Teologia da luta pela terra e por moradia
Por Gilvander
Moreira[1]
Em Cascavel, no Oeste do Paraná, 53 dias da Vigília Resistência Camponesa - Por Terra, vida e dignidade! Foto: Júlio César, dia 17/02/2020. |
Etimologicamente, Teologia é uma palavra da língua
grega composta por teo = Deus, e logia = ciência. Entretanto, teologia não é apenas ‘ciência de
Deus’ e nem é apenas reflexão sobre as coisas relativas a Deus, ao pós-morte,
às coisas de fé. Teologia é pensar a partir dos injustiçados qualquer assunto em
uma perspectiva de fé no Deus da vida, mistério de infinito amor que nos
envolve. Portanto, qualquer assunto pode e deve ser teologizado. Teologia que
não for libertadora não é teologia, podendo ser dogmatismo disfarçado de
teologia. Na Bíblia há uma infinidade de contradições entre os textos, mas há
em toda a Bíblia um fio condutor: o Deus Javé, solidário e libertador, faz
opção pelos empobrecidos e escravizados e com estes faz aliança de compromisso
libertador. Quem lê a Bíblia na perspectiva da classe dominante ou da pequena
burguesia, - eufemisticamente chamada de classe média -, jamais captará o
sentido libertador dos textos bíblicos, que é verdade que liberta por consolar
os aflitos e por incomodar os opressores. A verdade liberta, porque dói e
incomoda. Nessa perspectiva, necessário se faz também pensarmos teologicamente
sobre a luta pela terra e pela moradia própria, digna e adequada. Teologia da
terra e Teologia da moradia nos dizem que o Deus da vida quer terra e moradia
para todos os seres humanos e para todos os outros seres vivos, inclusive. Há Teologias
da Libertação na luta pela terra e por moradia. Teologias no plural, porque,
além da Teologia da Terra e da Teologia da Moradia, necessário se faz também
Teologia da Negritude, Teologia de Gênero, Teologia da Água, Teologia da
Ecologia Integral (Ecoteologia), Teologia do Trabalho etc.. Todas essas
teologias subsidiam a luta pela partilha e socialização da terra e para que
todos tenham acesso à moradia adequada. Ai daqueles que pisam nos
pobres, que tripudiam sobre a dignidade de crianças recém-nascidas, idosos,
deficientes e indefesos, mãe Terra, irmã água e todos os seres vivos, todos empobrecidos!
Fruto da injustiça agrária e social, do
capitalismo, da especulação imobiliária e da falta de reformas agrária e urbana,
o latifúndio continua injustamente sendo a coluna mestra da estrutura fundiária
no Brasil há 520 anos, o que faz com que o déficit habitacional cresça em
progressão geométrica nas cidades. Sem democratização e socialização da terra,
a injustiça social e urbana só cresce. Como não dá para sobreviver no ar, com as
contradições das injustiças agrária e urbana surgem as ocupações no campo e na
cidade. Em uma Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos, na Assembleia
Legislativa de Minas Gerais, uma senhora de uma Ocupação urbana, ameaçada de
despejo, no microfone, gritou: “Queremos
moradia e não apenas o direito à moradia.” Uma família camponesa sem-terra
é como um pé de bananeira sobre o asfalto. Os clamores dos camponeses sem-terra
e de milhões de pessoas crucificadas pela especulação imobiliária que gera
pesadíssima cruz do aluguel ou a humilhação que é sobreviver de favor nos fazem
pensar: Deus compactua com essas injustiças? O Deus da vida, Javé, solidário e
libertador ao lado injustiçados/as, fica irado diante da concentração da terra
e da moradia em poucas mãos. No Brasil nunca foi feito reforma agrária de
nenhum tipo. Nos países europeus e nos Estados Unidos, pelo menos reforma
agrária capitalista foi feita. Políticas habitacionais populares estão quase
somente em discursos e vãs promessas. Direitos fundamentais, como o de acesso a
terra e a moradia adequada, vêm sendo há muito tempo violados.
Documento do Ministério Público Federal informa
que, de 7.957 remoções realizadas pelo programa Vila Viva em Belo Horizonte, MG, somente
3.950 remoções
importaram em reassentamento – sem titulação - em apartamentos apertados construídos por esse programa. Do restante, apenas 496
dos removidos conseguiram adquirir a compra de casa com recursos advindos do Programa de assentamento de famílias removidas em
decorrência de execução de obras públicas (PROAS) – 40 mil reais é o
teto - e, mais de 50% dos removidos, 4.310, receberam indenização pela remoção
compulsória. A indenização é sempre injusta, pois não indeniza o valor do
imóvel, mas apenas o valor da construção da casa ou do barraco. Ou seja,
ignora-se o direito à posse. Precisamos recordar que a noção de posse é muito
mais antiga e mais justa do que a noção de propriedade, que é coisa da
modernidade capitalista do século XVI para cá apenas. O que é considerado na
indenização é somente o valor da incorporação feita no lote, e, via de regra,
uma construção precária. Ainda assim, para os que conseguem ser assentados nos
novos imóveis da Prefeitura, a notícia não é das melhores. Com uma pífia
política habitacional que mais beneficia as grandes construtoras do que as
famílias, nos últimos 25 anos, a prefeitura de Belo Horizonte, de joelhos para
os senhores do mercado idolatrado, mais demoliu casas do que construiu. Demoliram-se
milhares de casas para construir ‘casas’ para os automóveis, ou seja, construir
grandes avenidas, viadutos e estacionamentos. Assim, milhares de famílias foram
expulsas para as periferias da região metropolitana de Belo Horizonte. Há
Relatório da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), da Polícia Militar, do
Ministério Público e da Polícia civil atestando o caos nos predinhos do
Programa Vila Viva, que é, na prática, Vila Morta.
O Governo de Minas Gerais, nos últimos 27 anos, não
construiu nenhuma moradia para as famílias de zero a três salários mínimos em
Belo Horizonte e nem na região metropolitana de Belo Horizonte. Sem-terra e
sem-casa, o povo não tolera mais sobreviver sob a pesadíssima cruz do aluguel,
que é veneno diário no seu prato. O povo não aguenta mais a cruz da humilhação
que é sobreviver de favor: peso nas costas de parentes, chateação cotidiana e
perda de liberdade. Muitos conservadores e moralistas ainda criticam a
promiscuidade com que sobrevivem muitas famílias. Ora, como não expor crianças
às cenas íntimas ou inapropriadas para menores, próprias de casais, se o espaço
de convivência é totalmente inadequado?
Nas últimas semanas, as chuvas revelaram a imensa
injustiça social e urbana reinante em Belo Horizonte e região metropolitana.
Sob o olhar teológico, essa injustiça social que se reproduz cotidianamente
mostra a idolatria do mercado reinante na sociedade capitalista. O Deus da vida
quer terra e moradia para todos/as.
BH, MG, 18/02/2020.
Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam
sobre o assunto tratado acima.
1 - 160 famílias na
luta pela terra em Pirapora, MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência.
17/2/2020
2 - Sem Moradia
acampados na Prefeitura de Santa Luzia, MG: Luta justa por moradia adequada.
14/02/2020
3 - Leonardo Péricles
na CMBH põe o dedo na ferida e mostra o rumo da luta social, em Belo Horizonte.
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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