Mineração criminosa: ‘mais do mesmo’ até
quando?
Por
Gilvander Moreira[1]
Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, Brumadinho, MG, onde aconteceu crime doloso e tragédia que matou 272 pessoas e apunhalou de forma mortal o Rio Paraopeba. Foto: Amadeu Barbosa |
Dia 25 de janeiro de 2020 completou-se um ano do crime tragédia da mineradora Vale e do Estado em Brumadinho, crime que continua impune e crescendo. Crime doloso (qualificado, com intenção de matar), segundo o Ministério Público de Minas Gerais, que, dia 21 de janeiro, até que enfim, denunciou criminalmente a Vale e empresa Tuv Sud por gravíssimos crimes ambientais e 16 funcionários da Vale e da Tuv Sud por homicídio doloso. Esperamos que o poder judiciário não demore 10 ou 15 anos para julgar e condenar os criminosos. O crime não é só da Vale, é também do Estado, porque o licenciamento ambiental foi concedido pelo Governo de Minas Gerais que, em conluio com o capital, se ajoelha diante do poderio econômico e dribla todos os argumentos técnicos e jurídicos suficientes para não conceder licenciamento ambiental a grandes empreendimentos econômicos extremamente devastadores socioambientalmente. Pior, não fiscaliza. Uma funcionária da FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente) disse em uma das audiências da CPI das mineradoras Vale e MBR, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em 2004: “Nós do Governo apenas lemos os relatórios que funcionários das mineradoras nos apresentam. O Estado não tem funcionários para fiscalizar in loco”. A verdade é que o Estado está acumpliciado ao capital desde que se iniciou há 300 anos mineração no estado de Minas Gerais.
Uma
espada de dor transpassou e continua transpassando o coração de milhares de
pessoas, tal como a mãe de Erídio Dias, sobrevivente do crime da
VALE/SAMARCO/BHP em Mariana, que era morador da Ocupação-Comunidade Dandara, em
Belo Horizonte, e há cinco meses trabalhava como soldador na mina de Córrego do
Feijão, como trabalhador terceirizado da Vale. Até parte do corpo do seu filho
ser encontrado no meio da lama tóxica, com 74 anos e adoentada, vivendo em Sem
Peixe, no interior de Minas, a mãe de Erídio telefonava todos os dias para os
filhos em Belo Horizonte, perguntando: “Que
dia a Vale e o Estado entregarão o corpo do meu filho Erídio para ser sepultado
aqui em Sem Peixe?”. Onze pessoas martirizadas em Brumadinho ainda não
foram encontradas. Exigimos a continuidade das buscas até que se encontrem
todos os corpos para que as famílias tenham o direito de sepultar seus entes
queridos. A Vale sepultou 272 pessoas vivas. Essa barbárie dói demais! Uma
criança de três anos, que ficou órfã de mãe, pergunta toda hora: “Cadê mamãe? Por que ela está demorando a
chegar? Ela deve estar com fome”. Com fome de justiça estamos todos nós,
não apenas atingidos, mas golpeados por esse crime planejado e realizado com
requintes de crueldade.
Palco
inicial do genocídio da Vale, com licença do Estado, o Córrego do Feijão, em
Brumadinho, ganhou esse nome porque era uma região rica na produção de feijão,
de hortaliças, cereais e hortifrutigranjeiros que abastecia grande parte de
Belo Horizonte e região metropolitana. Antes das mineradoras invadirem o
território de Córrego do Feijão, era comum ver muitos carros de bois
transportando feijão e uma grande quantidade de outros alimentos saudáveis
produzidos sem agrotóxicos em regime de agricultura familiar. Conta-se que
certo dia, um carro de boi, carregado de feijão, tombou em uma ponte ao
atravessar o córrego. Por isso, o lugar passou a se chamar Córrego do Feijão. Mesmo
sob o massacre que as mineradoras perpetram cotidianamente, Brumadinho ainda é
o 2º maior produtor de cítricos de Minas Gerais. Isso nos mostra que a vocação
de Brumadinho e região não é a mineração, mas é a agricultura familiar com
produção de alimentos saudáveis.
As águas
da bacia do Rio Paraopeba garantiam 50% do abastecimento de Belo Horizonte e
região metropolitana, por meio das barragens nos rios Betim e
Manso, e em barragem no ribeirão Serra Azul, sendo esses rios três
afluentes do Rio Paraopeba que formam os três reservatórios que compõem o
Sistema Paraopeba: Sistema Vargem das Flores, Sistema Rio Manso e Sistema Serra
Azul, respectivamente. E agora, onde arrumar água para garantir o abastecimento
de cinco milhões de pessoas de Belo Horizonte e região metropolitana? A COPASA[2]
investiu 130 milhões de reais para captar água do Rio Paraopeba em uma grande
obra inaugurada em dezembro de 2015, prometendo que a obra garantiria o
abastecimento de BH e região metropolitana pelos próximos 25 anos. Tudo isso
foi perdido. Em negociação com o Ministério Público e Poder Judiciário, de
forma não transparente (pois os moradores locais e especialistas independentes
questionam a eficácia desta obra), a Vale está construindo uma nova captação de
água no Rio Paraopeba, acima do local do crime. Para isso está sacrificando
também o território da comunidade de Ponte das Almorreimas. Ou seja, um crime
gera outros crimes e assim o crime cresce, sob a égide de se tratar de uma ação
“emergencial”. Por oportunismo e postura técnica questionável das partes
envolvidas, a Vale aproveita para se apropriar de mais um território
ambicionado outrora por possuir potencial aurífero.
Os
territórios cobiçados pelas empresas mineradoras são ao mesmo tempo ferríferos
e aquíferos. Após invadirem esses territórios, as mineradoras escorraçam suas
populações, utilizando várias artimanhas, propaganda enganosa e discursos
tecnocráticos, muitas das vezes, e para variar, com a anuência do estado e do
judiciário. Onde há muito minério há também muita água. O Quadrilátero
Ferrífero, em Minas Gerais, é também um Quadrilátero Aquífero, lugar de
condições de vida e de gentes, histórias e de múltiplos significados. Os
lugares onde as mineradoras se instalam eram paraísos naturais, mas após a invasão
das mineradoras inicia-se um processo absurdo que sacrifica no altar do deus do
mercado a dignidade humana e a dignidade da mãe terra, da irmã água, da flora e
da fauna. O crime da Vale e do Estado também foi um atentado contra o Espírito
do Deus da vida. Da perspectiva bíblica e teológica, é preciso recordar que
toda a criação – os seres humanos, a fauna, a flora e os biomas - é sagrada. A
terra é mãe e a água é irmã. “Água, fonte de vida” foi o lema da Campanha da
Fraternidade de 2004. “O Espírito de Deus
está nas águas”, diz o segundo versículo da Bíblia (Gênesis 1,2). O
Espírito vivificador não apenas paira sobre as águas, mas permeia e perpassa as
águas. Logo, matar as nascentes, os córregos e os rios é cometer um pecado
contra o Espírito Santo, pecado capital que não tem perdão. Integrantes do
sistema capitalista, os megaprojetos de mineração são projetos satânicos e
diabólicos, que, como o dragão do Apocalipse (Apocalipse 12) cospe fogo e
devora tudo o que encontra pela frente. Antes de serem cooptadas pelo Império
Romano e pelo imperador Constantino, as Primeiras Comunidades Cristãs se regiam
por um Código de Ética que alertava às pessoas cristãs que trabalhar em
instituições que reproduzissem o sistema escravocrata do império romano era
algo imoral. Um cristão não podia, por exemplo, ser soldado e nem militar do
império romano, pois estaria, na prática, reproduzindo um sistema idólatra. É
ético trabalhar para uma empresa que reproduz um sistema de morte?
Basta de
medidas paliativas e emergenciais! São necessárias medidas radicais – que vão à
raiz da injustiça - que mexam na engrenagem da guerra que as grandes
mineradoras, com a cumplicidade do Estado, estão promovendo contra todos e
tudo. Desde os primeiros dias, após o início da tragédia crime doloso, em 25 de
janeiro de 2019, já defendíamos como justo e necessário: a) a prisão preventiva
imediata do Presidente da VALE, dos Diretores da VALE, das autoridades dos
Governos que autorizaram o funcionamento da mina e dos responsáveis pela
licença da mina do Córrego do Feijão; b) o confisco dos bens da Vale para
aplicar nas áreas sociais e em urgente projeto de reflorestamento das bacias
dos rios Doce e Paraopeba; c) suspensão de todas as licenças ambientais por
tempo indeterminado da mineração em Minas Gerais e em todo o país até que se
faça uma avaliação independente e imparcial que viabilize reabrir apenas as
minas que têm garantias idôneas de que não haverá rompimento de barragens de
rejeitos de minério. No entanto, tripudiando sobre as vítimas, o Governo de
Minas já autorizou o retorno da mineração da mineradora VALE/SAMARCO/BHP em
Mariana, aprovou a construção da barragem de Maravilhas 3 da Vale, o alteamento
da Barragem da mineradora Anglo American, em Conceição do Mato Dentro, à
revelia da Lei “Mar de Lama”, de iniciativa popular, aprovada na Assembleia Legislativa de Minas
Gerais - Lei Estadual nº 23.291/2019. Assim, o sistema minerário em Minas Gerais segue
sendo criminoso e, sem abrir mão da acumulação de capital, insiste em
apresentar falsas soluções que são ‘mais do mesmo’. Até quando?
BH, MG, 04/02/2020.
Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo,
versam sobre o assunto tratado acima.
2 – Vidas barradas
3 - Vale sacrificando o território de Ponte das Almorreimas, em
Brumadinho, MG: violência! Vídeo 1 – 26/12/2019.
4 - "Vale comete crime e nós é que pagamos?" Ponte das
Almorreimas, Brumadinho, MG. Vídeo 2 - 26/12/2019.
5 - "Vale pode tudo e compra todos?" (Cláudia). E Dom
Vicente: Ponte das Almorreimas, Brumadinho/MG. Vídeo 3 – 26/12/2019.
6 - Dom Vicente: "Sistema minerário é criminoso". Vale na
Ponte das Almorreimas, Brumadinho/MG. Vídeo 4 – 26/12/2019.
7 - Dom Vicente: "Não espere outra barragem romper". Vale na
Ponte das Almorreimas/Brumadinho/MG Vídeo 5 – 26/12/2019.
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Companhia de Saneamento de
Minas Gerais.
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