Luta pela terra é também luta espiritual
e profética
Por Gilvander Moreira[1]
43ª Romaria da terra do Rio Grande do Sul, em Mormaço, Diocese de Cruz Alta, dia 25/02/2020. Divulgação / www.diocesecruzalta.com.br |
Assim como há ciências, há também teologias que
sistematizam a luta pelo bem comum a partir de uma fé emancipatória – fé no
Deus da vida e no Evangelho de Jesus Cristo. Na realidade conflituosa e
contraditória da sociedade capitalista em que vivemos, marcada por uma das
maiores concentrações fundiárias do mundo e por um povo religioso, torna-se necessário
analisar a luta pela terra também sob o ponto de vista da teologia bíblica. Em
inúmeras passagens bíblicas, as
profetisas e os profetas bradam, em nome do Deus da vida: “Queremos a justiça e
o direito”! Isso não se mendiga, conquista-se na luta coletiva e organizada.
Há na Bíblia muitos textos de denúncia da grilagem
de terras como, por exemplo: "Não removerás os marcos de teu próximo do
lugar em que os puseram teus pais para delimitar a herança familiar, no país que o Senhor teu Deus te dará em posse”
(Deuteronômio 19,14); "Maldito aquele que remover os marcos da herança do seu próximo” (Deuteronômio
27,17); "Os maus removem os marcos dos terrenos” (Jó 24,2). Na Bíblia a
terra aparece como sendo herança de Deus, algo que deve passar de pai para
filha/filho, não pode ser vendida, pois não é mercadoria.
Para os povos indígenas “a terra é sagrada, nela se
baseia a organização tribal. Entre os tapirapé, os mortos são enterrados dentro
das casas em que viveram e onde continuam vivendo os seus parentes” (MARTINS,
1983, p. 117). No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas
sociais no campo e seu lugar no processo político, José de Souza Martins recorda: “A um tapirapé a ideia de
sepultar o morto fora da casa em que viveu causa o mesmo terror que causaria a
nós a ideia de enterrar os nossos mortos dentro de casa. Seria sinal de
abandono do morto por seus parentes, motivo para que viesse assombrá-los. Por
isso, a troca ou venda da terra não faria nenhum sentido para um tapirapé,
porque significaria, entre outras coisas, o abandono de seus parentes mortos e
a quebra dos eixos de sustentação da sua sociedade” (MARTINS, 1983, p. 118).
Na luta pela terra estão envolvidas não apenas
questões políticas e econômicas, mas também questões religiosas. Exemplo disso
foi que o Estado, por meio da polícia militar, assassinou o monge José Maria em
22 de outubro de 1912. Após sua morte, a guerra do Contestado cresceu muito e
se alongou até 1916.
As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra
os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma “medida
provisória” de um faraó (semelhante a um Decreto-Lei) que mandava matar no
momento do nascimento as crianças do sexo masculino, organizaram-se e fizeram
greve e desobediência civil, política e religiosa. “Não vamos respeitar uma lei
autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à dignidade da pessoa
humana e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, devem
ter dito em seus corações as Mulheres do ‘sistema de saúde’ sob o imperialismo
egípcio. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso
e muito poderoso” (Êxodo 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.
Em meados do século IX antes da era cristã, época
do profeta Elias, intransigente defensor dos camponeses, a monarquia reinante
na Palestina estava reforçando a latifundiarização do país. As pequenas
propriedades estavam sendo expropriadas pelos grandes proprietários, entre os
quais os detentores do poder político monárquico. Nesse contexto, a Bíblia
narra um episódio exemplar. O rei Acab e sua esposa Jezabel cometeram crime de
usurpação investindo para açambarcar a pequena propriedade de um posseiro
chamado Nabot, nome que significa, em hebraico, aquele que (se) doa. Nabot
rejeitou trair os valores dos camponeses da época: “Javé me livre de ceder-te a
herança dos meus pais!” (I Reis 21,3). O rei Acab se irritou com a resistência
de Nabot. Jezabel, rainha adepta do ídolo Baal – deus da chuva e da fertilidade
-, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do posseiro. Caluniou,
criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do sistema judiciário da
época, foi condenado à pena de morte por apedrejamento. Porém, como a
expropriação dos camponeses e o sangue dos mártires suscitam a atuação veemente
de profetas, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo a pequena gleba do
posseiro Nabot, após tê-lo matado, apareceu o profeta Elias e, em alto e bom
som, profetizou: “Você matou, e ainda por
cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador):
No mesmo lugar em que os cães lamberam o
sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça”
(I Reis 21,19.21). O profeta Elias foi veemente na condenação da ação do chefe
da monarquia (I Reis 21,17-26). A compreensão da terra como pertencente a Deus
permeia e perpassa toda a Bíblia. Por exemplo, no livro de Levítico se afirma: “Assim disse
Javé, o Deus da Vida: A terra não será vendida, pois que a terra me pertence”
(Levítico 25,23).
O profeta Miqueias nasceu no interior de Judá, sul
da Palestina, e atuou entre os anos 725 e 696 antes da era cristã. Miqueias foi
provavelmente um camponês empobrecido, marginalizado e vítima de processo de
expropriação pela falta de apoio à agricultura camponesa. Miqueias denunciou a
cobiça e as injustiças sociais que os dirigentes políticos e religiosos estavam
cometendo sobre o campesinato da época. Ele condena a riqueza como fruto da
exploração. Profeta dos sem terra, Miqueias defendeu a partilha e a
socialização da terra. Vindo do
campo, ao chegar à capital Jerusalém, ele se defronta com os enriquecidos –
políticos profissionais, especuladores e religiosos funcionários do sagrado -,
denuncia a exploração e a expropriação dos camponeses do sul da Palestina.
Miqueias, de forma intrépida e contundente, profetiza: “Ai daqueles que, deitados em
seus leitos de marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o
dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos,
e os roubam. Tomam as casas do povo, oprimem o homem, sua família e sua
comunidade; roubam a herança deles, a perspectiva de futuro” (Miqueias 2,1-2).
Para Miqueias, ‘a herança deles’
é a terra, que é roubada. Com o dedo em riste, o profeta acusa os exploradores:
“São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto, vocês exigem a veste” (Miqueias 2,8). “Vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu
povo” (Miqueias, 2,9a). “Vocês tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha
dado para sempre” (Miqueias 2,9b). Ele ameaça e condena Israel (o reino do
norte da Palestina) e seus chefes exploradores como “aqueles que comeram a
carne do povo, arrancaram-lhe a pele...” (Miqueias 3,1-3) e aponta como
culpados os militares, os falsos profetas, os chefes, os comandantes, os
juízes, os sacerdotes; enfim, a classe dominante da época. Denuncia ainda o
profeta Miqueias: “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o
príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim
distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece
uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou:
agora é a ruína deles” (Miqueias 7,3-4).
Apesar da opressão e das injustiças
contra os camponeses, o profeta Miqueias (e/ou suas/seus
discípulas/discípulos), não perde a esperança e anuncia também a utopia que
está sendo produzida nas entranhas da luta coletiva pelo bem comum: “Em um
campo em ruínas, na Samaria, uma plantação de vinhas – lavouras – será feita.”
(Miqueias 1,6). “De suas espadas vão fazer enxadas, e de suas lanças farão
foices” (Miqueias, 4,3).[2] Como
herdeiro da fina flor libertária da caminhada dos povos da Bíblia, passando
pela sabedoria do povo – “Os pobres possuirão a terra” (Salmo 37,11) -, Jesus Cristo
ecoa no discurso da montanha a utopia da terra partilhada e socializada com
quem precisa: “Felizes os humildes, porque herdarão a terra” (Mateus 5,4).
Portanto, a luta pela terra não é apenas uma questão política, mas também uma
questão de fé, espiritual e profética. Feliz quem dela participa[3].
Referências
MARTINS, José de Souza. Os
Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.
MOREIRA,
Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA
COSTA, Julieta (Org.). Em tempos
difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias
feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.
07/7/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o
assunto tratado acima.
1 - Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em
Goianá, MG - luta pela terra. Frei Gilvander - 26/8/2010.
2 - Acampamento Eloy Ferreira, do MST, Engenheiro
Navarro/MG: luta pela terra. Frei Gilvander. 02/9/2010
3 - MST na luta pela terra no sul de MG - Grito
dos Excluídos - Frei Gilvander/luta por direitos/07/9/10
4 - Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia
em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E Leonardo Boff.
5 - 160 famílias na luta pela terra em Pirapora,
MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência. 17/2/2020
6 - CEBs na luta pela terra com o MTC em Córrego
Danta, MG: Fé e luta por direitos. Vídeo 3 - 16/8/2019
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Cf. também MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por
Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In:
AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em
tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de
Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.
[3] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora
em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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