Conviver com o diferente nos humaniza. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Viver é belo e bom, mas conviver é melhor. Contudo,
para tanto, há que aprender a se relacionar com o diferente, o que é um desafio
que nos humaniza, se a gente não se fecha no nosso mundinho, às vezes medíocre.
Por que é tão difícil conviver com o diferente? No
Brasil, tornou-se difícil conviver com as diferenças por vários motivos, mas,
principalmente, porque vivemos em uma sociedade capitalista, uma sociedade
estruturada para reproduzir a opressão, a discriminação, a violência social e
negar a beleza e a importância do outro na nossa vida. O comportamento geral é
marcado por falsos valores que são trombeteados aos quatro ventos e seduzem as pessoas:
o individualismo, o consumismo, o ter, o acumular, o competir. Isso desumaniza
as pessoas, pois ninguém é uma ilha, vivemos interconectados na teia da vida.
Viver é belo, mas conviver é muito mais belo e imprescindível. Conviver dá mais
sentido à vida e é uma via de mão dupla, mas para conviver é preciso conhecer o
outro e para conhecer é preciso conviver. Para conviver é preciso ouvir e
dialogar. Dialogar supõe respeito e este, por sua vez, supõe viver o amor para
além de um sentimento, como ética da vida e como exercício cotidiano de vida. O
diferente de nós que não é opressor não é uma ameaça. É algo que pode nos fazer
melhor como seres humanos. E em tempos de mundo virtual e de pandemia, com o
necessário isolamento social e/ou o distanciamento físico, o diálogo se torna
mais desafiador e necessário. É preciso exercitar. Eu me sinto mais humano
depois que passei a conviver com pessoas de religiões de matriz ancestral
africana, com pessoas que se declaram ateias, com pessoas com orientação
homoafetiva nas suas mais distintas formas de concepção de si mesmas. Pessoas
que seguiram toda sua vida tentando se entender enquanto seres humanos neste
mundo, vivendo tantas formas de angústia e de sofrimento por não serem
escutadas e nem compreendidas, por causa da falta de diálogo.
Por que em pleno século XXI, o preconceito e a
intolerância no Brasil estão crescendo? Até quando uma minoria com poder
econômico, político, midiático e religioso vai impor o modo da maioria das
pessoas existirem? O preconceito, a discriminação e a intolerância se
reproduzem cotidianamente no Brasil, injustamente. Vivemos sob um sistema
econômico que idolatra o mercado desde 1500, quando europeus colonizadores
invadiram o Brasil e iniciaram o processo de exploração. Estima-se que existiam no Brasil mais de 1.200
povos indígenas falando cerca de 1.200 línguas. Há 521 anos, perduram no Brasil
relações sociais escravocratas, de dominação, ou seja, estruturas legais,
políticas e econômicas que reproduzem e ampliam a injustiça social, a escravização, a intolerância, a
discriminação e o preconceito,. Isso beneficia a classe dominante, pois se
admitirem que toda pessoa deve ser respeitada na sua dignidade humana não
poderá haver um monte de violências sorrateiras que são impostas à maior parte
da população. Até 13 de maio de 1888, reinava no Brasil, oficialmente, a
escravidão, com milhões de irmãos e irmãs nossos, povo negro arrancado à força
da mãe África, onde viviam em liberdade, e jogados em navios negreiros – mais
de 12,5 milhões de negros e negras escravizados/as – milhares jogados ao mar
durante a travessia. No Brasil, como mercadoria foram escravizados, vendidos e
açoitados no pelourinho. Os relatos da escravidão no Brasil são dramáticos e
horripilantes. Em 1850, com a Lei de Terras, fizeram o cativeiro da terra, 38
anos antes de se fazer a abolição formal e mentirosa da escravidão. Legalizaram
a escravidão da terra ao determinar legalmente com a Lei 601, de 1850, que
poderia acessar a terra apenas quem por ela pagasse. Os negros e negras
escravizados/as não podiam comprar terra, pois foram libertados de mãos vazias,
pavimentando, assim, o caminho para a escravidão contemporânea que persiste até
hoje. Assim, para justificar a tremenda injustiça das atuais leis trabalhistas
e previdenciárias, é preciso estimular cotidianamente preconceito,
discriminação e intolerância, tudo para disseminar a ideologia segundo a qual a
maioria da classe trabalhadora deve sobreviver na miséria apenas com migalhas,
enquanto a elite goza luxo e mordomia. Não são por acaso as discriminações e
intolerâncias, elas são estrategicamente planejadas e executadas. Quem ganha
muito com as discriminações e intolerâncias é a classe dominante. Caluniar,
difamar e injuriar de muitas formas é antessala para explorar e violentar logo
em seguida, pela marginalização, exclusão, empurrando as pessoas para
sobreviver sendo humilhadas de mil formas.
Ao longo da história da humanidade, sempre a classe
dominante escolhe os grupos que serão os bodes expiatórios e as bruxas a serem
execradas. Antes, foram os bárbaros, os gentios, as bruxas, os considerados
hereges e atualmente continuam sendo as mulheres, os negros e as pessoas
LGBTQI+, entre outros. Em uma sociedade capitalista, quem tem poder econômico
passa a ter poder político e jurídico e com esses poderes nas suas garras definem
na prática quem deve ser discriminado e excluído da mesa farta da classe
dominante. Se não discriminarem, terão que partilhar terra, riqueza, renda e
poder. Se houver a partilha, todos ficarão em pé de igualdade e deverão ser
respeitados. Logo, manter e reproduzir as discriminações são condições
necessárias para manter a injustiça social que garante o luxo e a mordomia de
uma minoria à custa da subjugação da maioria do povo.
Há vários tipos de preconceitos, de discriminação e
de intolerância: os escrachados, os sutis, os mascarados, os que falam com “voz
mansa”, mas apunhalando pelas costas, entre outros. Precisamos sempre nos
perguntar: o jeito com o qual eu analiso a realidade, os problemas, as
injustiças e as violências beneficia a quem? Se minha análise da realidade
ajuda a reproduzir na prática as violências, então estou sendo reprodutor/a da
ideologia dominante, que é um mascaramento da realidade. Se assumo a ideologia
dominante repleta de ideias da classe dominante, ideias particulares,
difundidas como se fossem ideias universais, mas são apenas os pontos de vistas
da elite que está no poder, ideias que lhes interessam, assumo que não sou
neutro e, de fato, ninguém o é: consciente ou inconscientemente, voluntária ou
involuntariamente, todos nós temos lado e sempre tomamos partido diante das
situações de conflitos. Inclusive quem diz “sou neutro” jamais é neutro. Em uma
sociedade com brutal injustiça social, quem diz ser neutro está se colocando do
lado dos opressores e exploradores. A partir de qual lugar social pensamos e
agimos? “O lugar social determina o lugar epistemológico”, diz Karl Marx. Ou
seja, se vivo na periferia sendo marginalizado, vejo o mundo a partir da ótica
da periferia. Quem faz parte da pequena burguesia, eufemisticamente chamada de
classe média, vê o mundo a partir da classe média. Quem é empresário vê o mundo
a partir da empresa. Quem é latifundiário ou empresário do agronegócio vê a
realidade a partir do latifúndio. Estando em uma sociedade injusta socialmente,
faz-se necessário sempre perguntar: a partir de qual lugar social estou
falando, pensando e agindo? Isso para que “oprimido não seja hospedeiro de
opressor”, para que “explorado não seja cúmplice dos exploradores”. Pois a
opressão não seria tão forte se os exploradores e violentadores não
encontrassem apoiadores no meio dos explorados e violentados, já dizia Hannah
Arendt.
Para
superarmos os preconceitos, as discriminações e a intolerância temos que fazer
muitas coisas de forma sincronizada. A primeira, é adquirirmos um jeito crítico
de ler e interpretar a realidade. Temos que reconhecer que ninguém nasce santo
ou endiabrado. Nascemos humanos e as condições sociais objetivas podem nos
humanizar ou nos desumanizar. Já dizia Rousseau: "O homem nasce bom, a
sociedade é que o perverte". Urge conviver
com pessoas e grupos injustiçados/as. Sentarmos todos e todas na mesma mesa e
partilhamos a vida, a fé, o pão, as alegrias e as dores. Entretanto, essa mesa,
a da partilha e do diálogo, precisa ser no mundo dos empobrecidos e
injustiçados. O Deus, mistério de infinito amor, invocado sob muitos nomes, se
apaixonou pelo outro, o diferente: o humano. E armou sua tenda entre nós a
partir dos últimos: sem-terra, sem-casa, sem dignidade.
Que a Campanha
da Fraternidade Ecumênica de 2021 desperte em nós a maravilha que é conviver
com o outro, o diferente, irmão ou irmã que nos dignifica![2]
24/02/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram
o assunto tratado acima.
1 – Capitã Pedrina: "Acordão é desgoverno, é
desrespeitos aos atingidos/as. Reverenciamos a Natureza." – 03/02/2021
2 - Diálogo
Inter-Religioso e Ecologia Integral - CFE 2021 - Por frei Gilvander - 22/2/2021
3 – A beleza do
macroecumenismo na luta pelo bem comum - CFE 2021- Por frei Gilvander -
22/2/2021
4 - Hino da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021:
vozes de diversas denominações cristãs de Curitiba
5 - Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021:
Conversa de Camila Oliver, Frei Gilvander e Paulo França
6 - (Macro)ecumenismo, SIM! Diálogo e Fraternidade
em defesa da vida - Por frei Gilvander - 18/2/2021
7 - "Fraternidade e Diálogo: Compromisso de
Amor": Campanha da Fraternidade 2021. Por Frei Gilvander
8 - Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica
(CFE/2021)
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT,
assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora
em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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