Religião
emancipa ou escraviza?
Por Gilvander Moreira[1]
Cartaz: Divulgação / Rede de CEBs |
Diante das implicações das opções
religiosas na política brasileira ninguém mais em sã consciência afirma
simplesmente que qualquer tipo de religião liberta e emancipa. Estamos
experimentando que religião, dependendo do tipo de convicções geradas, pode
oprimir e escravizar. É preciso recorrer à história da Igreja Católica. Após
ser escolhido pelos cardeais para suceder o papa Paulo VI, dia 26 de agosto de
1978, o papa João Paulo I, ao aparecer em uma das janelas do Vaticano,
primeiro, sorriu; segundo, afirmou que ‘Deus é pai e mãe’, mas é mais mãe que
pai. Assim, João Paulo I iniciou seu pontificado sinalizando que guiaria a
Igreja Católica nos rumos do Concílio Vaticano II e sob a égide de uma igreja misericordiosa.
Os direitistas do Vaticano não toleraram. Dia 28 de setembro de 1978, com
apenas 33 dias de pontificado, João Paulo I morreu de forma muita estranha.
Dia 16 de outubro de 1978, a chegada de
João Paulo II ao governo da Igreja católica parecia ser, à primeira vista, algo
alvissareiro, pois era um papa não europeu,
que tinha origem em um país periférico com muitas desigualdades sociais:
a Polônia. Mas, marcado negativamente pelo socialismo real que erroneamente
asfixiava as celebrações religiosas compreendendo a “religião como ópio do
povo”, o papa João Paulo II fez um diagnóstico capitalista e liberal da
realidade dos pobres no mundo e concluiu que o problema principal no mundo era
o ateísmo. Passou a apoiar e a fomentar aos quatro ventos os movimentos
religiosos ultraconservadores, espiritualistas, intimistas e desencarnadores da
fé cristã, tais como Legionários de Cristo, Opus Dei, Neocatecumenato e Renovação
Carismática, esta exportada dos Estados Unidos, do meio de igrejas evangélicas para
a América Afrolatíndia como sendo também parte do processo de colonização que o
imperialismo estadunidense insistia em reproduzir no Brasil. Ideólogos do
Imperialismo dos Estados Unidos tinham alertado a elite estadunidense que caso
a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as
Pastorais Sociais continuassem se difundindo pelo Brasil e América Latina,
seria muito difícil continuar o processo de colonização do continente
sul-americano. Portanto, a exportação da renovação carismática e outros
movimentos espiritualistas para a América do Sul cumpriam o papel político de
barrar o crescimento da Igreja Popular com Opção pelos Pobres, confirmada no
Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965). Esse projeto está muito bem analisado no
livro Os Demônios descem do norte, de
Délcio Monteiro de Lima.
Durante o pontificado de João Paulo II,
tendo o cardeal Ratzinger como o braço de ferro no comando da Congregação da
Doutrina da Fé, segundo Circular de dom Pedro Casaldáliga, mais de 500 teólogos
em sintonia com a Teologia da Libertação foram censurados e calados em todo o
mundo. A Arquidiocese de São Paulo foi esquartejada em quatro partes para
retirar poder e influência do cardeal dom Paulo Evaristo Arns. O mesmo não aconteceu
com a Arquidiocese de Rio de Janeiro, presidida pelo cardeal dom Eugênio Sales
que tinha assento em dez dicastérios no Vaticano, enquanto dom Paulo Evaristo,
apenas em um. Durante o pontificado de João Paulo II, via de regra, somente
bispos conservadores foram nomeados fazendo a CNBB[2]
perder muito do protagonismo profético que conquistou durante os pontificados
dos papas João XXIII e Paulo VI. Com a disseminação de movimentos religiosos
conservadores e piedosos, jovens desses movimentos religiosos foram entrando
para os seminários e para as congregações e Ordens religiosas. Como efeito
dominó, o estilo de João Paulo II foi se disseminando entre o clero,
seminaristas e nas paróquias. Levar o povo para dentro das igrejas passou a ser
a prioridade. Esquecia-se gradativamente da Opção pelos Pobres e da missão de
ser sal que evita podridão/corrupção no mundo capitalista, luz que esconjura as
trevas da opressão capitalista e fermento na massa alienada, anestesiada e
colonizada pelo ‘espírito’ do capitalismo e por expressões religiosas que privatizam
a fé cristã.
Assim, gradativamente, a Igreja foi se
distanciando do povo oprimido e injustiçado. Com as agruras e violências
crescentes perpetradas pelo capitalismo, o povo com pesadas cruzes nas costas –
sem terra, sem moradia, sem emprego, sem salário justo, sufocado pela violência
social crescente e pela especulação imobiliária etc -, e sem bons pastores,
acabou caindo no colo dos falsos profetas e dos falsos pastores, dentro da
Igreja Católica e em milhares de outras igrejas. Uma onda de (neo)pentecostalismo
campeia desde os primeiros anos do pontificado de João Paulo II. Isso tem
levado ao esquecimento da Opção pelos pobres e a um divórcio entre Fé e
Política, entre Evangelho e questões sociais. O distanciamento da prática do
Evangelho de Jesus Cristo chegou a tanto que tornou impossível o papa Bento XVI
– pontificado de 19 de abril de 2005 a 28 de fevereiro de 2013 - continuar
guiando uma Igreja tão ensimesmada e enleada em escândalos de vários tipos. Ele
acabou renunciando[3]. O
choque foi tão grande entre os cardeais que eles acabaram tendo sensatez e
elegeram o papa Francisco – pontificado desde 19 de março de 2013 -, que está
resgatando os princípios originários do Concílio Vaticano II, entre os quais a
Opção pelos Pobres, apesar do conservadorismo da Igreja que se mantém fechada e
distante dos gestos proféticos de Francisco. Nesse contexto, uma questão está
de pé: religião liberta e emancipa ou oprime e escraviza? Depende do tipo de
religião.
Arinos, MG, 14/01/2020.
Obs.: Os filmes e
vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado acima.
1
- CEBs na luta pela terra com o MTC, em Córrego Danta, MG: fé e luta por
direitos. 16/8/2019 – Vídeo 3.
2
- Frei Gilvander: "Remédio para medo é ..." XIV Encontro de CEBs,
Taiobeiras, MG. Vídeo 2. 28/7/2019
3
- Frei Gilvander no XIV Encontro de CEBs em Taiobeiras, MG: "Que fazer
...?" Vídeo 1. 28/7/2019
4
- Tributo a Dom Moacyr Grechi, homem imprescindível nas CEBs, CIMI, CPT ...
18/6/2019
5
- Palavra Ética TVC/BH: XIV Intereclesial das CEBs, em Londrina, PR. CEBs e
desafios urbanos . 20/2/18
[1] Frei e padre da Ordem
dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil.
[3] Sugiro assistir ao filme Dois Papas, de Fernando Meirelles.
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