É golpe,
sim, porque não houve crime de responsabilidade, demonstram juristas.
Breve
Nota Crítica ao Relatório Anastasia: contra a admissibilidade do processo de
impeachment por crime de responsabilidade da Presidente da República – Por
Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Gustavo Melo
Franco de Moraes Bahia. – 06/05/2016
A citação feita no Relatório Anastasia[1] do
texto dos comentários ao art. 85 da Constituição da República que escrevemos[2] não
considera de modo adequado a integridade do texto, nem do trecho referido. Para
nós, o fato do rol do art. 85 ser exemplificativo reforça ainda mais a
exigência prevista no parágrafo único do mesmo artigo da Constituição de que a
lei especial e regulamentar tipifique e defina os crimes de forma completa,
afastando, portanto, “tipos abertos”, bem como a interpretação extensiva ou por
analogia – o que não é possível por se tratar de crime. Indicamos, portanto, a
leitura do trecho dos Comentários à Constituição do Brasil:
“Para os
crimes de responsabilidade valem os dispositivos constitucionais e sua
regulamentação através da Lei 1.079/50.” E, logo em seguida, “O rol previsto no
art. 85 é meramente exemplificativo, constando sua definição completa naquela
citada norma infraconstitucional”, ou seja, a Lei 1.079/50. Este é o último parágrafo
do texto dos comentários ao artigo 85, in Comentários à
Constituição do Brasil, p. 1287. Depois de ter explicado, portanto, que a
Lei 1.079/50 tipifica os crimes.
O Senador
Anastasia, assim, nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos,
pois o fato de o elenco do art. 85 ser exemplificativo não significa que esteja
afastada a exigência de previsão legal taxativa dos crimes de responsabilidade,
conforme o parágrafo do mesmo artigo.
Como na
Carta aberta a Anastasia que foi encaminhada por professores, estudantes e
servidores da Faculdade de Direito da UFMG:
2) A
CR/88 dispõe em seu art. 85, parágrafo único, que uma lei especial definirá os
crimes de responsabilidade e estabelecerá as normas de processo e julgamento do
impeachment. Esta lei, como já afirmado pelo STF no julgamento do caso Collor
em sucessivos mandados de segurança (MS 21.564, MS 21.623 e MS 21.68) e agora
na ADPF 378 é a Lei 1079/50. Entendemos que em consonância com o devido
processo constitucional as hipóteses de crime elencadas pela lei do impeachment
devem ser atendidas taxativamente, não cabendo, portanto, interpretações
extensivas ou analógicas em respeito às garantias do próprio sistema
presidencialista, e do ordenamento jurídico como um todo, em que restrições de direitos
devem ser interpretadas de forma taxativa.”[3]
Para a
Constituição da República, justamente porque o rol é exemplificativo que a lei
especial regulamentará tipificando os crimes, por uma questão de segurança
jurídica! Ou seja, cabe à lei especial definir por completo. Como diria Gomes
Canotilho, estamos diante de uma vinculação expressa do legislador à
Constituição. Sabemos, pois, quais são os crimes de responsabilidade e qual o
procedimento de impeachment porque a Constituição estabeleceu os
parâmetros no art. 85, incisos e parágrafo, e no art. 86 (também art. 51, I, e
art. 52, I), e a Lei 1.079/50 os regulamentou, prevendo, taxativamente e
definindo de forma completa, os tipos penais.
Não cabe
assim interpretação extensiva e analógica dos crimes completamente definidos
pela lei especial prevista no parágrafo do art. 85. O preceito fundamental em
questão é mesmo o princípio da reserva legal. Somos, pois, daqueles que
concordam com Marcelo Neves[4] e
Alexandre Morais da Rosa[5] no
sentido de que crime de responsabilidade é crime e se submete à reserva legal,
em lei específica, no caso, a lei 1.079/50, no que foi recepcionada[6].
O fato de o rol do art. 85 não ser numerus clausus não afasta,
muito antes pelo contrário, a exigência constitucional, prevista no parágrafo
único do art. 85, de que a lei especial taxativamente o faça. Ou, como dissemos
no texto dos Comentários, defina completamente os crimes. Questão
mesmo de segurança jurídica, não há como se falar em “tipos abertos”. Ou seja,
o Senador Anastasia termina por tirar conclusões com as que jamais
concordaremos.
A
estratégia do Relatório Anastasia é a de se admitir que não há a tipificação
taxativa dos crimes de responsabilidade, mas que isso “não é um problema”, pois
que “o tipo seria aberto” e, então, poder-se-ia a ele aderir legislações e
capitulações que lhe são estranhas, como a responsabilidade fiscal ou qualquer
outra. Ora, se há previsão de hipóteses de “crime de responsabilidade” e “crime
comum” de Presidente da República, a serem apreciados em processos diferentes,
é justamente porque há crimes, ainda que diferentes.
Cabe
lembrar, ademais, que, embora estejamos numa República democrática em que, com
certeza, o Presidente é responsável, o sistema de governo constitucionalmente
adotado é o presidencialismo e não o parlamentarismo. Logo, no Brasil, o
Presidente da República só pode ser impedido quando estiver configurado crime,
segundo a Constituição e nos estritos termos da legislação a que a própria
Constituição se refere.
Nesse
sentido, cabe dizer que é perceptível desde o início qual seria a estratégia do
relatório. A estratégia de pretender descaracterizar o caráter de crime do crime
de responsabilidade para defender a possibilidade de afastar a exigência
jurídica de taxatividade dos crimes previstos em lei especial, abrindo espaço
para a interpretação extensiva e por analogia, defender uma responsabilidade
objetiva, sem dolo, e por atos que a Presidente não cometeu, como bem mostrou
Alexandre Morais da Rosa[7],
mesmo no caso das chamadas “pedaladas fiscais” (sic) referentes ao Plano
Safra, fato atípico posto que não há de se confundir o atraso no repasse dos
valores referentes a subvenções sociais com operações de crédito e onde sequer
há atos cometidos pela Presidente da República, como bem mostrou, mais uma vez,
Ricardo Lodi[8].
O que se
faz, ao fim e ao cabo, revela, justamente o que nós, e os demais autores aqui
citados, temos dito desde o início: trata-se de uma flagrante
inconstitucionalidade que sacrifica o caráter jurídico-político, portanto,
constitucional, do instituto do impeachment para reduzi-lo
apenas à vontade de uma maioria tardiamente formada.
Notas e
Referências:
[1] Ver Relatório, p. 53. Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/05/04/veja-aqui-a-integra-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia.
“No mesmo sentido, encontramos fartos ensinamentos na doutrina, podendo ser
citados, como exemplos, as posições de Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade
Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia (in: Leo Ferreira Leoncy et
al., Comentários à Constituição do Brasil, p. 1287); Bernardo Gonçalves
Fernandes (Curso de Direito Constitucional, p. 900), Gilmar Ferreira Mendes e
Paulo Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional, p. 956) e
Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil Interpretada e Legislação
Constitucional, p. 1263). Como se vê, a doutrina praticamente unânime reafirma
que a lista de bens jurídicos protegida pelos tipos do art. 85 da CF é
meramente exemplificativa. Nada há de ilícito, portanto, na especificação de um
novo tipo pelo legislador ordinário, como ocorreu com o art. 11. Aliás, esse
argumento levaria a conclusões absurdas: o legislador, a quem cabe
exclusivamente tipificar os crimes, pois se trata de hipótese de reserva legal,
não teria o poder de tipificar nenhuma conduta, a não ser as expressamente
previstas na Constituição?”
[2] STRECK, Lenio Luiz; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; BAHIA,
Alexandre. Comentário ao artigo 85 In: CANOTILHO, JJ Gomes; MENDES, Gilmar F.;
SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do
Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1285 a 1287.
[3] Disponível em http://emporiododireito.com.br/professores-estudantes-e-servidores-da-faculdade-de-direito-da-ufmg-escrevem-carta-aberta-ao-senador-anastasia/
[5] Ver o artigo disponível em http://emporiododireito.com.br/o-erro-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia-pode-anular-o-impeachment-por-alexandre-morais-da-rosa/
[6] Sobre o tema, afirma Lenio Streck: “As regras de interpretação –
sobre as quais não existe uma taxonomia – apontam para algumas questões
básicas: quando se trata de Direito Penal, não pode haver analogia in malam
partem. E quando está em jogo a coisa mais sagrada da democracia – que é a
vontade do povo — também não se podem fazer pan-hermeneutismos, a partir de
analogias e/ou interpretações extensivas. Parece-me que qualquer interpretação
sempre deverá ser indubio pro populo. In dubio pro vontade
popular.” (Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-ago-24/lenio-streck-constituicao-impeachment-mandato-anterior).
Ver também os diversos artigos publicados emhttp://emporiododireito.com.br/category/constituicao-e-democracia/ sobre
o tema do impeachment,especialmente, o artigo “Golpe Vergonhoso
passa na Câmara”, disponível emhttp://emporiododireito.com.br/golpe-vergonhoso-passa/,
bem como a obra BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; BACHA E SILVA,
Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Impeachment e o Supremo
Tribunal Federal: História e Teoria Constitucional Brasileira.
Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[7] Ver o artigo disponível em
http://emporiododireito.com.br/o-erro-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia-pode-anular-o-impeachment-por-alexandre-morais-da-rosa/.
[8] Ver a manifestação de Ricardo Lodi, assim como a de Geraldo Prado
e Marcello Lavenère, disponível emhttp://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/05/juristas-dizem-que-dilma-nao-cometeu-crime-de-responsabilidade.
Também http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/ricardo-lodi-pedaladas-hermeneuticas-pedido-impeachment.
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