Laudato Si e as lutas dos movimentos
socioambientais
Gilvander Luís Moreira[1]
Iniciando a reflexão[2]
Muitas crises estão afetando as pessoas e todos os
demais seres que habitam nossa Casa Comum. A crise ecológica já acendeu o sinal
vermelho há muito tempo. Que “o mundo está em chamas”, já dizia, ainda no
século XVI, Teresa de Jesus, espanhola e freira carmelita, uma das três
mulheres consideradas doutoras pela Igreja. O que acontece, todavia, é que do
século XVI para cá, o modo de produção industrial, os estilos de vida impostos
pelo modelo capitalista e tecnocrático somente agravaram os problemas
ambientais no Planeta. “Não brinque com fogo”, dizia a mamãe Leontina. Urgente
se tornou interrompermos a espiral de autodestruição da humanidade e de todo o
planeta.
Como assessor da Comissão Pastoral da Terra, de
Comunidades Eclesiais de Base e como militante de Movimentos Sociais do campo e
da cidade, li com alegria a carta Encíclica “Laudato Si’”. E dessas janelas
tomo a liberdade de dialogar com os ensinamentos do papa Francisco, ressaltando
alguns posicionamentos dele e arriscando a assinalar algumas ausências e
lacunas. É uma oportunidade para refletir acerca de outros pontos de vista e
posturas a partir da práxis de Movimentos Sociais Populares.
Com o auxílio dos omissos, dos cúmplices e dos
coniventes, o capitalismo causou – e continua aprofundando – a maior crise
ecológica de todos os tempos dos humanos sobre a face da terra. As mineradoras com suas máquinas pesadas,
cada vez mais potentes, como dragões cuspindo fogo, dizimam milhões de
nascentes d’água pelo mundo afora. Ao formar crateras, deixam a mãe Terra
dilacerada. Grandes empresas do agronegócio ampliam as monoculturas de
eucalipto, de soja, de café, de cana.. e, assim, deixam um rastro de destruição
nunca antes visto. O esgotamento dos solos férteis é um risco para a segurança
e soberania alimentar da humanidade. Megaempresas do hidronegócio transformaram
a água em mercadoria. Um litro de água em alguns lugares, como aeroportos,
custa um absurdo.
Nesse contexto dramático, que interpela a consciência
de todas as pessoas de boa vontade, faz-se necessário resgatar a profecia do
Concílio Vaticano II e da Opção da Igreja pelos pobres e pelos jovens, opção da
Igreja afrolatíndia. Imprescindível ouvirmos os
clamores de todos os injustiçados, entre os quais a Terra, as nascentes de
águas e toda a biodiversidade. Não podemos tardar mais em levar a sério o
testemunho e os ensinamentos do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, no seu Discurso
aos Movimentos Sociais na Bolívia e na Carta Encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum.
1. A dimensão
social da fé em A Alegria do Evangelho
O cap. IV de A Alegria do Evangelho (EG) trata justamente da Dimensão Social e
econômica da fé cristã. Prestemos atenção a algumas afirmações do papa
Francisco:
Se a dimensão social da evangelização
não for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido
autêntico e integral da missão evangelizadora (EG 176).“Prefiro uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo
fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma
Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de
obsessões e procedimentos.” (EG 49).
Além de ser pobre e para os pobres,
a Igreja desejada por Francisco é
corajosa em denunciar o atual sistema econômico, "injusto na sua raiz" (EG 59). Como disse João Paulo II, a Igreja "não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça" (EG
183). "Saiam!" é a essência da mensagem que o papa Francisco envia
aos bispos, padres e membros das comunidades cristãs. Saiam das suas cômodas
estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos, anunciem
o Evangelho às periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos
pobres, aos injustiçados!
Às questões sociais, o papa Francisco dedica
dois dos cinco capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o segundo e o quarto. Critica o
"fetichismo do dinheiro" e "a ditadura de uma economia sem rosto
e sem um objetivo verdadeiramente humano", versão nova e implacável da
"adoração do antigo bezerro de ouro". Ele critica o atual sistema
econômico: "esta economia que mata"
porque prevalece a "lei do mais
forte". Este se opõe à cultura do "ser humano descartável"
que criou "algo novo" e
dramático: "Os excluídos não são
'explorados', mas resíduos, 'sobras'" (EG 53). Enquanto não se
resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando "à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas
do mundo e, em definitivo, problema algum". E indica que as raízes dos
males sociais estão na "desigualdade
social”.
A Igreja não deve ficar indiferente a tais injustiças.
A economia não pode mais recorrer a
remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a
rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos
(EG 204). O papa Francisco dedica páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual"
em que vivemos, um "mercado
divinizado", onde reinam a "especulação
financeira", a "corrupção
ramificada", a "evasão
fiscal egoísta" (56).
2. O Papa Francisco de mãos dadas
com os Movimentos Sociais
É eloquente o papa Francisco iniciar a Carta Encíclica
Laudato Si’ exclamando: “Louvado sejas, meu Senhor”, invocando o Cântico das
criaturas, cantado por Francisco de Assis. Por vários motivos: Primeiro, porque
“Louvado sejas” dito diante do planeta Terra, com sua biodiversidade, revela
admiração e encanto pela natureza que nos envolve e da qual fazemos parte.
Segundo, pedagogicamente é mais promissor conclamar para o compromisso com a
defesa da nossa única casa comum a partir do encantamento e da beleza e não a
partir do medo e da insegurança, que despertam tantas mazelas socioambientais.
Uma convicção profunda permeia toda a Encíclica
Laudato Si’, convicção que o papa Francisco, carinhosamente, propõe a todas as
pessoas de boa vontade: “Visto que todas
as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o
valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros (42).”
Isso mesmo: Nós, humanos, somos os que mais dependem de todos os outros seres.
Logo, é estupidez o antropocentrismo que exalta individualmente o ser humano,
abrindo espaço para o sistema pisar, violentar e assassinar tantos seres vivos.
O papa Francisco adverte já no segundo parágrafo:
“Entre os pobres mais abandonados e maltratados,
conta-se a nossa terra oprimida e devastada,
que “geme e sofre as dores do parto” (Rm 8,22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7)
(2).” Ninguém deve ficar indiferente. “À
vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que
habita neste planeta (..) Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em
diálogo com todos acerca da nossa casa comum (3)”.
Que nada nos seja indiferente! Que beleza ver o papa
Francisco olhando para além dos muros da Igreja Católica e conclamando ao
diálogo todas as pessoas crentes ou não, todas as igrejas, todas as religiões.
E certo diálogo com todos os seres vivos da Terra, acrescentamos.
Ao longo da Encíclica Laudato Si’, o papa Francisco inúmeras vezes se refere a “ser
humano”, “nosso comportamento irresponsável”, “os seres humanos que destroem a
biodiversidade” (8), “a humanidade”, “atividade humana” e a termos similares,
para de alguma forma responsabilizar a todos pela gravidade da crise ecológica.
Aqui, da perspectiva dos Movimentos Sociais e das ciências sociais críticas ao
capitalismo, é imprescindível ponderar a existência de grupos sociais com
interesses antagônicos e contraditórios. Os principais responsáveis pela
devastação socioambiental são a classe dominante, os que detêm o poder
econômico e político na sociedade. As classes populares não estão isentas de
responsabilidade socioambiental vigente, mas são muito mais vítimas do que
algozes nos crimes socioambientais que ora estão sendo perpetrados. Nesse
ponto, o papa Francisco foi mais contundente no Discurso aos Movimentos Sociais
na Bolívia em junho de 2015.
Que bom ouvir do Papa: “Francisco é o exemplo por
excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com
alegria e autenticidade (..) Nele se nota até que ponto são inseparáveis a
preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade
e a paz interior (10).” Para o Chico de Assis, qualquer criatura era uma irmã,
inclusive a morte.
Além de resgatar os ensinamentos e o testemunho
libertador de Francisco de Assis, é indispensável cultivarmos a memória dos/as
mártires e lutadores por justiça socioambiental, como Chico Mendes; Zé Maria
Tomé da Chapada do Apodi, mártir da luta contra os agrotóxicos; Francisco
Anselmo, mártir da luta contra a instalação de Usinas de álcool e açúcar no
Pantanal; José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, casal de militantes
socioambientalistas do Pará, mortos por madeireiros; Augusto Ruschi e muitos
outros/as.
“Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre
uma parte do horto por cultivar, para aí crescerem as ervas silvestres (12)”.
Ao resgatar essa perspectiva agroecológica do Chico de Assis, o papa nos dá o
ensejo de dizer que sem agroecologia não há salvação para a humanidade. O
agronegócio, antiecológico, com o uso indiscriminado e criminoso de agrotóxico,
está envenenando a comida do povo[3].
3.
Uma
luta complexa
O papa Francisco está preocupado em “unir toda a
família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral (13).”
Mas, temos que alertar: a categoria “desenvolvimento sustentável”, no início
parecia apontar para uma alternativa emancipatória. No entanto, há muito tempo
essa categoria foi absorvida pelas empresas e tornou-se uma peça de propaganda
enganosa. Strictu sensu, falar em
desenvolvimento sustentável é contraditório, pois ‘desenvolvimento’ implica
crescer economicamente, progresso, o que necessariamente terá que consumir bens
naturais. E ‘sustentável’ é uma categoria da área da ecologia e implica
garantir a continuidade dos ciclos de matéria e energia, para as gerações
presentes e futuras. Logo, ou se desenvolve e cresce economicamente ou se busca
alternativas para garantir a sustentabilidade ecológica. Diante da agudização
da crise ecológica, o ético e sensato seria manter a “comunidade de vida” do planeta.
Isso também por responsabilidade geracional. O próprio papa Francisco adverte
na Encíclica:
Não é suficiente conciliar, a meio-termo, o cuidado da
natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o
progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do
colapso (..). O discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo
(tergiversação) e um meio de justificação que absorve valores do discurso
ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade
social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série
de ações de publicidade e imagem (194).
Na perspectiva dos Movimentos Sociais transformadores,
são inaceitáveis os discursos e as práticas que dizem: “precisamos conciliar
desenvolvimento com preservação ambiental”, “urge adequar os projetos mitigando
os impactos socioambientais”, “temos que adequar os grandes projetos dentro das
normas ambientais”. Busca-se dourar a pílula, criando uma fachada de
preocupação socioambiental para viabilizar a continuidade da máquina de moer
vidas. As megaempresas são geridas por executivos que, amarrados no mastro no
navio, ouvem e se deleitam com o canto da sereia do capital. De outro lado,
seguem os trabalhadores amarrados, (em)pregados aos seus postos de trabalho,
sem ter outra alternativa de vida, sustentando o sistema a troco de quase nada.
“A contínua
aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à
intensificação dos ritmos de vida e trabalho (18).” O
produtivismo, o trabalho por metas, a intensificação do ritmo de trabalho, a
produção o mais rápido possível, a terceirização e a precarização das condições
de trabalho estão desumanizando milhões de pessoas. Aumenta-se assustadoramente
o número de adoecimentos por trabalho extenuante.
A poluição afeta a todos, causada pelo transporte,
pela fumaça da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a
acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas,
pesticidas e agrotóxicos em geral (...). A tecnologia, ligada à finança, é
incapaz de ver o mistério das múltiplas reações que existem entre as coisas e,
por isso, às vezes resolve um problema criando outros (20).”
Não é apenas uma questão de incapacidade. A tecnologia
não é neutra. Ela está, salvo exceções, subserviente aos interesses dos grandes
conglomerados econômicos. Logo, a raiz reside no capital que usa a tecnologia
para oprimir. A tecnologia resolve um problema, mas cria outras grades, que
prenderão muita gente.
Os defensores da “sociedade de mercado” exaltam o
crescimento econômico com constante aumento da produção de mercadorias, como se
isso fosse caminho para a felicidade de todos. O que escondem é que “produzem-se anualmente centenas de milhões
de toneladas de resíduos altamente tóxicos e radioativos. A Terra, nossa casa
única e comum, parece transformar-se cada vez mais em um imenso depósito de
lixo (21).” Ora, quanto mais o capitalismo se desenvolve mais concentra
riquezas e devasta socioambientalmente o Planeta.
Urge superar a cultura do descartável, construindo uma
sociedade sustentável. “Ainda não se
conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para
todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso
dos recursos não renováveis (22).” Precisamos
desacelerar a máquina de moer vidas. É hora de dar mais
valor à nossa Casa Comum e aos bens naturais, que não são apenas “recursos
naturais”, assim vistos quando reduzidos ao aspecto estritamente econômico.
4.
Mudanças climáticas e outras questões
Estamos perante um preocupante aquecimento do sistema
climático (..) devido a alta concentração de gazes com efeito de estufa
(anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros) (23) (..) O aquecimento
influi no ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a
situação e que incidirá sobre a disponibilidade de bens essenciais como a água potável (..) A perda
das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança
climática (..) A subida do nível do mar
pode criar situações de extrema gravidade, se se considerar que um quarto da
população mundial vive à beira-mar (24).”
Que bom que o
papa Francisco ecoe esses alertas que vem sendo feitos por milhares de
cientistas e experimentado por milhões de pessoas no mundo!
Está ocorrendo um aumento assustador dos impactos
ambientais. Os atingidos por grandes projetos de mineração, de barragens e de
hidroelétricas alertam: eles não são apenas atingidos, mas massacrados.
Escondendo-se por detrás da capa de combustível limpo, as grandes empresas da
monocultura de cana-de-açúcar submetem milhares de pessoas a trabalho
exaustivo, dizimam nascentes e devastam a saúde de milhões de pessoas com as
nuvens de fumaça dos canaviais invadindo as cidades. Mais: alguns projetos de
energia eólica, considerada como energia limpa, estão causando impactos
socioambientais em vários estados do Nordeste brasileiro.
Anima-nos muito na luta ver o papa Francisco se
posicionar, denunciando a privatização das águas e a restrição do seu acesso
aos empobrecidos:
Enquanto a qualidade da água disponível piora
constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar esse
recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado
divinizado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.
Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à
água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida, radicado na sua
dignidade inalienável (30).
Vários movimentos sociais e ambientais denunciam
constantemente a destruição dos nossos biomas, como o Cerrado, a Amazônia, o
Pantanal, os Pampas, a Caatinga e a Mata Atlântica, com a consequente perda de
biodiversidade. Francisco também assume esta causa com vigor:
A perda de florestas e bosques implica simultaneamente
a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente
importantes não só para a alimentação, mas também para a cura de doenças e
vários serviços (32). Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e
animais (33).
Há um problema que está na luta cotidiana dos
movimentos sociais, e que o papa abordou com clareza. Os estudos de impactos
ambientais dos grandes projetos de interesse do capital, realizados pelas
empresas, geralmente são “para inglês ver”. Subestimam drasticamente os
impactos sociais, econômicos e ambientais que acontecerão e exaltam os
pretensos benefícios “sociais”. As comunidades vistas como indiretamente
afetadas normalmente são desconsideradas. Muitos dos afetados diretamente são
excluídos e a cantilena mentirosa se repete à exaustão: “geraremos muitos
empregos e desenvolvimento para a região”. Dizem, mas não é assim que acontece.
Todos nós somos afetados de alguma maneira pelos impactos socioambientais
negativos.
Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer
iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e
no ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na
biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais ou
vegetais fosse algo de pouca relevância (35).”
Outro problema socioambiental, que atinge uma imensa
área do Brasil e é normalmente ignorado, consiste na lenta perda de qualidade
dos nossos mares e oceanos. Francisco alerta:
Os oceanos contêm não só a maior parte da água do
planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos (40). Passando
aos mares tropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes
florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies,
incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos
dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontra-se num estado
contínuo de declínio (41).
Quem transformou o
maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de
cor?”(41)”, interpela-nos o papa Francisco, citando Carta
Pastoral dos Bispos das Filipinas. Eh! Olhando de longe o mar, só se vê muita
água. Mas, se observarmos de perto, descobriremos que os oceanos e mares são
grandes berços de vida. Infelizmente vêm sendo irresponsavelmente envenenados
pelo lixo de todo tipo.
Uma importante bandeira dos movimentos populares,
amplamente defendida no nosso continente latino-americano, diz respeito à
segurança e soberania alimentares. Ou seja, os mecanismos para produzir e
distribuir alimentos, de forma justa, saudável e ecologicamente sustentável. Também
desta questão se ocupa a Laudato Si.
Denuncia que “se desperdiça
aproximadamente um terço dos alimentos produzidos”, e “a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre
(50).” O problema de fundo não é a falta de alimentos, mas a concentração dos
alimentos que impede sua socialização. No capitalismo, alimento é considerado
como mercadoria, e não um direito humano fundamental. Outro problema: se produz
em quantidade cada vez maior, mas com a qualidade cada vez menor. Ou seja, com o
uso indiscriminado de agrotóxico, a alimentação está cada vez mais envenenada.
Enfim, a comida desperdiçada e envenenada furta dos pobres a saúde e o
bem-estar.
O papa assume na Encíclica Laudato Si’ o que disseram
os bispos do Paraguai na Carta pastoral El
campesino paraguayo y la tierra, de 1983:
Cada camponês tem direito natural de possuir um lote
razoável de terra, onde possa gozar de segurança existencial. Este direito deve
ser de tal forma garantido que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto
significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios
de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado (94).
O papa Francisco apoia a agricultura familiar e
critica o agronegócio como um causador do êxodo rural ao dizer:
Há uma grande variedade de sistemas alimentares rurais
de pequena escala que continuam alimentando a maior parte da população mundial,
utilizando uma porção reduzida de terreno e água e produzindo menos resíduos,
quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e coleta de produtos
silvestres, quer na pesca artesanal. As economias de larga escala,
especialmente no setor agrícola, acabam forçando os pequenos agricultores a
vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais (129).
Respaldando o documento Uma terra para todos, dos bispos da Argentina, de 2005, o papa
Francisco questiona o uso de sementes e produtos transgênicos ao afirmar:
Em muitos lugares, na sequência da introdução das
culturas transgênicas, constata-se uma concentração de terras produtivas nas
mãos de poucos, devido ao “progressivo desaparecimento de pequenos produtores,
que, em consequência da perda das terras cultivadas, se viram obrigados a
retirar-se da produção direta (134).”
Francisco denuncia a desigualdade planetária. Citando
a Carta pastoral dos Bispos da Bolívia, afirma: “tanto a experiência comum da vida cotidiana como a investigação
científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões
ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres (48).”
Em uma sociedade onde os pretensos valores do sistema
– individualismo, competição, egocentrismo e acumulação – são trombeteados aos
quatro ventos, todo mundo de alguma forma agride o meio ambiente. Mas os
principais devastadores socioambientais são os que movimentam “as grandes
máquinas do mercado” que como dragões vão cuspindo fogo e deixando um rastro de
devastação por onde passam. Nesse sentido, “uma
verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve
integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor
da terra como o clamor dos pobres (49)”.
Ora, a justiça socioambiental implica em justiça
agrária, urbana e social. E conquistaremos isso com lutas coletivas por terra,
por moradia digna, por direitos fundamentais humanos. Como luz, fermento e sal,
os/as militantes dos Movimentos Sociais estão comprometidos de forma abnegada
nessas causas.
5.
Ouvindo o grito dos pobres e o grito da terra
“Os gemidos da
irmã terra se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que
reclama de nós outro rumo (53).” Gemidos que se tornam, cada vez mais,
clamores ensurdecedores. Qual rumo seguir? Com sabedoria, o papa Francisco
pondera: “as soluções não podem vir de
uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário
recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à
vida interior e à espiritualidade (63).” Sim, lutas coletivas são
imprescindíveis, mas junto com o cultivo das artes e culturas populares, da música,
e o desenvolvimento de uma mística libertadora.
Diz o papa Francisco: A narração do Gênesis, que convida a dominar a terra (cf. Gn 1,28),
apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador, não é uma
interpretação correta da Bíblia (..) É
importante ler os textos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar
que eles nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,15)
(67) (..) A Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se
desinteressa das outras criaturas (68).” Arrisco-me a dizer que a Bíblia
não referenda nenhuma forma de antropocentrismo.
Francisco reafirma um princípio inarredável do
Ensinamento social da Igreja: o destino comum dos bens.
A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou
intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de
qualquer forma de propriedade privada. ... Sobre toda a propriedade particular
pesa sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que
Deus lhes deu (93).
Com os bispos da Nova Zelândia, o papa pergunta “que
significado tem o mandamento “não matarás”, quando “uns vinte por cento da população mundial consomem recursos numa medida
tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que
necessitam para sobreviver? (95)” Isso nos leva a recordar o Decálogo
bíblico (Ex 20,1-17), que ao longo da história foi reduzido aos “Dez
Mandamentos”. O Decálogo não se dirige apenas a pessoas individualizadas, mas a
todo o povo, à sociedade inteira. Logo, não são apenas as pessoas que não podem
matar, roubar ou adulterar. É a sociedade,
o Estado, as empresas e as
instituições que não podem matar, nem direta e nem indiretamente. Assim, o decálogo
constitui princípios da Constituição de um povo em marcha de libertação, à luz
da fé.
Os Movimentos Sociais tem claro que é insuficiente
alertar para cada um(a) aderir a um estilo de vida simples e austero e fazer
“sua parte”. É preciso “derrubar do trono os poderosos e elevar os humildes”
(Lc 1,52), o que se fará com lutas coletivas de resistência e ensaios de
propostas transformadoras. Urge amar os injustiçados nos colocando ao lado
deles, para com eles e a partir deles lutarmos pelos seus direitos sociais
negados. É urgente amarmos os opressores fazendo o possível para retirarmos das
suas mãos as armas da opressão.
Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político
parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus
sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças
climáticas (..) Tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas
capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbônico e
outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por exemplo,
substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia
renovável (26).”
6.
A opressão que vem da tecnocracia
O papa Francisco aponta a tecnocracia como raiz humana
da crise ecológica; o governo com decisões ancoradas em argumentos “técnicos”,
que não são neutros e nem somente científicos. Diz ele: “A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe
diante de uma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de
mudanças” (102). Mas os avanços tecnológicos não têm sido democratizados.
Ao contrário, têm fortalecido as desigualdades sociais aumentando o abismo
entre enriquecidos e empobrecidos. O papa pergunta: “Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus? (103)”
São exuberantes, sim, mas não podemos esquecer que grande parte da população
continua excluída de acessar os aviões e muitos arranha-céus são catedrais do
mercado idolatrado.
Francisco denuncia a falta de democratização do
paradigma tecnocrático:
Os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma
trama que acaba condicionando os estilos de vida e orientam as possibilidades
sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções,
que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de
vida social que se pretende desenvolver (107).
Sim, a técnica cria consumidores, despertando desejos
e necessidades artificiais.
O papa advoga no sentido de “limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço de outro tipo de
progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral (112). Ora,
o rumo emancipatório parece exigir mais do que limitar o desempenho atual e
buscar outro tipo de progresso. Sugerimos ainda: acreditar, fomentar e
desenvolver técnicas populares, fruto da sabedoria das populações tradicionais,
como as alternativas camponesas de convivência com o semiárido. O atual modelo
de progresso não é saudável, nem humano, nem social, nem integral. É, sim,
doentio, desumano, egocêntrico e desintegrador do tecido social. Não dá para remendar; é preciso uma mudança radical.
7.
Nem antropocentrismo e nem biocentrismo
Ao alertar para o risco de considerar a pessoa humana
apenas mais um ser entre outros, o papa Francisco diz que um antropocentrismo
desordenado não deve necessariamente ser substituído por um “biocentrismo” (118). Recair em um biocentrismo será
certamente um problema. Mas todo e
qualquer tipo de antropocentrismo é problema, pois hierarquiza as relações
entre os humanos e outros seres vivos. Essa hierarquização pavimenta o caminho
para estruturação de poder-dominação, o que implementa violência sem fim.
O papa não esquece a importância de uma ecologia
cultural. Afirma:
O desaparecimento de uma cultura pode ser tanto ou
mais grave do que o desaparecimento de uma espécie animal ou vegetal. A imposição
de um estilo hegemônico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão
nocivo como a alteração dos ecossistemas (145).
Para orientar nossa ação conjunta, Francisco reconhece
que sobre a crise ecológica todas as pessoas têm responsabilidades, mas diferenciadas.
Com os bispos da Bolívia, assevera: “Os
países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa de
uma enorme emissão de gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em
contribuir para a solução dos problemas que causaram (170).” Tem sim, mas
se não forem pressionados pelos cidadãos/ãs e os movimentos sociais, os países
que acumularam riquezas e poder jamais irão descer do pedestal voluntariamente,
pois o poder político que os governa está em grande parte no comando do grande
capital transnacional (cf. 175). Solidariedade
todo mundo pode fazer, mas lutar por justiça implica contrariar interesses de
quem está no poder. Poucos se atrevem a fazer isso. Por isso é
preciso opção pelos pobres, o que implica revelar conflitos e lutar para
superá-los de forma justa.
Ao pugnar por diálogo e transparência nos processos
decisórios, o papa Francisco propõe: “Em
qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-á por uma série de
perguntas, para poder discernir se este levará a um desenvolvimento
verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que
maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas
e como o fará? (185).”Bastante lúcido, o papa pergunta: “Será realista esperar que quem está
obcecado com a maximização dos lucros se detenha para considerar os efeitos
ambientais que deixará às próximas gerações? (190)” Óbvio que não. Para evitarmos o apocalipse que
está sendo engendrado pelo mercado, as mudanças necessárias virão a partir da
luta coletiva e permanente dos injustiçados, ou não virá.
Francisco nos motiva a educar para a aliança entre a
humanidade e o ambiente com pequenas ações diárias, em um estilo de vida
simples, humilde e sóbrio. Diz ele que isso passa por “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, separar o
lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com
desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar
o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes
desnecessárias (211).”
Apontando para a necessidade de encarnarmos um estilo
de vida simples, humilde e austero, o papa denuncia a falta de liberdade na
sociedade do mercado divinizado: “O
mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender seus
produtos, as pessoas acabam sendo arrastadas pelo turbilhão de compras e gastos
supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjetivo do paradigma
tecnoeconômico (..). O referido
paradigma faz crer a todos que são livres, pois conservam uma suposta liberdade
de consumir, quando na realidade apenas a minoria que detém o poder econômico e
financeiro possui a liberdade (203).” Exatamente. Se não há liberdade real
para a maioria, não há Estado Democrático de Direito e nem democracia efetiva.
Como um abnegado humanista e semeador de utopia que
nos faz caminhar e lutar, Francisco afirma:
Atrevo-me a propor de novo o desafio considerável da
Carta da Terra, de 2000: “Como nunca antes na história, o destino comum
obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o nosso seja um tempo que se
recorde pelo despertar de uma nova reverência diante da vida, pela firme
resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol
da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida” (207).
8.
Enfim, a luta continua. E o diálogo também.
Há muitas outras afirmações, reflexões e
posicionamentos do papa Francisco na Encíclica Laudato Si’ que merecem ser
ressaltadas, comentadas e difundidas. Existem também alguns pontos que, lendo
na perspectiva dos Movimentos Sociais, exigem ampliação, aprofundamento ou
mudança.
Ficamos por aqui, com profundo sentimento de gratidão,
admiração, respeito e alegria por termos guiando a Igreja Católica o papa
Francisco: uma pessoa mística, profética, fraterna e terna. Para ele, bom
pastor e profeta, “tiramos o chapéu”!
[1] Frei e padre
da Ordem dos Carmelitas. Bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel
em Teologia, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação na FAE/UFMG.
Assessor de CEBs, CPT, CEBI e SAB. E-mail: gilvanderufmg@gmail.com
– www.freigilvander.blogspot.com.br - www.gilvander.org.br face: Gilvander Moreira.
[2] Esse texto foi
publicado como o capítulo 15 do livro MURAD, Afonso & TAVARES, Sinivaldo
Silva (Org.). Cuidar da Casa Comum:
chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato si’. São Paulo,
Paulinas, 2016, p. 197-217.
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