Campanha da Fraternidade de 2015: Igreja e Sociedade.
Servir a todos a partir do
injustiçado e de jeito libertador.
Frei Gilvander
Luís Moreira[1]
“Como eu gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”
(Papa Francisco)
1. Iniciando a reflexão.
Realizada desde 1964, há 51
anos, com o tema “Fraternidade: Igreja e
Sociedade” e lema “Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45),
a Campanha da Fraternidade de
2015 (CF/15) objetiva animar a
vocação e missão de todas as pessoas cristãs e das comunidades, a partir do que
propõe o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962 a 1965): Igreja povo de Deus,
ecumenismo, inculturação e profecia.
Os Temas e Lemas das Campanhas
da Fraternidade já realizadas contribuíram muito para colocar na pauta da
política e das forças vivas da sociedade brasileira grandes injustiças que se
tornaram clamores ensurdecedores. Para refrescar a memória, citamos: CF/74:
Onde está o teu irmão?; CF/75: Repartir o pão, logo após o milagre econômico de
1973, denunciava ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais
pobres; CF/78: Trabalho e Justiça para todos; CF/79: sobre Ecologia, com o lema
“Preserve o que é de todos”; CF/80: sobre Migrantes, com o lema “Para onde
vais?”; CF/81: Saúde para todos, o que contribuiu para a criação do SUS em 1988;
CF/83: Fraternidade, sim; Violência, não; CF/85: Pão para quem tem fome; CF/86:
sobre a terra, com o lema “Terra de Deus, terra de irmãos”, contribuiu para
legitimar a atuação da Comissão Pastoral da Terra, do MST, recém criado, e fez
nascer dezenas de movimentos sociais do campo; CF/87: sobre crianças
abandonadas, com o lema “Quem acolhe o menor a mim acolhe”. Essa foi
imprescindível na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1991; CF/88:
sobre Os Negros, com o lema “Ouvi o clamor desse povo”, fez surgir e fortalecer
o Movimento Negro, movimento popular de luta contra o racismo; CF/89, “Comunicação
para a verdade e a paz” denunciou a concentração do poder midiático (mídia) em
poucas nas mãos; CF/90: contra o machismo e o patriarcalismo, com o lema “Mulher
e Homem, imagem de Deus”; CF/91, Solidários na dignidade do trabalho; CF/92 e
CF/13: sobre a Juventude, denunciando o extermínio de jovens pelo tráfico,
violência social etc; CF/93: sobre Moradia, com o lema “Onde moras?”, fez
surgir inúmeros movimentos de luta por moradia; CF/95: sobre os Excluídos, com
o lema “Eras tu, Senhor?” fortaleceu o Movimento Nacional do Povo de Rua e a
Pastoral do povo de rua; CF/96: sobre Política, com o lema “Justiça e Paz se
abraçarão”, fortaleceu o Movimento que luta por ética na Política Partidária; CF/97:
Os encarcerados, acolhendo os gritos dos milhares de presos e denunciando que eles
estão submetidos a situações degradantes e desumanas em prisões superlotadas;
CF/98: Educação, o que ajudou a legitimar a luta por educação pública de
qualidade; CF/99: Desemprego, com o lema “Sem trabalho, por quê?”; CF/01: sobre
Drogas, com o lema “Vida, sim; drogas, não”; CF/02: sobre Povos Indígenas, com
o lema “Por uma terra sem males”, contribuiu para o surgimento e fortalecimento
de inúmeros movimentos indígenas; CF/03: sobre Pessoas idosas, contribuiu para
a Criação do Estatuto do Idoso em 2003; CF/04: sobre A água, com o lema “Água,
fonte de vida”; CF/06: Pessoas com deficiência; CF/07: sobre Amazônia; CF/09:
sobre Segurança Pública, com o lema “A paz é fruto da justiça”; CF/10: Economia,
questionando com veemência o modelo econômico capitalista-neoliberal e
apontando a necessidade e justeza de fortalecermos a Economia Popular Solidária;
CF/11: Vida no Planeta, com o lema “A criação geme em dores de parto”, refletiu
sobre a crise ecológica mundial; CF/12: sobre Saúde Pública; CF/14: sobre Tráfico
humano.
Subsidiando a vivência da Opção
pelos pobres, o Texto Base da CF/2015 está organizado em quatro partes. No
primeiro capítulo são apresentadas reflexões sobre “Histórico das relações
Igreja e Sociedade no Brasil”, “A sociedade brasileira atual e seus desafios”,
“O serviço da Igreja à sociedade brasileira” e “Igreja – Sociedade:
convergência e divergências”.
2.
Bases
bíblicas e teológicas para a CF/15: Fraternidade e Sociedade, com o Lema “Eu
vim para servir”.
Não esqueçamos: Javé, o Deus
solidário e libertador, optou pelos pobres, ao ouvir o clamor dos oprimidos e
descer para libertá-los (Cf. Ex 3,7-10) das garras do imperialismo dos faraós
do Egito. As profetisas e os profetas da Bíblia fizeram opção pelos
injustiçados ao denunciar as injustiças dos fazendeiros, do sistema monárquico,
o ritualismo de muitos sacerdotes, ao desmascarar os falsos profetas, aqueles
defensores da Teologia da Prosperidade. Optaram pelos empobrecidos ao consolar
os aflitos (cf. Is 43,1-5) e ao incomodar os chefes da nação, como o profeta
Miquéias que profetizou: “Ouvi, peço-vos,
chefes e príncipes, vós que odiais o bem, e amais o mal, que arrancais a pele
de cima dos pobres, e a carne de cima dos seus ossos. E que comeis a carne do
meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como
para a panela e como carne dentro do caldeirão (Miq 3,1-3).”
Jesus de Nazaré
optou pelos empobrecidos indo da solidariedade à luta pela justiça, o que lhe
custou condenação à morte pelos podres poderes da época. Jesus anunciou e
testemunhou um projeto de libertação integral. Em seu programa consta
libertação política (libertação dos presos), social e econômica (evangelizar os
pobres), restituição da visão (libertação ideológica), e “espiritual”
(proclamação do Ano de Graça do Senhor). Isso em Lc 4,16-21, onde Jesus resgata
o Jubileu Bíblico, que cultiva a utopia de reviver
a experiência de fraternidade das origens camponesas, do tempo do deserto; recomeçar tudo de novo a partir dos
oprimidos; refazer a História a
partir dos injustiçados; resgatar as
identidades que humanizam; conquistar
justiça para os injustiçados a partir deles; redistribuir as terras dando-lhes função social; perdoar as dívidas interna e E(x)terna;
redistribuir riquezas e rendas; restituir os direitos roubados, voltar
a conviver de modo fraterno com a nossa mãe Terra, que é nossa única casa.
As
primeiras comunidades cristãs se organizaram a partir das casas (Oikia, em grego), comunidades locais,
onde buscavam vivenciar um projeto coletivo para o bem comum de todos (At
2,42-47). Ao invés de acumular, partilhavam tudo o que tinham, o que sabiam,
seus problemas e buscas comunitárias. Ao longo da História dos cristianismos “144
mil” foram martirizados, porque ousaram ser luz que incomoda o mundo de trevas
dos sistemas que moem vidas, foram sal na terra incomodando a comida e se
fizeram fermento que causa coceira na massa (cf. Mt 5,13-16).
Sob inspiração
do Concílio Vaticano II e das Conferências dos bispos da América Afrolatíndia (1ª
no Rio de Janeiro, 1950; 2ª em Medellín/Colômbia, 1968; 3ª em Puebla/México,
1979; 4ª em Santo Domingos/República Dominicana, 1992; e a 5ª em Aparecida/Brasil,
2005), a Igreja Povo de Deus, reunida nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
e nas Pastorais Sociais, com o respaldo e inspiração da Teologia da Libertação,
milhares de pessoas cristãs doaram suas vidas na luta por reforma agrária,
reforma urbana, em defesa dos Direitos Humanos e demonstraram compromisso com a
construção de uma sociedade justa e solidária. Uma multidão de mártires ao
longo de 514 anos de história de opressão no Brasil. Citamos alguns: Frei
Caneca, Padre Henrique, Padre Ezequiel Ramin, Padre Josimo Tavares, Chico
Mendes, Santo Dias, Margarida Alves, padre Gabriel, Irmã Dorothy Stang, Dom
Oscar Romero, Eloy Ferreira, cristãos que se engajaram em sindicatos dos
trabalhadores, no MST, na CPT, no CIMI, em muitos movimentos sociais populares
e inúmeras pessoas anônimas que ao se posicionar contra as violências foram
eliminadas fisicamente. Foram mortas, assim como o Galileu de Nazaré, mas estão
ressuscitadas na luta. O exemplo de luta nos anima a seguir lutando
coletivamente sendo luz, sal e fermento na sociedade.
2.1.
Pressuposto básico
teológico: Deus na história e o divino no humano.
O
Deus do cristianismo é um Deus da história, quer dizer, age nas entranhas dos
fatos e dos acontecimentos. O Deus da vida, mistério de infinito amor, não faz
mágica. Desde que Deus, por infinito amor à humanidade, se encarnou-se, o
divino está no humano.
O
Concílio de Calcedônia, no ano de 451, reconheceu Jesus Cristo com “natureza” divina
e humana. O apóstolo Paulo reconhece que Jesus é o Cristo, filho de
Deus, mas “nascido de mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como nós desenvolveu
seu infinito potencial de humanidade. “Jesus, de tão humano, se tornou divino,”
dizia o papa João XXIII.
“Não
é ele o filho de Maria e Jose?”. Progressivamente, na Galileia, Samaria e
Judéia, Jesus se revela, à primeira vista, em aparentes contradições, mas, no
fundo, com tal equilíbrio que chama a atenção de todos. Assim, ele testemunha
que Deus é mais interior a nós do que imaginamos. A mística “encarnatória”
revela a pessoa humanamente divina e divinamente humana. “Quem me vê, vê o
Pai”.
Jesus,
antes de se tornar mestre, foi discípulo. Antes de ensinar, aprendeu muito com
muitos: com Maria e José, com o povo da sinagoga, com os vizinhos, amigos, com
os acontecimentos históricos, com a natureza etc.
Somos
discípulos/as de Jesus Cristo, um jovem camponês, da periferia, que foi
condenado à pena de morte pelos podres poderes da política, da economia e da
religião. Somos discípulos/as de um mártir. Feliz quem não esquece a vida, o
testemunho e o ensinamento dos mártires.
Destemido, o Galileu de Nazaré vai enfrentando todas
as perseguições, convicto de que é profundamente amado pelo Pai – Deus,
mistério de infinito amor que nos
envolve – e que é amado e reconhecido pelos oprimidos e injustiçados.
Jesus não está mais na fase da priorização das ações
de solidariedade. Ele, na convivência com os empobrecidos e lendo os sinais dos
tempos e dos lugares, adquire a clareza de que o sofrimento que se abate sobre
o povo é causado principalmente pelo imperialismo romano, pelos saduceus
(grandes latifundiários da época que praticavam uma religião da Teologia da
Prosperidade), pelos que comandavam o poder religioso, tipo padroado, que fazia
sacerdotes privatizarem na prática o sistema de saúde ao cobrarem para atestar
curas e, assim, excluíam os pobres, os doentes, as mulheres e os estrangeiros
com a famigerada lei da pureza e da impureza, que dizia: Quem é rico e sadio é
abençoado por Deus. Quem é pobre e doente é porque é pecador e Deus está
castigando. Assim, privatizando Deus, faziam terrorismo religioso. Jesus, pelo
seu ensinamento e práxis, vai questionando tudo isso e, consequentemente,
atraindo sobre si a ira de todos os que se beneficiavam com o sistema opressor
muito bem entrosado nos poderes político, econômico e religioso.
2.2 - Tarefas emancipatórias que a Dimensão Social da Fé
Cristã exige de nós.
A
Campanha da Fraternidade de 2015 – Fraternidade e sociedade – quer fortalecer a
nossa Dimensão Social da Fé Cristã, que, com os movimentos espiritualistas,
volatilizadores e desencarnadores da fé cristã, anda meio atrofiada em muitos
ambientes religiosos. Vamos elencar na reflexão, abaixo, uma série de tarefas
que julgamos decorrer da Dimensão Social da Fé Cristã.
2.2.1 – Promover libertação integral.
Uma
das tarefas das pessoas cristãs é lutar pela libertação integral das pessoas e
de tudo e não apenas por libertação espiritual. No programa de Jesus, em Lc
4,16-21, consta uma libertação política (“libertar os presos”), social e
econômica (“anunciar uma boa notícia aos pobres”), libertação ideológica
(“restituir a visão”, e espiritual (“proclamar o Ano de Graça do Senhor”).
Assim, Jesus resgata o Jubileu Bíblico (Lev 25,8-12). No ano do Jubileu,
toca-se o “berrante” (em hebraico “sofar”),
que acontece no primeiro ano após sete vezes sete anos. Neste Jubileu, todas as
dívidas devem ser perdoadas; todas as terras devem voltar ao primeiro dono (aos
ancestrais); todos os escravos devem ser libertados. Enfim, é tempo de se fazer
uma reorganização geral na sociedade; tempo para recriar as relações humanas
com fraternidade, justiça, solidariedade libertadora, reconciliação e novos
sonhos.
2.2.2 – Acreditar na ortopráxis.
Outra
tarefa é defender uma ortopráxis (= testemunho libertador), não uma ortodoxia
(= opinião certa). O que de fato faz diferença não é tanto o que a gente pensa
ou em que acreditamos, mas o que fazemos (ou deixamos de fazer). É hora de
compromisso com o modelo de Igreja querido pelo papa Francisco: Igreja popular,
justa e misericordiosa. Urge compromisso com outro projeto de sociedade, que
seja justo, ecumênico e sustentável ecologicamente.
2.2.3 - Rever conceitos.
Verdade
não é adequação de um conceito a um objeto. Isso é verdade formal. “Verdade é o
que liberta todos e tudo”, diz o quarto evangelho da Bíblia. A verdade deve ser
buscada conjuntamente. Ninguém é dono da verdade. Verdade como o que liberta
deve ser buscada a partir dos pobres (últimos, pequenos,
discriminados): pobre, excluído, sem terra, indígenas, negros, pessoas com
deficiências, idosos, desempregados, homossexuais, mãe terra, irmã água,
favelados, vítimas da violência etc.
É
hora de perceber que a coisa mais sagrada é também profana. Profanar é retirar
do uso exclusivo para dar acesso a todos. Pro-fanar vem do verbo grego faneo, que quer dizer “brilhar”. Ou
seja, que o brilho do sagrado seja estendido a todos sem distinção e sem
nenhuma discriminação. É hora de gritar “Não a todo e qualquer dualismo!” Não
há separação entre espiritual e material, entre sagrado e profano, entre divino
e humano, entre santo e pecador, entre puro e impuro etc. Tudo está intimamente
relacionado.
Jesus
não morreu na cruz porque Deus quis, mas foi condenado à pena de morte pelos
podres poderes político-econômico e religioso.
Jesus
doou sua vida por todos e tudo. Jesus testemunha um caminho de salvação, porque
nos amou demais e não porque sofreu demais.
Jesus
tornou-se Cristo, pois conseguiu desenvolver o infinito potencial de humanidade
que cada pessoa traz consigo ao chegar a este mundo. “Jesus foi tão humano, tão
humano, que só podia ser Deus”, disse o papa Paulo VI.
Milagre
não é algo fruto de um poder extraordinário que está acima do humano. Milagre é
uma maravilha de Deus, conforme diz o Primeiro Testamento da Bíblia. Milagre é
um gesto solidário e libertador de Deus agindo nas entranhas da história.
Deus
não é juiz, pois Deus é amor. O único poder que Deus tem é o poder do amor, que
é de fato o que constrói.
Deus
não é transcendente, mas transdescendente. Na Bíblia, de ponta a ponta, vemos a
imagem de um Deus apaixonado pelo humano.
Deus
não é neutro diante dos conflitos. Deus faz opção preferencial pelos pobres
(cf. Ex 3,7-10).
Não
existe inferno, nem purgatório e nem limbo como locais destinados aos
pecadores, como descrito de forma tradicionalista por muitos nas igrejas.
Satanás (satã, em hebraico) ou diabo (diabolos,
em grego) não são entes abstratos, um deus negativo que faz oposição ao Deus da
vida. Satanás (diabo) é tudo o que divide, separa, desune, oprime, exclui,
discrimina e depreda. Pode ser uma dimensão interior nossa, mas em uma
sociedade capitalista neoliberal como a nossa, trata-se prioritariamente de
estruturas e instituições que oprimem, excluem e depreda a natureza. Podemos
dizer que o agronegócio é satânico, pois concentra riqueza em poucas mãos,
expulsa os pequenos do campo e devasta a biodiversidade. Uma democracia
burguesa formal que não respeita a Constituição Brasileira e pisa na dignidade
das pessoas é uma falsa democracia, algo também satânico.
Ser
cristão implica ser anticapitalista. Não dá para compactuar com os pretensos
valores do capitalismo: concorrência, competição, acumulação, lucrar e lucrar.
Ser cristão é ser outro Cristo, alguém que consola os aflitos, mas que também
incomoda os acomodados. Tarefa da pessoa cristã é buscar vida e liberdade para
todos e tudo – e não apenas para alguns - mas a partir dos últimos.
2.2.4 - Sentir-se igreja, membro vivo de uma
comunidade de fé libertadora.
“Igreja
é Povo de Deus”, nos ensina o Vaticano II. É hora de percebermos que o
sacerdócio comum está acima do sacerdócio ordenado. Os jovens não podem aceitar
uma relação que os coloquem como infantis e em uma postura de quem só deve
obedecer. Nada disso. Os jovens têm o direito e o dever de dialogar, discutir e
reivindicar o direito de decidir conjuntamente todos os assuntos que envolvem a
vida da comunidade cristã e da sociedade.
2.2.5 – Comprometer-se com a Opção pelos
pobres e pelos jovens.
O
apóstolo Paulo, ao escrever sobre o Concílio de Jerusalém, acontecido por volta
dos anos 49/50 do 1º século diz que a circuncisão, a maior de todas as
barreiras, tinha sido abolida e que a única coisa que os apóstolos fizeram
questão de alertar foi: “Não esqueçam os pobres.” (Gal 2,10) Esse alerta deve
ser acolhido por todas as pessoas cristãs. Mas faz bem ter um bom entendimento
sobre quem é pobre. Primeiro, o carente economicamente. Depois, a mulher, o
indígena, o negro, o homossexual, a divorciada, a mãe terra, a irmã água, o
meio ambiente.
O
pobre não é apenas como um poço de carência, mas principalmente um portador de
força ética e espiritual. Deus age a partir dos pequenos. “O mundo será melhor
quando o menor que padece acreditar no menor”, dizia Dom Hélder Câmara, o santo
rebelde.
2.2.6 - Partir da periferia, do oprimido. O Evangelho de Lucas
interpreta a vida, as ações e os ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande
caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social
ao centro econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, no
Evangelho de Lucas, é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de
Nazaré”, pessoa simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é
palavra de sumo sacerdote, nem do poder.
2.2.7 - Priorizar a
formação.
Na grande viagem de subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos
discípulos e discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão
incondicional da primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos
era necessário também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas
injustas e corruptas. Assim, o homem de Nazaré começou a perder apoio popular.
Era necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os
enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava
o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o
maior embate.
2.2.8 - Não fugir do combate. O Evangelho de Lucas
diz: Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em
uma caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro,
caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de
Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu
movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a
morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos
discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até
a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).
2.2.9 - Estar sempre em movimento. Seguir Jesus exige uma dinâmica de permanente movimento. A
sociedade capitalista leva-nos a buscar segurança, o que é uma farsa. É hora de
aprendermos a seguir Jesus de forma humilde e vulnerável, porém mais autêntica
e real. Isso não quer dizer distrair com costumes e obrigações que provêm do
passado, mas não ajudam a construir uma sociedade justa, solidária e
sustentável ecologicamente.
2.2.10 - Andar na
contramão.
Seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos
fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem,
audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o
infinito potencial humano existente em nós. Ser , na prática, luz no mundo, sal na
comida, fermento na massa, algo que sempre incomoda.
2.2.11 - Saber a hora
de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois envios
de discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos
discípulos que fossem para o campo de missão despojados e desarmados. Assim
deve ser todo início de missão: conhecer, conviver, estabelecer amizades,
cativar, assumir a cultura do outro, tornar-se um irmão entre os irmãos para
que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em
hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos devem ir preparados para
a resistência. Por isso “pegar bolsa e
sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38). Durante a evolução da
missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura, graciosidade e
solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças precisam ser
denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e
desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente a
querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem
resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre
Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de
Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicão Xucuru, Padre Gabriel
etc.
2.2.12 - Resistir, o
que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um
Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e
pratica injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem contras as opressões
perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus. Lucas, em Lc
22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma
sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós,
discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
2.2.13
Praticar uma pedagogia que
liberta e emancipa: A partilha dos pães (Jo 6,1-15 e
paralelos em Mt, Mc e Lc).
A
fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs que os
quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do
povo.[2] É
óbvio que não devemos historicizar as narrativas de partilha de pães como se
tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta
a setenta anos depois. O quarto evangelho, por volta dos anos 90. Logo, são interpretações teológicas que
querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis
original de Jesus Cristo. Não podemos também restringir o sentido espiritual da
partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se
saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização dos
textos. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é
uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de
pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e
concreto: a fome de pão.
A
beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de
pães e não multiplicação de pães[3] -
está no processo seguido: uma série de passos articulados e entrelaçados que
constituem um processo libertador. O milagre – no caso de Mt, Mc e Lc – ou o
sinal – no caso de Jo - não está aqui ou ali, mas no processo todo. Aqui o
nosso foco de análise é o Evangelho de João, mas considerando que narrativas
semelhantes estão também em Mt, Mc e Lc, melhor
analisar a Partilha dos pães a partir dos quatro evangelhos e não apenas
a partir do quarto evangelho.
Eis, abaixo, uma série de dez características presentes nas
narrativas de partilha de pães que nos revelam uma Pedagogia que liberta e
emancipa:
1) Cidade, lugar de
violência?
O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades (Mt,13).” As
cidades, ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram
espaços de exclusão e de violência sobre os corpos humanos. Faz bem recordar
que Deus criou – e continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou
(Gen 2,2 ).” Conta-se que alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu
descansar após o sexto dia. Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito
amor e para o bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que
faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar.
2) Ir para o meio dos
excluídos e injustiçados. “Jesus atravessa
para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos
gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus
não fica no mundo dos incluídos, o mundo do status
quo e da legalidade, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os
dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos
desmoronam-se.
3) “Jesus subiu a montanha e sentou-se aí com seus discípulos (Jo
6,3).” Jesus transitava da planície para a montanha e vice-versa. Na montanha
fazia a experiência da contemplação, encontrava com Deus Pai, o mistério de
amor que nos envolve, encontrava com seu eu mais profundo e com todas as
criaturas da biodiversidade. Assim, a experiência da montanha, o animava a se
lançar na planície para encontrar o povo nos porões da humanidade, oprimido e
injustiçado. “Sentou-se.” Mais do que a postura de sentar, devemos ver aqui
Jesus assumindo a postura de mestre, aquele que ensina um ensinamento
libertador com autoridade. “Com seus discípulos.” Podemos intuir : “e com suas
discípulas também.” Jesus não era um franco atirador, um agente solitário.
Jesus nasceu, cresceu e se formou no meio de um movimento popular religioso.
Aprendeu muito com Maria, sua mãe, com José, seu pai, com João Batista, com
determinado tipo de fariseus, com o povão, com a natureza. Quando deixa de ser
discípulo e passa a ser mestre, Jesus age e ensina quase sempre acompanhado
pelo seu movimento de discípulos e discípulas. Isso para nos ensinar que
problemas sociais, que são problemas de muita gente e não de apenas algumas
pessoas, devem ser encarados em ações comunitárias e coletivas. “A nossa força
está no grande número de pessoas que aderem à luta”, ensina-nos o Movimento dos
Sem Terra e o Movimento dos Sem Casa.
4) Nunca perder a
capacidade de se comover e de se indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor”
(Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não estavam
sendo libertadores, mas estavam colocando
fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, “Jesus vê uma grande multidão de famintos que
vem ao seu encontro (Jo 6,5).” Isso nos remete à lembrança de que no Brasil há milhões de pessoas que
têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação.
5) Postura crítica. Jesus não sentiu
medo dos pobres, encarou-os e procurou superar a fome que os golpeava e
humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto.
O primeiro foi apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No
mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.”
(Mt 14,15). Desculpas esfarrapadas não faltam. A de Filipe era: Nem 182,5
salários mínimos seriam suficientes para saciar os famintos. Hoje se repete à
exaustão: “Não temos orçamento
suficiente. São muitas as necessidades. O poder público não dá conta de responder positivamente a tudo. Os
cortes nas áreas sociais serão para impedir a inflação de subir mais etc.”
Filipe representa os que estão dentro do mercado e pensam a partir do mercado,
o capital. Filipe está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as
pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na
idolatria do mercado e do capital. A história brasileira está cheia de exemplos
de governantes dizendo: “Esperem o bolo
crescer para depois repartirmos. Esperem na fila da moradia que vocês terão a
casa própria. .” Mas a história demonstra que sem lutas coletivas o bolo
nunca é partilhado e se torna cada vez mais concentrado. O povo organizado tem
aprendido como somente na luta conquistam-se direitos como terra e teto.
6) Postura criativa. O segundo projeto é
posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo
fraco, acaba revelando: “Eis um menino
com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e
discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer
mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam
as consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André
(em grego, andros = humano), anima o
povo a “sentar na grama” (Jo 6,10).
Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por
Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus
convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império
romano somente as pessoas livres e cidadãs podiam comer sentadas. Os escravos
deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir
rápido e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro
terço, semiescrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para se sentar, ele está,
em outros termos, defendendo que os escravos são seres humanos e, portanto, têm
direitos e devem ser tratados como cidadãos.
“Um menino ... (Jo 6,9).” O discípulo André não apontou que a
solução para o problema da fome poderia vir de um sumo sacerdote, nem de um
rei, nem de um saduceu, nem de um fariseu, mas apontou que poderia vir de um
menino, uma criança. Isso para nos ensinar que é a partir do pequeno, do
simples e dos humildes que surgem as verdadeiras soluções. Atuando de forma
coletiva e comunitária, os pobres são protagonistas e sujeitos de sua
libertação. É como dom Moacyr Grechi ensinou
no 12º Intereclesial das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), em Porto
Velho, em Rondônia: “Pessoas simples
fazendo coisas simples, multiplicando aos milhares, conseguem grandes
transformações.”
“Cinco pães e dois peixes ...(Jo 6,9).” Não é a partir do
muito e nem do forte que se supera os problemas mais graves que afligem o povo,
mas é a partir do pouco de cada um/a.
7) Organização é o
segredo da pedagogia de Jesus. Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinquenta,
...” (Jo 6,10; Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos e cristãs nos
inspiram que o problema da fome e todos os outros problemas sociais só serão
resolvidos, de forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se
organizar e partir para lutas coletivas.
8) Gratidão. “Jesus agradeceu a Deus (Jo 6,11).” A
dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam e
perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Vamos continuar
cantando com Manoelão - cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base
que já partilha vida em plenitude - cantos revolucionários, tal como: É madrugada, levanta povo! / A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo!
/ O povo agora é Senhor da história,
/ Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!
9) Não ser
paternalista.
Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a
solidariedade conclamando para a organização dos injustiçados como meio para se
chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar
por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da
maioria.
10) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram, para não
se desperdiçar nada (Jo 6,12)”, nos ensina Jesus no final da narrativa da
partilha de pães no quarto evangelho. Economia que evita o desperdício.
Atualmente quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos
passam fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar, reciclar. Nada deve se
perder, mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica tudo é reaproveitado,
inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram adubo fértil e
orgânico. Envolvidos pela crise ecológica, com aquecimento e escurecimento
global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar, reaproveitar, recusar,
recuperar e repensar.
2.14 - Participar
da vida pública transformando a sociedade (Lc 10,38-42).
Seguindo
para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e Maria.
Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido interpretada como uma
oposição entre vida Ativa e vida contemplativa. Ao longo dos séculos e ainda
hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a vida contemplativa,
mas essa interpretação não tem consistência exegética. Não há nenhuma
referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com Maria.
Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas.
Primeiro, nas duas perícopes anteriores, Lucas
revelou uma oposição, um contraste: humildes X entendidos (Lc 10,21-24) e
samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc 10,38-42 também há uma
oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de Maria é elogiada por Jesus
e a postura de Marta é censurada: “Marta,
Marta! ... uma só coisa é necessária...” (Lc 10,41-42).
Segundo, precisamos considerar a situação das
mulheres na época de Jesus e de Lucas. As mulheres eram - não todas, é óbvio -
propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida
pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não
recebiam os ensinamentos da Torá. Encontra-se escrito no Talmud dos Judeus (Escritura
não-sagrada): “Que as palavras da Torá
sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A oração que muitos
judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado
sejas Deus por não ter-me feito mulher!”
Ao sentar-se aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os
ensinamentos, Maria reivindica para si o direito de ser discípula. Ela reclama
para si o direito de ser cidadã no sentido pleno. “Sentar-se aos pés” era a atitude dos discípulos dos rabis.
Em Lc 10,38-42, Maria faz desobediência civil e
religiosa, pois fica aos pés de Jesus ouvindo-o. Só os homens judeus podiam
ficar aos pés de um mestre e se tornarem discípulos. Ouve Jesus e,
provavelmente, dialoga com Jesus e o interroga, e se torna discípula.
Um judeu entrar em uma casa onde só havia mulheres
também era algo censurável pela sociedade. Jesus desobedece a essa regra moral
e entra na casa de duas mulheres. Assim, Jesus vai formando seus discípulos e
discípulas enquanto caminha para Jerusalém.
2.15
- Ser simples como as
pombas e esperto como as serpentes.
Após
uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia à capital (Lc
9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma
clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram
em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve
ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como
narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar
presente e viva uma profecia do passado.
Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar
a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um
jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso
disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém
lhes perguntar: “Por que vocês estão
desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de
se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem
alarde. Se dissessem toda a estratégia a entrada em Jerusalém seria proibida
pelas forças de repressão.
Com
os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco
de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no
coração dos discípulos e discípulas. “Bendito
o que vem como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não
mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.
Ao
ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder – certo
tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente
chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam
salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”,
eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”,
gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta
por justiça, o que incomoda o status quo
opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que
ensina, profetisa: “Se meus discípulos
(profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do
galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão.
Se fecharem uns poucos caminhos, mil
trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União
é a rocha que o povo usou pra construir...!”
2.16 - Ser intransigente diante da opressão
econômica e política.
Os quatro evangelhos da Bíblia[4]
relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado
por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os
templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada
em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a
instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país
+ sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e
expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos
sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos
que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres
porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem
estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa
ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus
ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma
opressão.
2.17 – Diante da
violência social, não fomentar o paradigma de “mais repressão como caminho para
a paz social.
Mais
de 50 mil jovens estão sendo exterminados anualmente no Brasil. Outros 50 mil
morrem anualmente em “acidentes” de trânsito – que são crimes previstos – diante
da automovelatria reinante. Mais de 500 mil jovens, negros e pobres estão nas
prisões, verdadeiros campos de concentração. Há mandados de prisão para outros
500 mil. Isto é encarceramento em massa. Confira o Filme Tropa de Elite 2, o
inimigo é outro. No meio dessa máquina de moer vidas, há dois paradigmas em
disputa: a) o do endurecimento de penas, mais repressão, com aumento
vertiginoso do número de policiais e de seguranças particulares; b) o que busca
solucionar as causas sociais da violência com políticas públicas de reforma
agrária, reforma urbana, revolução na educação, diminuição das desigualdades
sociais, distribuição de renda. Defende-se que não há como conquistarmos paz
social sem justiça social, sem justiça agrária, sem justiça ambiental, sem
justiça trabalhista. A CF/2015 aponta esse paradigma, o b, como sensato e
cristão.
2.17 - Algumas conclusões.
Durante
a leitura, meditação e estudo do Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2015,
inúmeras vezes me veio à mente e ao coração a pessoa do papa Francisco, sua
práxis e seu ensinamento como guia da Igreja Católica no mundo. Por isso
registro aqui algumas afirmações do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria
do Evangelho, principalmente fazendo referência ao cap. IV, que trata
justamente da Dimensão Social da Evangelização:
“Se a dimensão social da evangelização não
for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico
e integral da missão evangelizadora.” (n. 176).
“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter
saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se
agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o
centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.” (n.
49).
Além
de ser pobre e para os pobres,
a Igreja desejada por Francisco é corajosa em denunciar o atual
sistema econômico, "injusto na sua
raiz" (A alegria do Evangelho, n. 59). Como disse João
Paulo II, a Igreja "não
pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça" (n. 183).
"Saiam!" é a essência da mensagem
que o papa Francisco envia a bispos, padres, membros da comunidade. Saiam para
fora das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos
convencidos – anunciem o Evangelho às periferias das cidades, aos
marginalizados pela sociedade, aos pobres, aos injustiçados.
Às questões sociais, o
papa Francisco dedica
dois dos cinco capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o
segundo e o quarto. Critica o "fetichismo do dinheiro" e "a ditadura
de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano",
versão nova e implacável da "adoração do antigo bezerro de ouro".
Francisco critica o
atual sistema econômico: "esta
economia que mata" porque prevalece a "lei do mais forte". Ele volta à cultura do
"descartável" que criou "algo
novo" e dramático: "Os
excluídos não são 'explorados', mas resíduos, 'sobras'" (n. 53).
Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando
"à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando
as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os
problemas do mundo e, em definitivo, problema algum". E indica na "desigualdade social" as raízes dos
males sociais.
A Igreja não pode
ficar indiferente a tais injustiças. "A
economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando
se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando
assim novos excluídos". Ele dedica páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual"
em que vivemos, um "mercado
divinizado", onde reinam a "especulação
financeira", "corrupção
ramificada", "evasão fiscal
egoísta" (n. 56).
Para o papa
Francisco, “a reforma agrária não é
apenas uma necessidade política, mas é, sim, uma obrigação moral”. Isto é,
um país, um povo e uma sociedade que não faz reforma agrária são imorais. “Toda
família tem direito a terra, a uma moradia digna e aos direitos fundamentais”,
afirma o papa.
Enfim, seguir Jesus
implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos
fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem,
audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o
infinito potencial humano existente em nós.
Para
concluir não concluindo, contamos com todas as pessoas cristãs para vivenciar a
Opção preferencial pelos Pobres e pelos Jovens, buscar alternativas para a
superação da atual crise socio-política-econômica-cultural e religiosa. Apoiar
firmemente a Economia Popular Solidária, as lutas pela Reforma Agrária, por
agricultura familiar, por preservação ambiental, pela mudança do atual modelo
econômico neoliberal. Queremos um modelo econômico que seja popular,
democrático, soberano, inclusivo e sustentável ecologicamente. Queremos
construir outro modelo de igreja, onde, de fato, a igreja seja povo de Deus, em
comunidades que se relacionam em sistema de rede.
2.18
- Referências de práxis libertadora.
Preferimos nesse artigo não citar nenhuma obra da
literatura bíblica ou teológica, mas dizer que o que nos inspirou o tempo todo
na construção do texto foi a experiência de luta dos Sem Terra do MST, dos Sem
Casa, do povo das Comunidades Eclesiais de Base, das Pastorais Sociais e dos
Movimentos Sociais Populares: povo que de forma coletiva, com fé no Deus da
vida, fé nos companheiros/as, fé nos pequenos e injustiçados, de mãos dadas,
seguem marchando e lutando para conquistar direitos fundamentais como um
pedacinho de terra, moradia digna e respeito. Enfrentam um tsunami de conflitos
e de perseguições, mas não desistem. A todo esse povo dedico esse texto.
2.19 - Apêndice.
Sugestão
de textos e eventos bíblicos libertadores que podem inspirar a vivência da
dimensão social da fé cristã, Fraternidade e Sociedade:
1) Gn
1: Toda a Criação é muito boa, imagem e semelhança de Deus.
2) Ex
1,15-22: O Movimento das parteiras faz Desobediência civil e religiosa. Cf.
Gandhi, Martin Luther King, as camponesas da Via Campesina.
3) Ex
3,7-10: Deus ouve o clamor dos oprimidos e faz opção pelos injustiçados.
4) Davi
vence Golias.
5) Is
65,17-25: Eis um novo céu e uma nova Terra.
6) Dn
2,31-37: Uma pedrinha destrói um gigante de pés de barro – a força da profecia.
7) Jo
6,1-15: Solução radical para a fome de pão – partilha de pães.
8) Mt
21,12-13: Jesus expulsa os capitalistas do Templo.
10) Ap
12,1-17: Uma mulher grávida, em dores de parto, vence um Dragão.
11) At
21,1-7: Deus deixa o céu e arma sua tenda no meio dos pobres.
Angra dos Reis, RJ, Brasil, 24 de fevereiro de 2015.
Frei Gilvander Luís Moreira, gilvanderlm@gmail.com
Face: Gilvander Moreira
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio
Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em
Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto
Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT
(Comissão Pastoral da Terra), do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos),
do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra
e moradia; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas
Gerais – CONEDH; e-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br - www.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
[2] Cf. Mt
14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-15.
[3] Falar em
multiplicação de pães induz a pensar em uma ação mágica de Jesus. Não foi o que
aconteceu.
[4] Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo
2,13-17.
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