso de toda
a região da Ásia Menor. As peregrinações e romarias ao Artemision produziam
trabalho e riqueza a uma multidão de artesãos e comerciantes. Algo parecido com
os grandes santuários religiosos da atualidade ou com os "santuários"
da idolatria do mercado: os Shoppings Centers.
O Templo de
Ártemis tinha muitas semelhanças com o Templo de Jerusalém. A cidade de Éfeso era famosa por
sua deusa Ártemis, o que representava a base de um nacionalismo religioso
local. A idolatria popular estava ligada à economia, ao templo e à cidade. Tudo
girava em torno de uma estrutura econômica de produção de artesanato religioso,
que proporcionava grande lucro aos seus produtores e comerciantes. Por isso,
estes recebem o Evangelho de Jesus Cristo, anunciado pelo apóstolo Paulo, como
um perigo mortal para seus lucros, para o templo, para a deusa Ártemis e para a
grande cidade de Éfeso.
O projeto de Jesus Cristo consola
os injustiçados e incomoda os exploradores, porque tem implicações
político-econômico-culturais. As primeiras comunidades cristãs procuravam viver
um espírito de partilha, que se concretizava na socialização dos bens
econômicos (cf. At 2,44-45; 4,32-37). Como consequência, torna-se cada vez mais
claro que os interesses econômicos baseados no lucro e na acumulação de capital
são idolatria e se contrapõem ao Evangelho de Jesus de Nazaré (cf. At 8,18-23;
16,16-24; 19,13-19). De fato, em uma sociedade capitalista, máquina de moer
vidas, o lucro e a acumulação de capital de uma minoria custam o sangue da
maioria das classes trabalhadora e camponesa.
O apóstolo Paulo enfrenta a
idolatria da deusa Ártemis. O apóstolo
Paulo está desempenhando sua missão e se vê no meio de um tumulto em
Éfeso, um episódio das missões paulinas em um contexto diferente, segundo o
livro de Atos dos Apóstolos. "Assim,
a Palavra do Senhor crescia e se firmava poderosamente" (At 19,20).
Com este refrão a justeza da missão evangelizadora de Paulo se confirma.
Podemos perguntar por que o evangelista Lucas, autor também de Atos dos
Apóstolos, insere o relato da revolta dos ourives entre a decisão de Paulo de
partir de Éfeso (At 19,21) – subir a Jerusalém - e a sua partida de fato (At
20,1)? Lucas gosta de intercalar um relato no meio a uma narração diferente[2].
Lucas prefere colocar a revolta dos ourives dentro da subida de Paulo a
Jerusalém e não dentro das missões de Paulo, para reforçar a tese, segundo a
qual o caminho da legalidade é o mais favorável para a evangelização ir
conquistando espaços dentro do monstro que é o império romano.
Segundo o autor de Atos dos Apóstolos, a evangelização
de Éfeso termina em At 19,20. Logo, o tumulto
ocorrido em Éfeso por causa do ensinamento de Paulo não pertence mais aos
relatos missionários de Paulo, mas ao relato da sua “paixão[3]”
no caminho para Jerusalém. Em Éfeso acontece um conflito entre a idolatria de
um mercado com "capa religiosa" e o evangelho de Jesus Cristo anunciado por Paulo[4].
Por outra perspectiva, podemos dizer que o conflito em Éfeso se dá entre a
proposta cristã e o politeísmo tradicional que conserva grande força de atração
sobre o povo.
Os últimos acontecimentos em Éfeso: Revolta dos artesãos (At 19,23-40).
"Houve um grande tumulto por causa
do Caminho[5]" (At 19,23).
Provavelmente os primeiros cristãos e cristãs eram encarados como o Grupo do Caminho, porque eram caminheiros/as, missionários/as, que estavam
sempre viajando. O tumulto teria ocorrido porque o evangelho anunciado por Paulo provocava queda na venda dos objetos
religiosos e colocava em risco a vida da grande
cidade, do templo
de Ártemis e do mercado em torno do sagrado. Uns tentam criar um tumulto para
"linchar" o apóstolo Paulo e seus companheiros. Outros preferem
seguir a rota da legalidade, denunciando Paulo diante das instâncias jurídicas
da cidade e deixando correr um processo legal.
Solução pela ilegalidade ou pela legalidade e conciliação? Lideranças de Éfeso tentam resolver o
problema de dois modos: solução pela via ilegal e solução pela via legal
e conciliatória. Pela via ilegal, Demétrio[6],
um fabricante de artesanato em ouro
e presidente da associação comercial dos artesãos da prata, tenta provocar um
tumulto violento, confuso e ilegal, que postula o linchamento de Paulo e seus
companheiros. Os adeptos da idolatria do lucro percebem claramente que o
evangelho anunciado por Paulo desmascara e desmistifica a áurea religiosa que
envolvia o mercado em Éfeso. Demétrio lidera uma campanha em defesa do mercado
religioso que rende dividendos para uma classe à custa do empobrecimento de
muitos. Trombeteiam que não somente empregos estão em jogo, mas também o
santuário do mercado "com fachada" religiosa. Uma propaganda enganosa
e idolátrica se tornava cada vez mais ensurdecedora: "Grande é a deusa Ártemis dos efésios!" (At 19,19.34), bradavam. A repetição desta mentira mil vezes poderia
torná-la palatável como verdade. Era
como o mito do progresso e do desenvolvimento econômico capitalista,
atualmente, considerado inexorável e que não pode ser questionado, segundo os
arautos da idolatria do mercado.
Este conflito recorda-nos que vivemos no meio de uma verdadeira idolatria
do mercado e de um mercado religioso. Sabemos que quanto maiores são as
angústias humanas, maior a necessidade de agarrar-se a "uma tábua
de salvação". O terreno fica propício para a ação inescrupulosa dos
mercadores do sagrado. Na religiosidade, seja ela popular ou com fachada de
secularismo, a distância não é grande entre o Santo e a imagem do Santo. O
artesão fabrica somente a imagem, mas sabe que há uma relação estreita entre o
Santo e a imagem. A competição religiosa pode rebaixar todas as religiões e
igrejas, porque elas se deixam orientar pelos desejos forjados das massas. Desestabiliza algo estabilizado, gera
crise e pode ser causa de conflitos sérios.
Pela via da legalidade, um magistrado da cidade, juntamente com os seus
asiarcas (deputados do conselho regional da Ásia) propõe um processo legal, com
audiências legais diante dos procônsules constituídos (At 19,35-40). Se existem
queixas, existem também instâncias judiciárias. Que tudo seja feito dentro da
ordem, da legalidade e do respeito às Instituições, dizem. "Além
dos tribunais, existem as assembleias gerais do povo que são convocadas
periodicamente e nas quais todos os homens adultos podem participar[7]". No final do discurso do magistrado está a
advertência de que a assembleia é ilegal, porque não foi convocada por
autoridades competentes. Logo, pode suscitar represálias do poder romano. O evangelista Lucas continua usando a estratégia da
infiltração diante do poder opressor, não o confronto.
Nos dois modos de resolver o problema, podemos ver a diferença
entre massa e povo. A massa é a multidão sem fisionomia; age por emoção e
impulsivamente por sugestão. Já o povo é um grupo
organizado e consciente que tem um projeto para a sociedade; age de modo
consciente e planejado. Por que o autor de Atos dos Apóstolos opta pela via da legalidade? Como pano de
fundo das primeiras comunidades cristãs sob influência de Paulo
há um contraste: de um lado os empobrecidos, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e de
outro, os enriquecidos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se
preocupar com a miséria (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era
importante "não dar murro em ponta
de faca". Melhor infiltrar-se do que confrontar-se com uma força
muitíssimo superior. Lucas é
intransigente frente à opressão econômica realizada pelo Império Romano e
quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para abrir brechas para o
projeto de Jesus não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar
para o bem a força histórica do mal. Lucas é duro contra os ricos e a riqueza
(Lc 6,24: “Ai
de vós, ricos!”), mas denuncia a idolatria do capital de um modo a cativar os ricos para
abraçarem a causa de Jesus e dos pobres. Lucas percebe, como Paulo Freire fez
em nossos tempos, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos
deles as armas de opressão. Este pano de fundo ajuda-nos a entender porque o
relato lucano opta pela legalidade.
Lucas quer
mostrar o baixíssimo nível das massas politeístas e caracterizar o culto de
Ártemis como pura confusão e idolatria.
Enfim, o apóstolo Paulo não baixou a cabeça para a deusa Ártemis e nem para os grandes templos com seus grandes negócios. E nós?
11/05/2021
Obs.:
Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Templos fechados na
pandemia: ato de amor. “Vós sois templos!”– Frei Gilvander, Bella, Caio e
Flávio
2 - De nada adianta
frequentar o Templo e matar os profetas! At7,5l - 8,1a e Jo6,30-35 -
Godoy-20/4/2021
3 - ALÇA NORTE do
Rodoanel de Belo Horizonte e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais
Ameaçados
4 - 2ª live – ALÇAS
SUDOESTE e OESTE do Rodoanel/RODOMINÉRIO de Belo Horizonte e RMBH: DEVASTAÇÃO
...
5 - Alça Sul do
Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais
Ameaçados
6 - O Templo de Ártemis - As 7 Maravilhas do Mundo
Antigo #03 - Foca na História
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica
no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
[2] Por exemplo, At 12,1-24 é
intercalado no relato diferente, que começa em At 11,29-30 e continua em At 12,25.
[3] A "paixão" de Paulo,
propriamente dita, será relatada de At 21,16-28,31.
[4] Em 2Cor 1,8 Paulo alude a
perigos extremos que correu em Éfeso. Não parece que se trate destes incidentes
a propósito dos ourives.
[5] A designação do Cristianismo
como Caminho deve ter sido antiga (At 9,2; 19,9), pois se tratava de um modo de
falar típico no judaísmo.
[6]
Demétrio parece ter sido o presidente da Associação comercial dos artesãos da
prata. Cf. J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes,
Petrópolis, 1988, p. 102.
[7]
J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 104. Se somente homens adultos podem
participar, as pretensas assembleias gerais do povo não eram na prática gerais,
pois as mulheres, as crianças e os escravos eram excluídos.
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