De Acampamento a Assentamento Dom Luciano Mendes: da
dor à dignidade.
Por Gilvander Moreira[1]
Maria Aparecida Alves, a Cidona do MST, na luta pela terra em Salto da Divisa, MG. Foto: frei Gilvander |
Após o
MST[2]
nascer e se fortalecer na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, com
o assentamento Franco Duarte, em Jequitinhonha; o acampamento Terra Prometida,
em Felisburgo; e o assentamento Esperança/Santa Rosa, em Almenara, e após ter acontecido em Unaí, MG, dia 28 de janeiro de 2004,
o massacre dos quatro fiscais do Ministério do Trabalho, no mesmo ano, dia 20
de novembro de 2004, o massacre de cinco Sem Terra em Felisburgo, impulsionado
pelo trabalho pastoral da irmã Geraldinha, de outras irmãs dominicanas e de
militantes do GADHH[3],
eis que o MST fincou pela primeira vez sua bandeira em Salto da Divisa, um
município sob hegemonia do latifúndio e do capital no campo. O Acampamento Dom
Luciano Mendes, do MST, em Salto da Divisa, município com seis mil habitantes,
distante 7 km da cidadezinha de Salto[4] e a 880 km
de Belo Horizonte, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, após um longo processo
de gestação, nasceu na madrugada do dia 26 de agosto de 2006, exatamente no dia
em que o arcebispo da Arquidiocese de Mariana, MG, Dom Luciano Mendes de
Oliveira, faleceu. Por isso e, principalmente, por ele ter sido ao longo de
várias décadas uma referência para a igreja popular na linha da Teologia da
Libertação, para as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as pastorais sociais
e para os movimentos populares, Dom Luciano foi escolhido para ser o patrono do
acampamento.
Assim
como irmã Geraldinha, Maria Aparecida Alves, carinhosamente conhecida como
Cidona do MST, contribuiu muito com a luta pela terra no Acampamento Dom
Luciano Mendes. Inesperadamente, aos 48 anos, Cidona faleceu dia 27 de junho de
2014, às 21h30, enquanto dançava forró em uma festa de aniversário no Assentamento
Franco Duarte, município de Jequitinhonha, onde residia há 12 anos após vários
anos de acampamento à beira da BR 367.
Irmã
Geraldinha recorda como foi a primeira ocupação no município de Salto da
Divisa: “A ocupação que se tornou o
Acampamento Dom Luciano Mendes aconteceu por volta das 4 horas da madrugada do
dia 26 de agosto de 2006, com 186 famílias sem-terra que logo depois foram
cadastradas no INCRA[5].[6] O povo
levantou de madrugada, pôs os cacaios nas costas e cortou a cerca de mais um
latifúndio iniciando o Acampamento Dom Luciano. Com a lona preta nas mãos
entramos nessa fazenda chamada Manga do Gustavo. A gente sabia que era terra
devoluta” (Irmã Geraldinha).
Naquela
madrugada lá estava Cidona, ao lado de 186 famílias, fincando a bandeira do MST
no Acampamento que três dias depois foi batizado de Acampamento Dom Luciano
Mendes. Na Assembleia que decidiu qual seria o nome do acampamento, Cidona
afirmou: “Ocupamos aqui no mesmo dia em
que morreu o grande bispo Dom Luciano Mendes, um irmão na luta dos pobres. Por
isso proponho a gente homenageá-lo colocando o nome de Dom Luciano no nosso
acampamento, pois cultivar a memória profética dele é dever de todos nós”
(CIDONA DO MST, dia 29/8/2006).
Nascido
na zona rural do município de Vitória da Conquista, criado em Salto da Divisa e
pai de 14 filhos, Sr. Manoel Santiago Rocha, Sem Terra, atualmente assentado no
Assentamento Dom Luciano Mendes, atesta: “Aqui
tudo era mata. Estrada não existia. Tivemos que mudar para a cidade para
estudar a meninada”. O Sem Terra José da Silva, nascido em Iguaí, BA,
cresceu sendo vaqueiro e se tornou gerente de uma fazenda em Itapetinga, BA.
Ele narra as peripécias da história dele até se tornar um Sem Terra assentado
no Assentamento Dom Luciano Mendes, assim: “O
ex-gerente da fazenda meteu um revólver na minha cara e quase me matou quando
soube que o fazendeiro tinha me passado a responsabilidade sobre a fazenda. Eu
disse para ele: ‘Eu também tenho revólver, mas não vou puxar minha arma para
você. Você tem que me respeitar’. As nossas mulheres chegaram e entraram no
nosso meio. A mulher dele gritou com ele: ‘Respeite esse homem’. Ele ficou com
o revólver na minha cara e eu com o dedo na cara dele durante quase uma hora.
Isso sem motivo nenhum. Ao chegar em casa, eu disse para minha esposa: ‘Essa
fazenda me serviu até hoje’. Saí sem receber o que eu tinha direito e fui para
São Paulo e fiquei uma temporada lá. A passagem eu paguei após trabalhar em São
Paulo. Quando apareceu o MST eu comecei a acompanhar na Bahia em uma área de
900 hectares em Arataca. A gente fazia marchas pra Salvador. Conquistamos a
área, fizemos o loteamento e tocou 1500 pés de cacau para cada família. Em uma
briga, um assentado matou outro. Naquele tempo, a polícia não entrava no
assentamento sem nossa autorização. A partir desse dia, vários amigos passaram
a se dizer bravos. “‘Meu revólver queima’, ‘Minha faca é afiada’”, diziam.
Vendi os pés de cacau por trezentos contos e resolvi sair. Voltei a ser
empregado em uma fazenda por mais cinco anos. Depois entrei em outro
acampamento no trevo de Camacã, mas a mulher que morava comigo começou a ficar
brava e eu resolvi largar a mulher em uma noite e vim me juntar aos
companheiros aqui no Acampamento Dom Luciano Mendes. Na hora que a terra
estiver na nossa mão, eu vou procurar meus filhos e convidá-los para vir morar
aqui na terra. Luto pela terra pensando nos meus filhos, pois já estou idoso.”
O
camponês agregado José Mendes Batista foi expulso pelo fazendeiro Marcos
Peixoto, da fazenda Cansanção, e foi morar na cidade de Salto da Divisa. Lá na
fazenda, vivendo como agregado, um dia, à noite, ele acordou com tiros dados na
sua casa. Aí ele não teve mais condições de continuar morando como agregado. Dona
Maria Pereira Rocha, Sem Terra assentada no PA Dom Luciano Mendes, diz: “Entramos na luta pela terra no Acampamento
Dom Luciano e, aqui, agora assentados no Assentamento Dom Luciano estamos em
paz.” A Sem Terra Cleonice dos Santos Silva Souza, assentada no Assentamento Dom
Luciano Mendes, narra o processo de emancipação dela na luta pela terra, assim:
“Nós começamos junto com as irmãs fazendo
as místicas com as sementes de milho e feijão. Eu não entendia o porquê
daquelas místicas. Eu era lavadeira para inteirar o dinheiro do meu esposo
Carlos Dias de Souza. Às 4h da madrugada, do dia 26 de agosto de 2006, eu
chamei meu filho e fomos para a ocupação que estava nascendo na fazenda Manga
do Gustavo. O povo já tinha feito café para todos. Fomos bem recebidos. Não
deixaram nós fazermos nossos barracos debaixo da fiação elétrica da CEMIG.
Começamos a plantar e produzir naquela terra. Organizamos uma roça coletiva. A Comissão
Pastoral da Terra (CPT) apoiou com o projeto para plantarmos banana. Nós
ressuscitamos aquela terra, porque lá só tinha capim. Estamos assentados aqui
no Assentamento Dom Luciano Mendes desde 22 de outubro de 2014, mas ainda não
recebemos nem um centavo de ajuda do governo. Na nossa primeira plantação aqui
colhemos muita mandioca, quiabo e melancia. Mas o ano de 2016 foi difícil por
causa da falta de chuva e também porque a mineradora Nacional de Grafite, pela
exploração do grafite, está acabando com a água do rio Piabanha. Eu tive uma
bênção no Acampamento Dom Luciano: meu filho era viciado em droga e se
libertou. Eu vivia insufrida, magrinha, lá na cidade de Salto da Divisa. Depois
que eu vim para a terra, eu me libertei desse sofrimento. Melhoramos a saúde.
Morar na terra é uma bênção. Todos os meus cinco filhos estão planejando para
vir morar comigo aqui na nossa terra conquistada. Eu não sei como, mas a luta
pela terra faz muita diferença na sociedade. Aqui na terra a gente vive em paz,
cultivando a terra sem agrotóxico e sem ser escravo de patrão. A gente trabalha
pra gente e pra quem precisa, sem patrão para gritar conosco, mandar na gente e
nos explorar. Essa terra aqui não é só minha, é nossa, de todas as companheiras
e todos os companheiros que nos ajudaram a conquistar essa terra. Essa terra é
sua também, frei Gilvander. Nós ajudamos inclusive a quem nos discriminou e nos
perseguiu. O Assentamento Dom Luciano Mendes fez muita gente adquirir fé na
luta pela terra, com a ajuda do MST, dos Direitos Humanos, da CPT, dos freis,
do bispo Dom Hugo Maria van Steekelenburg (bispo da
Diocese de Almenara), da Irmã Geraldinha e as irmãs
Dominicanas, da Defensoria Pública e do Ministério Público da área dos conflitos
agrários. Mineradora só estraga a terra, as árvores e as águas. Um filho meu, o
Rodrigo, já voltou e está morando conosco aqui no assentamento. Há outros
filhos de várias famílias nossas que já voltaram.”
Belo
Horizonte, MG, 15/10/2019.
Referência.
Obs.: Abaixo, vídeos que versam
sobre o assunto apresentado, acima.
1 - Acampamento Dom Luciano, do MST,
tomando posse da Fazenda Monte Cristo, em Salto da Divisa. 22/10/14
2 - Acampamento Dom Luciano, do MST, em
Salto da Divisa, MG, festeja conquista da Fazenda Monte Cristo
3 - Palavra Ética, na TVC/BH: frei
Gilvander-Acampamento Dom Luciano/MST, Salto da Divisa/MG. 22/09/14.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas;
assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[4]
Quando era necessário ir à cidade de Salto da Divisa, as pessoas do Acampamento
Dom Luciano iam a pé, de jegue ou de bicicleta. Raramente aparecia uma carona.
Podia-se também pegar o ônibus da empresa Mineradora Nacional de Grafite que
levava os funcionários da empresa. Esse ônibus passava indo para o Salto às
08h00 da manhã e voltava às 14h00. E ia novamente para o Salto às 16h00 e
voltava às 22h00.
[5]
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
[6]
“Já passaram pelo Acampamento Dom Luciano mais de 220 famílias”, informa irmã
Geraldinha.
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