Luta pela terra e pelas necessidades básicas gera emancipação. Por frei Gilvander Moreira[1]
Os últimos raios de sol do dia 07/02/2020, ainda iluminavam o fim da tarde em União dos Palmares, na Zona da Mata de Alagoas, quando em marcha, cerca de 200 jovens, de bandeiras nas mãos, cantando canções de liberdade, inauguravam o Bosque da Resistência Ana Primavesi. Lá, as mãos dos filhos e filhas da luta pela terra, plantaram mil mudas de árvores simbolizando a disposição na luta pela terra e pelos bens da natureza. Foto: Matheus AlvesQue tipo de utopia os
camponeses e camponesas Sem Terra cultivam e se nutrem na luta pela terra
enquanto pedagogia de emancipação humana? Não pode ser a simples estatização de
todas as propriedades rurais. Também não pode ser qualquer tipo de socialização
da terra. Há de se considerar as diversidades culturais, regionais, históricas
e de identidades do campesinato. A autonomia dos Sem Terra, sujeitos sociais
coletivos que lutam pela terra no campo, se torna impossível sem a autonomia
dos sujeitos individuais, isto é, das camponesas e dos camponeses Sem Terra que
se comprometem em tal luta. Logo, toda e qualquer posição pessoal ou dos
movimentos sociais populares, relação interpessoal ou social, que cerceia o
processo de autonomização obstaculariza a emancipação pessoal e social, que é
um grande objetivo da luta pela terra como pedagogia de emancipação humana. Não
nos referimos aqui à autonomia no sentido de poder fazer o que quiser, mas no
sentido de fazer história com as próprias mãos desenvolvendo o infinito
potencial de humanização existente em cada ser humano.
Ao explanar sobre as
necessidades pessoais, Karl Marx estabeleceu a prioridade da satisfação das
necessidades materiais objetivas em relação às necessidades espirituais, mas
observamos que o povo tem tanta fome de pão - necessidade material (base da
vida) - quanto fome de Deus – necessidade espiritual. Óbvio que Marx não se
referia à necessidade espiritual no sentido religioso, mas no sentido de tudo o
que é simbólico – sonhos, autoestima, desejos, aspirações etc. -, para além da
base material da vida. Não dá para relegar as necessidades
espirituais/simbólicas para segundo ou terceiro plano e muito menos ignorá-las.
Não é inquestionável a afirmação segundo a qual ‘religião, futebol e política
não se discutem’. Muitas vezes, as
pessoas brigam mais por questões religiosas do que por questões estritamente
políticas, até porque toda questão religiosa é também uma questão política.
Nesse sentido, o pensador Ovidio Hernández fez referência a Abraham Maslow, que
elaborou uma teoria sobre as escalas de necessidades humanas, assim
raciocinando: “Ele coloca, de forma
geral, a prioridade da satisfação das necessidades de sobrevivência
(alimentação, proteção física etc.); Num lugar intermediário, situa a
satisfação das necessidades de autoestima (a importância da consideração, do
respeito, da pertença e da identidade na esfera individual e social, e o amor
aos outros e a si próprio) e considera que, nestas bases de sustentação,
desenvolvem e satisfazem, entre outras, as necessidades superiores de autonomia
e autorrealização” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 132).
Há uma íntima relação
entre as necessidades materiais – necessidades de sobrevivência (alimentação e
proteção física; aqui se coloca a moradia, acesso à terra, por exemplo) -, as
necessidades de autoestima – consideração, respeito e cultivo da identidade
pessoal e amor aos outros e a si mesmo – e as necessidades superiores de autonomia
e de autorrealização. Concordamos com o pensador Jorge Acanda e com Abraham
Maslow no sentido de que não há como realizar e desenvolver a autonomia pessoal
e social e construir autorrealização sem atendimento às necessidades básicas
elementares materiais e de autoestima. Aqui está um ponto central da luta pela
terra, porque se trata de uma luta concreta que viabiliza o atendimento,
primeiro, das necessidades básicas de alimentação, pelo plantio nas terras
ocupadas; em seguida, a autoestima das camponesas e dos camponeses Sem Terra,
nas ocupações em luta pela terra melhora gradativamente, porque as pessoas
passam a ser consideradas, acolhidas e respeitadas na sua dignidade. Esse
caminho se aproxima da conquista da necessidade mais ampla, que é a de emancipação
e autorrealização.
Na madrugada do dia 21
de dezembro de 2003, no município de Brumadinho, região metropolitana de Belo
Horizonte, MG, após três anos de acampamento ao lado de uma estrada, ao lado de
uma fazenda improdutiva, vinte famílias ocuparam uma propriedade de 154
hectares, sendo 14 hectares de capim e o resto Mata Atlântica. Alugaram um
trator de um camponês da região e araram a terra dos 14 hectares de capim. As
vinte famílias trabalharam três dias e três noites ‘sem parar’ plantando os 14
hectares de terra com sementes de hortaliças, porque as crianças estavam
anêmicas e tinham que obter alimento o mais rápido possível. “Nossos filhos estavam anêmicos, mas foi só começarem
a comer os alimentos produzidos com adubação orgânica e agroecológica, graças a
Deus, estão todos bem nutridos, o que é atestado pela Pastoral da Criança”,
informou-nos, feliz da vida, dia 22 de setembro de 2007, a Sem Terra Valéria
Antônia Silva Carneiro, assentada no Assentamento Pastorinhas desde 2006[2].
Na luta pela terra,
pelo menos em parte, contempla-se o que a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) enunciou, em 1995, como sendo as
quatro aprendizagens básicas: aprender a conhecer, aprender a conviver,
aprender a fazer e aprender a ser (DELORS, 2010, p. 31), mas, atenção! Aprender
sempre tomando-se por base os sujeitos injustiçados, valorizando suas
experiências, problematizando a realidade sempre desde a perspectiva dos Sem
Terra, eliminando a hierarquia entre os saberes, incentivando a criatividade e
a compreensão de que o outro que está na horizontalidade não é um inimigo, mas
alguém sem o qual não posso me emancipar e nem autorrealizar.
A luta pela terra como
pedagogia de emancipação humana realiza, em alguma medida, o que apregoou
Giulio Girard: “É, essencialmente,
quebrar a comunidade educativa que traduz a sociedade de dominação para criar
uma que anuncie a sociedade da autogestão. A educação libertadora deve,
portanto, superar primeiro a relação autoritária entre educadores e alunos. Não
suprime a autoridade, mas transforma radicalmente seu significado. [...]
substituirá as motivações tradicionais baseadas na competição, no
individualismo e no egoísmo, motivações de outra ordem que se baseiam na
generosidade, no espírito de equipe e na solidariedade com os oprimidos. [...]
a educação libertadora é iluminada por essa busca de sentido” (GIRARDI, 1998, p.
54-55).
A luta pela terra
constitui-se, portanto, como pedagogia de emancipação humana por vários
aspectos. Primeiro: nela, a reflexão é feita sempre no sentido de compreender a
sociedade existente como sendo uma construção histórica capitalista, de classes
com interesses antagônicos, em que a classe trabalhadora e o campesinato são
injustiçados. A dominação é questionada teoricamente e na prática. Segundo: a
regra geral é cuidar para que posturas autoritárias não apareçam e se surgirem
devem ser questionadas imediatamente. Isso anima o potencial humano existente
em todas as pessoas. Terceiro: ciente de que disciplina e autoridade são
necessárias na luta pela terra, sempre é alertado para que o exercício da
autoridade não descambe para o autoritarismo, nem para o personalismo, nem para
o messianismo, nem para o populismo. Quarto: deve-se cultivar o espírito de
solidariedade e de ajuda mútua, o que é um antídoto ao individualismo apregoado
pela ideologia dominante na sociedade. Assim, a luta pela terra compreende uma
práxis social sendo uma unidade inseparável de reflexão e ação.
Referências
ACANDA, Jorge Luis. Luces y sombras, la apropiación de Gramsci en Cuba en
el último decenio. In: Hablar de Gramsci. La Habana: Centro
Juan Marinello, 2003.
___. Sociedad civil y hegemonía. La Habana: Centro
Juan Marinello, 2002.
DELORS, Jacques et alii.
Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão
Internacional sobre Educação para o século XXI. Brasília, UNESCO, 2010.
GIRARDI, Giulio. Por una
pedagogía revolucionaria. In: Caminos,
vol. I. La Habana, 1998.
HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.
14/02/2023
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Visão panorâmica da Mata do Jd. América em
BH/MG. Lutamos por Preservação INTEGRAL da Mata. SOS MATA
2 - “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso
Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4
3 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de
Ressurreição. Araújo! Vídeo 3
4 - Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família
Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1
5 - Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família
Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2
6 - "Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode
mais ser prefeito de Betim/MG": Zélia
7 - “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói
casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)
8 - Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo,
de Betim/MG, só saímos mortos”
9 - Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para
sempre! Cadê a função social?”
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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