Luta pela terra no livro de Josué: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Em setembro de 2022, o mês da Bíblia terá como tema o
livro de Josué com o lema: “Seja
firme e corajoso porque Javé teu Deus estará contigo, onde quer que vás” (Js
1,9), na luta pela terra e pelos territórios. Expropriados e forçados a se
tornarem migrantes errantes por várias regiões, os povos da Bíblia tiveram que
lutar muito pela terra, porque ela estava sequestrada nas mãos dos faraós, no
Egito; dos reis das cidades-estados e de pretensos senhores da terra, que delas
se apropriavam, expropriando os camponeses, em Canaã. Assim, desrespeitavam o
preceito bíblico de “Terra de Deus, terra
de irmãos/ãs”.
Se lermos de forma literal e fundamentalista o livro
de Josué, podemos tirar conclusões que justifiquem “guerra santa” e violência
em nome de Deus. O livro de Josué, porém, pode ser comparado a uma corda
composta de vários fios diferentes, de épocas diferentes, ou a uma casa
construída com tijolos de vários formatos, de épocas diferentes. À primeira
vista, há uma exaltação de Josué como o grande líder e sucessor de Moisés. Isso
provavelmente foi escrito para cacifar e legitimar as reformas que o rei Josias
- outra versão do nome Josué - estava tentando implementar de 640 a 609
a.E.C. Essa época foi de um vazio político dos impérios: o Império Assírio
destroçado e o Babilônico ainda não erguido a ponto de poder controlar
Canaã/Palestina.
Moisés não foi o único líder libertador dos povos
escravizados sob as garras do imperialismo dos Faraós. O movimento de
libertação iniciara-se com as mulheres parteiras, que se haviam rebelado fazendo
greve geral e desobediência civil e religiosa diante de um decreto-lei do faraó
que mandava matar os meninos no momento do parto, visando o controle de
natalidade. Miriam foi outra grande libertadora dos povos escravizados no
Egito. Assim também, na história real, a luta pela terra não teve uma liderança
monopolizada por Josué. Inúmeros grupos escravizados e considerados subalternos
pelo poderio das cidades-estados foram protagonistas nas lutas empreendidas.
Precisamos ler não apenas nas linhas, mas nas entrelinhas e por trás das
palavras do livro de Josué, para compreendermos as lutas de fato ocorridas,
como diversas e processuais.
O livro de Josué abre a segunda parte da Bíblia
Hebraica, os Profetas (Nebiim, em
hebraico) chamados “anteriores”: Josué, Juízes, 1Samuel, 2Samuel, 1Reis
e 2Reis. O livro de Josué não é história e nem crônica jornalística, mas teologia
narrativa da conquista e da partilha da terra pelos povos escravizados que
se uniram e se organizaram na luta pela terra. Em uma aliança com Javé, o Deus
solidário e libertador que ouve o clamor dos/as escravizados/as e desce para
aliar-se às lutas libertárias, o povo caminha e luta pela terra prometida (Ex
3,7-9). O nome Josué (Yehoshu‘a, em
hebraico) significa “Javé salva, liberta,
socorre”. Mais que ser uma pessoa, Josué representa um projeto: Javé
liberta, tomando a terra dos opressores e dando-a aos sem-terra que se unem, se
organizam e lutam, com fé, coragem e sem desanimar. Assim, a terra é dom e
conquista.
Nos primeiros 12 capítulos do livro de Josué temos, em
narrativa teológica, a luta pela conquista da terra prometida por Javé, o Deus
do Êxodo. Js 1-12 busca mostrar que
o Deus Javé é mais poderoso que todas as divindades do império Assírio. Na segunda parte de Josué, nos capítulos 13 a 24,
temos a partilha e distribuição da terra conquistada. À primeira vista, a
conquista da terra se deu de forma rápida, ininterrupta, global, total, como se
tivesse acontecido em uma guerra relâmpago, e a sua partilha também. Essa ideia
de conquista rápida e global reforçava as intenções expansionistas do rei
Josias (640 a 609 a.E.C), época da primeira versão do livro de Josué. Importa recordar
que o governo do rei Josias se dá em um momento histórico de certo vácuo do
poder imperialista. O Império Assírio estava destroçado e o Império Babilônico
ainda não estava mostrando suas garras expansionistas.
Observando as entrelinhas do texto do livro de Josué e
também do livro de Juízes percebemos que certamente a conquista da terra de
Canaã/Palestina se deu de forma parcial, em um processo complexo, longo, com
vitórias e derrotas. A partilha também. No livro de Juízes, líderes do povo,
tidos como heróis, são convocados por Javé para libertar territórios das garras
de povos idólatras e opressores. Sansão, o último líder deles, foi convocado
para libertar o território do domínio dos filisteus e isso durou muito tempo,
até o reinado de Davi (2Sm 8,1).
Segundo o livro de Juízes, diferentemente do livro de
Josué, a conquista da terra se deu de forma descentralizada, por meio da luta
empreendida pelas tribos de forma autônoma, sem coordenação de Josué. Em Jz
1,21.27-36, temos uma lista de cidades e de territórios ainda não conquistados,
todos da planície, exceto Jerusalém, que será conquistada apenas no início da
monarquia (2Sm 5,6-12). As cidades da planície de Jezrael só foram conquistadas
na época do reinado do rei Salomão, de 970 a 930 a.E.C., (1Rs 4,12; 9,15).
No livro de Josué há também contradições internas. Por
exemplo, Js 13,1b lamenta: “Ainda ficou
muitíssima terra por conquistar”. Em Js 13,1-13 encontra-se a lista dos
territórios não conquistados: “territórios
dos filisteus, território de Acaron, grilado pelos cananeus ...” É bom
lembrar que a fixação de limites territoriais interessava principalmente ao
Estado, para implementar cobrança de tributos (1Rs 4), para arregimentação de
soldados para as guerras (Cf. 2Sm 24) e para convocar trabalhadores para a
corveia (Cf. 1Rs 5,13ss). Para as comunidades tribais, limites de territórios
pouco importavam, pois predominava a noção comunal da terra.
Há outras contradições internas no livro de Josué. Em
Js 18,10, quem reparte a terra em Silo é Josué sozinho para sete tribos.
Contraditoriamente, em Js 14,5 e 19,49, o povo todo participa na partilha da
terra. Isto indica formas diferentes de reler a história, com intenções
diferentes. A assembleia de Js 8,32-35, além dos homens, inclui mulheres,
crianças e estrangeiros. No entanto, na “assembleia” de Js 23, estrangeiros são
excluídos (Cf. Js 23,7-13; Esd 10; Ne 12-13). Estas diferenças indicam
releituras da história com finalidades diferentes.
O livro de Josué reafirma o que está em Êxodo, Números e Deuteronômio: “a terra deve ser repartida como herança” (Js 13,6). E enfatiza: “Reparta a terra para ser herança ...” (Js 13,7). Exclui-se terminantemente a ideia da terra como mercadoria, passível de venda e compra. A luta pela terra é legítima apenas para usufruto, para passar de pai e mãe para filhos/as, netos/as ..., jamais por interesse de mercado.
(Obs.: No próximo artigo, seguiremos a reflexão sobre o livro de Josué).
26/7/2022
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto
tratado, acima.
1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra -
Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG
2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia,
30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc
3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa
terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e
Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters
5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander:
Inspirações da Bíblia para sermos humanos
6 -
COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei
Gilvander e Argemiro
7 - Formação para o Mês da Bíblia 2022 - O livro de Josué. Por Francisco
Orofino
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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