Diálogo inter-religioso e Ecologia Integral. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Fotos: Divulgação / www.cesep.org.br
Que beleza espiritual, ética e profética
a 58ª Campanha da Fraternidade, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), a 5ª Ecumênica, em 2021, sob coordenação do Conselho Nacional de
Igrejas Cristãs (CONIC) – CFE 2021 -, com o Tema: “Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor”; e o Lema: “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido,
fez uma unidade” (Efésios 2,14)!
De forma sórdida, moralista e
fundamentalista, um tal Centro dom Bosco, que não é da idônea Congregação dos
Salesianos, mas um grupinho de fanáticos reacionários de direita, consciente ou
inconscientemente, está insuflando a manutenção e a reprodução de posturas
homofóbicas, preconceituosas e de violência contra as mulheres. Ignorando os
ensinamentos dos Papas João XXIII, Paulo VI, os documentos do Concílio Vaticano
II e do Papa Francisco, “com voz mansa” tem a cara de pau de defender
privilégios e discriminações, chegando ao absurdo de defender quem pratica
política de morte (necropolítica). São religiosos burgueses que torturam textos
bíblicos e usam em vão o nome de Deus para discriminar as mulheres e as pessoas
com orientação homoafetiva. Devem ser ignorados. Seus vídeos, cujo grande
número de visualizações é resultante de “compras e artificialidades”, são
caluniadores da CNBB e do CONIC. Eis dois sinais gravíssimos que esse grupinho
fanático ignora: Em 2018, por homofobia, 420 irmãos e irmãs nossos/as do grupo
LGBTQIA+ foram assassinados e, por feminicídio, 4.519 mulheres foram mortas, o
que equivale a dizer que a cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil,
48 mulheres por dia. De forma justa, ecumênica e necessária, o CONIC e a CNBB,
no Texto-Base da CFE 2021, analisam de forma crítica a realidade brasileira
tremendamente desigual e recheada de discriminações, intolerância e violências,
que devem ser superadas. Quer seja por motivação religiosa ou orientação
afetiva/sexual, nenhuma forma de discriminação ou intolerância deve ser aceita.
E o Texto-Base sugere pistas concretas para colocarmos em prática o diálogo
ecumênico e macroecumênico, como compromisso de amor indispensável na
construção de uma sociedade justa, fraterna, ecológica, com admiração e
respeito à imensa diversidade existente no nosso país.
Quem fica em oásis de privilégios e se agarra
em doutrinas abstratas se torna desumano e alimenta posturas narcisistas que levam
a várias formas de violência. De outra forma, a convivência com os pobres e com
o diferente faz desabar edifícios erigidos em cima de preconceitos. Quem não
conhece o outro e de longe aponta o dedo para julgar de forma fundamentalista e
moralista violenta as relações humanas. A mamãe Leontina Rosa de Souza sempre
dizia: “para conhecermos alguém
precisamos comer um saco de sal juntos”. Ou seja, é pela convivência que a
gente passa a conhecer a beleza humana existente no outro, que é diferente. E,
ao admirar a beleza do outro, a gente se abre para respeitar e amar quem é
diferente e não oprime. Na luta pela terra, pela moradia e pela construção de
uma sociedade do Bem Viver e Conviver com sustentabilidade socioambiental, ao
lado dos/os atingidos/as pelos crimes/tragédias da mineradora Vale S/A e do
Estado, tenho a alegria de conviver com pessoas de muitas igrejas e religiões, vários
pastores e pastoras, pais e mães de santo, do Candomblé e da Umbanda, e também
com pessoas que seguem o espiritismo. Nunca vi no ensinamento deles e delas e
nem nas suas práticas nenhuma postura de discriminação e de intolerância contra
católicos, ou evangélicos ou (neo)pentecostais. Sofrendo as mesmas injustiças,
estamos juntos e unidos na luta pela bem comum. Sem fazer proselitismo, as
pessoas pertencentes a religiões de matriz africana ou indígena apenas
reivindicam o direito de manter suas tradições religiosas, a “rezar/orar” de um
jeito que é próprio deles. Na esperança de contribuir com o diálogo
inter-religioso, com profunda reverência pela Natureza, que é sagrada, e como
denúncia de racismo estrutural, partilho, abaixo, um pouco da beleza espiritual,
mística, ética e profética da senhora Pedrina de Lourdes Santos, que bradou de
forma exuberante na live “Do luto à luta: Vozes do Paraopeba – E o Acordão da
Vale S/A com o Governo de Minas Gerais?”, dia 03/02/2021. Pedrina é capitã do
Congado de Moçambique há 41 anos, 48 anos no Reinado, é mãe de santo da Umbanda,
iniciada no Candomblé e uma das grandes lideranças da luta das comunidades
atingidas pelo crime/tragédia da Vale S/A e do Estado da Bacia do Rio Paraopeba,
em Minas Gerais. De cabeça erguida, a capitã Pedrina mexeu com todos/as que
assistiam à live. Bradou ela:
“Eu
sou Pedrina de Lourdes Santos. Capitã de Moçambique, há 41 anos e 48 anos no
Reinado. Nos últimos anos, iniciei-me no candomblé, sendo que eu nasci de pais
umbandistas e há mais de 20 anos eu sigo com as reuniões de umbanda levando à
frente a nossa fé, a nossa tradição. Estamos aqui para, mais uma vez, denunciar
para a sociedade brasileira e para o mundo o que está acontecendo aqui nas
Minas Gerais, a partir de Brumadinho, depois do rompimento da barragem da mina
Córrego do Feijão, da mineradora Vale S/A. Vieram como consequências coisas
muito tristes. Primeiro, vidas humanas se perderam em meio ao lamaçal
desenfreado causado pela inoperância, pela irresponsabilidade da Vale S/A,
porque havia sinais desse rompimento. Um crime que poderia ser impedido não
foi, trazendo como consequências a tristeza, o desespero para milhares e
milhares de pessoas em toda a bacia do Rio Paraopeba. E nós, que somos
descendentes dos povos de religião ancestral de matriz africana, assim
entendendo os Reinados, a Umbanda, o Candomblé, ficamos terrivelmente
prejudicados, porque a nossa fé, devoção, a nossa alma, nossa maneira de ser está
na Natureza, onde se dá o nosso culto. Nós reverenciamos a Natureza. O grande
criador, invocado sob tantos nomes, é a própria Natureza. Sem a Natureza, nós,
os seres criados, não nos perpetuamos, não continuaremos a vivência. Nós
estamos impedidos de realizar nossos cultos, de reverenciar a própria Natureza,
os nossos antepassados e os nossos ancestrais. Toda a Natureza, com a fauna e a
flora, está terrivelmente danificada. Exigimos reparação integral, pois é
direito nosso, em toda a bacia do Rio Paraopeba. Nós não pedimos favores,
reivindicamos direitos constitucionais. O Estado de Minas Gerais e as
instituições de Justiça estão de portas fechadas para nós atingidos/as, sem
transparência e sem informação, fazendo acordos que não nos convêm, sem ouvir a
cada um de nós atingidos/as. Nosso povo
está adoecido pelos metais pesados que rolaram junto com a lama tóxica, após o
rompimento da barragem da Vale S/A em Brumadinho. Muita gente perdeu o seu
ganha-pão, pois dependiam das águas correntes e límpidas do Rio Paraopeba. Água
é vida. O que se fará com tanto dinheiro, sem a vida? O que vale a vida com
dinheiro, sem a água? Sem água doce, como é que vamos viver? Nosso grito é por
todas as vidas: vidas humanas, vidas animais, vidas vegetais e vidas minerais.
Tudo está interligado. As pessoas também estão perdidas, porque foram afetadas
na sua saúde física, mental e emocional, por causa desse desgoverno, que é
resultado do sistema capitalista que não deu certo e nunca dará certo, pois
valoriza o capital em detrimento da vida das pessoas. Estamos numa luta
gigantesca, como a luta de Davi contra Golias. As pessoas estão praticamente
morrendo à míngua por falta de saúde pública que não existe. A primeira coisa
que se tem que preocupar é se tem água e como é que nós vamos ter saúde. Verificar
a contaminação no ar, na terra e no corpo das pessoas. Como é que eu vou cantar para minha mãe da
água doce, para a senhora guardiã, se eu não vejo mais as águas límpidas do rio
Paraopeba, que nos possibilitava perpetuar o nosso culto que vem de geração
para geração há séculos? Como é que nós vamos ficar aqui sem água? Eles estão
querendo nos matar. A minha proposta, meus irmãos e irmãs de toda a bacia do
Rio Paraopeba, é que nós vamos sair daqui com a seguinte proposta: se
combinaram de nos matar, nós estamos combinando de nos manter vivos na luta até
a vitória, juntamente com os povos donos dessa terra chamada Brasil, chamada
Minas Gerais, os nossos irmãos indígenas, que também ao longo da Bacia do Rio
Paraopeba sofrem com todo tipo de desprezo. Estamos juntos nessa luta para
vencer, porque o legado dos nossos antepassados, de nossos ancestrais que
floresceram na luta e que deixaram para nós tantos conhecimentos, e é por
tantos entendimentos que nós sabemos respeitar a natureza mais do que as
autoridades. Nós sabemos ser sensíveis à dor do outro, à lágrima do outro. Admiramos,
respeitamos e amamos toda a natureza, que é sagrada. Como é que as autoridades
do Estado de Minas Gerais, de Brumadinho, dos Ministérios Públicos Estadual e
Federal e das defensorias públicas estadual e da União estão conseguindo deitar
a cabeça no travesseiro e dormir com tanta dor, com tanto sangue derramado e
com tantos clamores? O Brasil precisa saber que os atingidos e as atingidas não
estão sendo considerados, não estão sendo ouvidos, estão desprezados e
ignorados. Nós, os povos de tradição de matriz africana, totalmente invisíveis
como se nós não existíssemos, denunciamos: ninguém quer nos ver. Deve ser
porque incomodamos muito toda vez que juntos entoamos nossas toadas no reinado
e nos terreiros. Toda vez que toca um tambor, a vibração desse tambor mexe com
o mundo, mexe com a terra, mexe com mar, mexe com as águas dos rios, mexe com
as matas, mexe com os animais. Isso é um pulsar, um sentido, que não se aprende
na academia, se aprende no dia a dia, no viver, no lutar, no saber aonde tem
água e onde é possível tirar um poço e não destruir as fontes dos riachos e dos
rios. Como eu aprendi desde criança, repito e vou repetir vida afora: nós negros
somos como Aroeira - aroeira para quem não sabe é uma árvore que verga, mas não
quebra - esse é o nosso legado, esse é o nosso entendimento. Nós temos um
tronco, nós temos uma raiz, nós temos uma sabedoria, um conhecimento que os que
estão nos representando não têm. O acordão da Vale S/A com o Governo de Minas
Gerais é um desgoverno, um desrespeito aos atingidos/as, uma
irresponsabilidade. Sigamos na luta pelos nossos direitos com a bênção do nosso
Criador, de Jesus, do Espírito Santo, de Nossa Senhora do Rosário, Senhora das
Mercês e de São Benedito. Muito obrigada”.
Capitã Pedrina, que maravilha seu pronunciamento! Você nos presenteou com uma Aula Magna. O mundo será melhor quando as pessoas admirarem, respeitarem e venerem a Natureza como você nos afirmou, acima. Dói muito no meu coração quando eu vejo pessoas que se dizem católicas, ou evangélicas, ou (neo)pentecostais revelarem preconceito e muitas vezes criminalizar as religiões ancestrais de matriz africana ou indígena, chegando ao absurdo de destruir terreiros. Tem alguma violência e algo errado nesse testemunho transparente de humanidade, de fraternidade que a capitã Pedrina, mãe de santo e nossa mestra partilhou conosco? Enfim, eis uma amostra da beleza do macroecumenismo colocado em prática na luta pelo bem comum, não “apesar da fé de cada um/a”, mas “por causa da fé de cada um/a”. Isso é o que a Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 pede de todos/as nós. Feliz quem acolhe a CFE 2021, a coloca em prática e, assim, contribui na construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver com Ecologia Integral![2]
16/02/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram
o assunto tratado acima.
1 – Capitã Pedrina: "Acordão é desgoverno, é
desrespeitos aos atingidos/as. Reverenciamos a Natureza." – 03/02/2021
2 - Hino da Campanha da Fraternidade de 2021. Tema:
Fraternidade e Diálogo, compromisso de Amor.
3 – Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica
(CFE/2021)
4 - No CEDEFES: INDÍGENAS EM BH/MG: PRECONCEITO,
DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA. 1ª PARTE/23/4/2018.
5 - Makota, candomblecista, no MP/DH de MG: por
direitos das pessoas de religião afrodescendente
6 - Pai Juvenal de Oxalá: Diversidade
Religiosa-Umbanda. E. M. Machado de Assis - Contagem, MG, 23/11/17
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT,
assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Gratidão à Carmem Imaculada de
Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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