terça-feira, 30 de abril de 2024

Querida Amazônia e Povos: belezas e clamores!

Querida Amazônia e Povos: belezas e clamores! Por frei Gilvander Moreira[1]


“Do ventre da Amazônia, clamores por vida!” “Tudo está interligado com se fôssemos um, tudo está interligado nesta Casa Comum...” Atraído pelas belezas e pelos clamores da Amazônia, de 25 a 27 de abril (2024), realizamos em Humaitá, sede da Diocese de Humaitá, na beira do imponente e gigante Rio Madeira, um Encontro de Formação Bíblica e Ecologia Integral com Comunidades Tradicionais Ribeirinhas da região do Beiradão.

Ao chegar ao aeroporto de Porto Velho, por volta de 1 hora da madrugada, na noite de 24 para 25 de abril de 2024, ao descer a escada do avião, comecei a ver dezenas de policiais federais, com uniforme preto e todos com armas na mão. Um furgão do Sistema Penitenciário Federal e muitas viaturas da PF. Na saída do aeroporto também muitas viaturas policiais. Sinal de que algum grande criminoso estaria sendo preso ali. “Estão pegando peixe grande”, vários passageiros comentavam.

Pela BR 319, de Porto Velho a Manaus, após 206 Km – única parte da BR que já está asfaltada -, com um percurso de quase 3 horas de viagem, se chega à cidade de Humaitá. Este município sul-amazonense está situado estrategicamente entre as rodovias BR-319 (Manaus-Porto Velho) e a BR-230 (Transamazônica) e às margens do rio Madeira. A monocultura da soja, assim como muito gado e sedes de fazendas com muitos currais podem ser observadas entre o trecho Porto Velho e Humaitá. Além do tráfego de carretas carregadas de grãos e grandes toras de madeira da querida Amazônia. Dom Moacyr Grechi dizia: “A Amazônia tem sido um grande quintal do Brasil e do mundo”.

No início do Encontro, na apresentação, já aparecia a identidade ancestral das Comunidades Tradicionais Ribeirinhas: “Somos ribeirinhos beiradeiros, agricultores, pescadores, extrativistas, porque vivemos nos lagos, igarapés e paranás do Beiradão no Rio Madeira e convivemos com a Floresta Amazônica desde tempos ancestrais”. “Somos Povos e Comunidades Tradicionais, guardiães da Floresta Amazônica.” “Nossa principal aliada é a igreja em saída que não fica escondida, mas nos ouve, conhece as belezas da nossa cultura tradicional ribeirinha de beiradeiros e se faz solidária com a luta pelos nossos direitos.” Estão no novo arco do desmatamento da Amazônia. Após devastarem brutalmente os estados do Mato Grosso e Rondônia, agora estão invadindo os territórios no sul do estado do Amazonas. “No sul e sudeste do Brasil tem gente ganhando muito dinheiro com o que produzimos e colhemos aqui na Floresta: açaí, castanha, óleos..., mas nós os pequenos que moramos aqui, trabalhamos e protegemos a floresta continuamos empobrecidos, sem apoio do Estado brasileiro”. O sul amazonense faz parte da região da AMACRO, um plano de desenvolvimento que junta as fronteiras dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, renomeado de Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, onde 2022 obtiveram 7.055 alertas de incêndios e 231.955 hectares desmatados, somando 11.3% da área desmatada no Brasil.

 Durante o Encontro, as ribeirinhas e os ribeirinhos questionaram a política do governo federal de repressão aos garimpeiros sem políticas públicas prévias que garantam o sustento das famílias garimpeiras e denunciaram com veemência a brutal devastação que as grandes barragens de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, causaram e seguem causando. Disseram: “Em 2014, após inaugurarem as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Porto Velho, em duas grandes barragens no Rio Madeira, tem acontecido com frequência mortandade de peixes, pois as águas estão sempre poluídas. Não podemos mais plantar nas vazantes, pois não sabemos quando vão liberar grande quantidade de água. Já perdemos muitas colheitas com a liberação de água que causam enchentes inesperadas. Pescar e caçar está cada vez mais difícil. Os dias estão quente demais. Temos que ficar debaixo das árvores. Muito difícil trabalhar de 9 às 16 horas da tarde por causa do calor excessivo. A água do rio Madeira está preta e adoecendo peixes, animais e nós ribeirinhos.”

O Estado e os grandes empresários, com seus grandes projetos de desenvolvimento tem provocado muitas transformações socioculturais, econômicas e territoriais para todas as comunidades tradicionais ribeirinhas do Rio Madeira nos seus mais de 1.000 Km, pois afetaram de forma permanente o meio ambiente do ecossistema aquático e o modo de vida dos Povos e Comunidades dos Ribeirinhos.

Até 1980 as famílias ribeirinhas viviam sem garimpo, com a intensidade que está atualmente, mas sem o apoio dos governos e com a chegada de nordestinos que viram no garimpo uma oportunidade de ganhar dinheiro, grande parte dos ribeirinhos aprenderam a trabalhar com garimpo como um meio de sustentar a família. No garimpo existem os pequenos garimpeiros, os médios e os grandes. “Nós pequenos compramos balsas pequenas, geralmente cobertas de palha e lona, sem condições de pagar à vista, pagamos em muitas prestações. Com o garimpo ganhamos para sobreviver, mas quando vem o Governo Federal, com IBAMA e Polícia Federal e explodem as balsas com bombas causando para nós um grande prejuízo. Perdemos nosso meio de sustento, ficamos endividados e pior, com os incêndios das balsas são toneladas de gás carbônico jogadas no ar e nas águas do Rio Madeira são jogados mercúrio, óleo diesel, gasolina e lixo. Tudo isso causa mortandade de peixes e arruína nossa vida.”

Por isso, é injusto querer resolver o problema do garimpo só com política de repressão. Antes da repressão, é necessário que o Estado brasileiro busque apresentar políticas públicas que garantam vida digna para os milhares de ribeirinhos que são os verdadeiros guardiões da Floresta Amazônica. “Precisamos de financiamento para plantarmos e colhermos. Grande parte da produção da Floresta se perde, porque não temos meios de transporte para recolher e levar para vender na cidade.” “Por que o Governo não nos paga pelo trabalho de preservar a floresta?” “Se implementassem políticas públicas para os ribeirinhos, tais como pagar pelo trabalho de proteção da floresta, saneamento básico, acesso à educação pública de qualidade, ao sistema de saúde público, ao transporte..., os jovens não optariam por trabalhar no garimpo, pois “quebra-galho”, mas envenena as águas e acaba com nosso futuro.”

Por que o Governo Federal não reprime de forma exemplar os madeireiros, os desmatadores da floresta e os grileiros? Estes são os grandes inimigos dos povos e da Amazônia.

“Ribeirinho beiradeiro não polui as águas e nem desmata. Cuidamos da floresta, que é nossa mãe. Nós não somos bois para comer capim”. 

Os ribeirinhos estão cientes das pesquisas da Universidade Federal do Amazonas que comprovaram que os níveis de metais pesados nas águas dos rios da Amazônia - mercúrio, arsênio, cádmio, cobre, estanho, chumbo, mercúrio... - estão muito acima dos níveis toleráveis pelo corpo humano. “Não queremos insistir com garimpo, mas exigimos políticas públicas que nos garantam viver com dignidade”, isso os ribeirinhos beiradeiros reivindicam dos governos federal, estadual e municipal.

A floresta não é um quintal, é a casa das Comunidades e dos Povos Ribeirinhos, é casa e lar das irmãs árvores, dos irmãos pássaros e uma infinidade de seres vivos que têm o direito de viver. A natureza tem direitos. Os rios não são apenas para servir a nós, os humanos, e para matar a sede dos animais. O rio é a casa dos peixes. Os rios são as nossas estradas. Os peixes são nossos alimentos e precisam procriar, viver, ser cuidados. “Na floresta podemos “garimpar” sem ter que usar mercúrio em safras infinitas, preservando a floresta. Nós podemos viver sem ouro, mas sem a floresta não podemos continuar vivendo.” A Amazônia é jardim, farmácia, pulmão, rins, coração do mundo.

Terminamos o Encontro de Ribeirinhos beiradeiros com a certeza de que os ribeirinhos têm muitos direitos, que estão sendo violados pelo Estado, por madeireiros, por grileiros e invasores de terras. Afirmamos que a terra é de quem nela mora e trabalha, de quem está na posse. Com Deus, invocado sob tantos nomes, e com as bênçãos da mãe de Jesus, seguiremos defendendo o modo ancestral de viver dos Ribeirinhos/as, que cuidam da nossa querida Amazônia.

30/04/2024

Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.

Barragens do Rio Madeira devastam vida dos Povos e Floresta. E os Madeireiros? Ouça os Ribeirinhos!



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III


terça-feira, 9 de abril de 2024

Jornal A VERDADE entrevista Frei Gilvander: “Direitos só se conquistam com luta coletiva e popular”

 Jornal A VERDADE entrevista Frei Gilvander: “Direitos só se conquistam com luta coletiva e popular”



Em entrevista exclusiva ao Jornal A VERDADE (Jornal A VERDADE, n. 289, abril de 2024, p. 5), Frei Gilvander Moreira fala do momento delicado das lutas populares no Brasil, destacando a luta pelo direito à terra e os principais conflitos que envolvem os camponeses, povos indígenas e tradicionais ameaçados pelo agronegócio, pelas mineradoras e pelo latifúndio. Destaca ainda a resistência popular, a crescente luta pela Reforma Agrária e a defesa do socialismo como solução para a superação dos males do sistema capitalista, brutal máquina de moer vidas. Fernando Alves, da Redação.

A VERDADE - Apesar das centenas de mortes que ocorreram nos últimos anos, causadas pelas multinacionais que exploram os minérios, não houve nenhuma ação efetiva do governo para acabar com esses crimes. Por quê?

Frei Gilvander Moreira: “Em uma sociedade capitalista, com idolatria do capital/mercado, os governos estaduais e federal, que giram a roda do Estado burguês, são vassalos desse sistema de morte, com modelo econômico assassino. O máximo que fazem é maquiar danos com mitigações que não compensam nada, pois não alteram a lógica e a estrutura que está nos levando à barbárie e ao Apocalipse da humanidade e de grande parte da biodiversidade, pois mesmo com os crimes brutais das mineradoras, os órgãos ambientais continuam licenciando novos e brutais projetos de mineração e do agronegócio. Em Minas Gerais, em 2023, 474 novas licenças ambientais foram concedidas para mineração em um estado já sacrificado impiedosamente pela voracidade das mineradoras. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) há mais de 30 grandes barragens de mineração com sérios riscos de rompimento, esperando um evento extremo da Emergência Climática, que será o gatilho. Se ocorrerem outros rompimentos de barragens na RMBH, poderá ser a morte final do Rio das Velhas e do Rio São Francisco! O poder Judiciário continua cuspindo no rosto do povo brasileiro ao deixar impunes as mineradoras Vale S/A, Samarco e a BHP Billington. A Vale sepultou 272 pessoas vivas, dois anos após levou também o operador de máquina Júlio César, na mesma mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, MG, e tem levado centenas de pessoas ao "autoextermínio” (assassinatos forçados) nas bacias dos rios Doce e Paraopeba. Outra questão importante no contexto do Vale do rio Paraopeba são as Retomadas Indígenas em Brumadinho, no caso, as  Retomadas dos Xucuru Kariri e dos Kamakã Mongoió. A  mineradora Vale tem feito tudo para impedir que as comunidades indígenas possam viver em paz nestes territórios onde estão plantando, fazendo os seus rituais e  realizando a recuperação ambiental das mesmas. A última atrocidade da mineradora Vale contra as comunidades indígenas foi, se apresentando como proprietária do terreno da Retomada,  exigir que a Justiça Federal proibisse que o corpo do Cacique Merong, morto no dia 04 de março de 2024, fosse sepultado na Retomada, conforme era o seu desejo, melhor dizendo, semeado e  plantado no Território Kamakã Mongoió que agora está auto-demarcado com seu próprio sangue e luta aguerrida por terra para o seu povo. Exigimos Demarcação, Já, do Território Kamakã Mongoió, em Brumadinho MG.”

A VERDADE - Quais são as principais consequências para o meio ambiente e para a população dessa desenfreada exploração das mineradoras?

Frei Gilvander Moreira: “Com a voracidade das mineradoras e do agronegócio em conluio com o Estado e apoio escancarado da elite dominante o estado de Minas Gerais está se tornando crateras gerais, cemitérios gerais e está sendo desertificado. De estado caixa d'água do Brasil, MG está se tornando um estado desertificado. Continua o êxodo rural adensando cada vez mais as capitais e agravando a já muito grave injustiça urbana. No Brasil, uma não declarada epidemia de câncer e Alzheimer está ceifando a vida de mais 250 mil pessoas por ano, além de impor sofrimento atroz a milhões de famílias e empobrecimento por investir os poucos recursos que tem tentando salvar a vida de parentes. E a indústria da quimioterapia e radioterapia gerando lucros imensos para seus donos. Pior! Sem preservação ambiental, a Emergência Climática só se agrava e os Eventos Extremos cada vez mais frequentes e letais. Adoecimento psíquico geral da população. Todas estas consequências da mineração devastadora e do agronegócio, que é ogro, antro de devastação socioambiental patrocinado pelo Estado que concede isenção de ICMs às commodities para exportação e o uso de agrotóxicos. Nos últimos 25 anos, só em MG, as mineradoras deixaram de pagar 170 bilhões de reais, o que daria para pagar a dívida de MG com a União. Em 2023, o agronegócio da soja deixou de pagar 60 bilhões de reais de ICMs. Esse modelo brutal asfixia a agricultura familiar agroecológica, impede a realização da Reforma Agrária já feita inclusive nos países capitalistas. Vociferaram  contra a demarcação dos Territórios dos Povos Originários, Indígenas e Tradicionais acelerando as mudanças climáticas que estão empurrando a humanidade para o abismo e sua extinção. Por isso, não cansamos de afirmar que capitalismo é barbárie e a solução para salvar a sociedade passa necessariamente pela construção do Socialismo democrático popular.”

A VERDADE - Qual a realidade dos trabalhadores do campo e da luta pela terra hoje?

Frei Gilvander Moreira: “Em uma imensa pluralidade, o campesinato brasileiro resiste para existir com cerca de um milhão de famílias assentadas em 50 anos de luta pela Reforma Agrária, o que tem custado muita luta, suor e sangue de mais de três mil camponeses assassinados na luta pela terra.. Os mais de 300 povos tradicionais resistem também nos seus Territórios enfrentando jagunços, latifundiários e o agronegócio violento. Os povos indígenas, com população acima de 1.650.000 segundo o Censo do IBGE de 2022, não baixam a cabeça diante do genocídio que lhe é imposto há 524 anos. Nossos parentes indígenas seguem preservando as florestas e garantindo condições de vida para si e para a humanidade. A agricultura familiar produz mais de 70 % do alimento que chega na mesa do povo  brasileiro.”

A VERDADE - Recentemente o Padre Júlio Lancellotti foi vítima de uma grande campanha de difamação. Como analisa as fake news lançadas na internet por grupos fascistas?

Frei Gilvander Moreira: "A verdade liberta e a mentira mata, alerta o quarto evangelho da Bíblia. Precisamos com urgência de regulamentação ética e justa da internet e das redes virtuais no Brasil, pois como "terra sem lei", a internet está via fake news disseminando ódio, intolerância, discriminação e "jogando ratos do esgoto" no tecido social. Os crimes causados pelas fake news precisam ser julgados e condenados exemplarmente."

A VERDADE - Em 2022, o senhor fez um trabalho acadêmico e esse processo de pesquisas e vivências práticas resultou em dois livros: “A CPT e o MST e a (In) justiça Agrária” E “Luta pela terra, pedagogia emancipatória”, da Ed. Dialética. Pode falar dessa experiência e desse trabalho?

Frei Gilvander Moreira: "Em quatro anos de doutorado na FAE/UFMG. pesquisei a Luta pela terra como Pedagogia de emancipação humana. Demonstramos que a brutal concentração da terra no Brasil em propriedade privada capitalista, por meio de latifúndio, agronegócio e o Estado deixando grandes empresas grilarem quase 30% do Território brasileiro que são terras públicas/devolutas é a coluna mestra que garante a reprodução do capitalismo com expropriação e exploração do campesinato há 524 anos.  Enquanto não conquistarmos Justiça Agrária, o que passa necessariamente por Reforma Agrária Popular e por demarcação de todos os territórios dos povos indígenas e Tradicionais, não teremos justiça urbana e nem justiça ambiental. Só em MG há 22,6% do Território mineiro, cerca de 14 milhões de hectares de terras devolutas, que segundo a Constituição de MG deveriam ser destinadas para reforma agrária e preservação ambiental, mas estão griladas por empresas eucaliptadoras, sendo que mais de 50% da monocultura de eucalipto do Brasil está em MG. Os índices de produtividade usados pelo INCRA para aferir se as propriedades rurais são produtivas são de 1976, ou seja, estão defasados há 48 anos. Se fossem atualizados - devem ser! - milhões de hectares  de terras poderiam ser repassadas para a Reforma Agrária. Mas não basta constatar, é preciso transformar e só se transforma na luta coletiva popular. Direitos só se conquistam com luta coletiva e popular."

terça-feira, 2 de abril de 2024

Clamores dos Povos, da Amazônia e das águas. Por frei Gilvander

Clamores dos Povos, da Amazônia e das águas. Por frei Gilvander Moreira[1]

Castanheiras sacrificadas em plena Semana Santa de 2024, em Itaituba, no Pará. "Malditas sejam todas as cercas" (Dom Pedro Casaldáliga). Fotos: Frei Gilvander

De 22 de março a 1º de abril de 2024, participamos de Missões na Amazônia, na Prelazia de Itaituba, no Pará. Chama nossa atenção, primeiro, a imensidade da Amazônia, com cidades muito longe umas das outras; depois a exuberância da Floresta Amazônica que ainda resiste de pé com toda sua riquíssima biodiversidade, com igarapés e rios na superfície do solo e os rios aéreos que são quase invisíveis a olho nu, mas transportam uma quantidade de água maior do que os rios de superfície. São estes rios aéreos da Amazônia que garantem chuvas no centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, no Uruguai, Paraguai e Argentina. Se eles secarem, a Amazônia se desertificará.

Com calor escaldante, nas cidades, gentes oriundas de muitas outras terras indicam que a migração forçada tem sido um traço da cultura e da história dos Povos no Brasil. Fomos muito bem acolhidos pelo bispo dom Wilmar Santin, pelas irmãs Carmelitas e por lideranças leigas da Prelazia de Itaituba. Os mais de trinta missionários/as foram subdivididos/as em equipes em várias paróquias de Itaituba. Visitamos e celebramos em várias comunidades rurais, de posseiros e de ribeirinhos. Nestas comunidades existem e resistem um grande grau de preservação da floresta amazônica e da sua biodiversidade, mas para chegar as estas comunidades, passamos por muitas fazendas grandes com grandes currais e muita monocultura de capim, indicando que após a derrubada da floresta, a criação de gado segue atrás. Na Amazônia, a injustiça agrária campeia, pois imensas quantidades de terra continuam aprisionadas em cativeiro, invadidas por grileiros fazendeiros e/ou empresários e/ou madeireiros, que expulsam posseiros, ribeirinhos, indígenas e assentados da reforma agrária.



Ficamos impactados ao ouvir que a região de Itaituba foi, nas décadas de 1980 e 1990, um dos grandes polos de extração de ouro do Brasil. “O aeroporto aqui era um dos mais movimentados. Descia e subia avião teco-teco um atrás do outro”, nos disseram várias pessoas idosas. Os ribeirinhos dizem que sentem saudade de quando o Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Rio Amazonas, tinha águas límpidas e cristalinas, “tempo em que a gente podia beber água com a própria mão”, mas com a expansão do garimpo as águas do rio Tapajós ficaram barrentas e contaminadas com mercúrio. Volta e meia encontramos peixes doentes e muitas pessoas já morreram com mercúrio no corpo causado pelo garimpo que joga mercúrio nas águas e vai para os peixes e para os corpos das pessoas.

Diante da cidade de Itaituba, do outro lado do rio Tapajós, no distrito de Miritituba, já existem seis portos graneleiros, um da Cargil, outro da Bunge e de outras empresas do agronegócio, com grandes silos que recebem em média 1.800 carretas bitrem lotadas de soja do agronegócio do centro-oeste do Brasil e são embarcadas em balsas gigantes (umas vinte balsas amarradas umas às outras) sendo empurradas por rebocadores com vários motores de Scania. De Itaituba até Santarém a soja é transportada nas gigantes barcaças 24 horas por dia. No embarque da soja, uma significativa quantidade de soja acaba caindo nas águas do Rio Tapajós, o que atrai grandes cardumes de peixes em busca de alimentação, que ao comer a soja acabam assimilando também a carga brutal de agrotóxicos usada na produção da soja em monocultura do agronegócio. Os ribeirinhos pescadores pescam os peixes que são a principal carne na sua alimentação. Resultado: adoecimento, depressão, autoextermínio em grau nunca visto na história das comunidades.

No segundo semestre de 2023, as Comunidades Ribeirinhas, de Posseiros e também os Povos das cidades na Amazônia sofreram em demasia com uma das maiores secas na Amazônia, uma onda de calor infernal e com nuvens gigantes de fumaça oriunda das queimadas na Floresta Amazônica. Dona Maria José, da Comunidade Ribeirinha de Barreiras, no município de Itaituba, PA, relata comovida: “Foi de cortar nosso coração de dor ao vermos a mortandade de peixe pela escassez de água e principalmente porque a água dos rios, igarapés e lagoas estavam quase fervendo. Nós fomos sacrificados aqui, porque era quase impossível tomar banho, porque a água do rio ou das torneiras saia quente demais. Para piorar a situação. durantes vários meses tivemos que sobreviver dentro de uma nuvem gigante de fumaça, vinda das queimadas na Floresta. Era tanta fumaça que a gente não conseguia enxergar o Rio Tapajós aqui ao nosso lado. Aconteceram acidentes com voadeiras e rabetas(canoas com motor), porque com tanta fumaça não se via nem a cinco metros de distância. Com o barulho do motor da voadeira ou rabeta, não se podia perceber que vinha outra em direção contrária. Os Postos de Saúde e os hospitais da região ficaram superlotados de pessoas com pneumonia, doenças nos olhos, alergias e outras doenças respiratórias. A gente sentia que estava em uma sexta-feira da paixão, como a sofrida por Jesus Cristo. Estamos preocupados com o próximo verão. E como péssimo sinal, o Rio Tapajós, agora no final de março de 2024, está muito mais baixo que estava em março do ano passado, pois está chovendo bem menos. O progresso está cada vez mais brutal e invadindo nossos territórios e nossos modos de vida. Esta narrativa pude conferir com muitas outras pessoas da comunidade. Todos diziam: “Foi isso mesmo que aconteceu. É a pura verdade”.

Ficamos sabendo que uma multinacional do Canadá, em parceria com uma empresa brasileira, está instalando mais um megaprojeto de mineração de ouro na região de Itaituba. “Instalamos um linhão de energia exclusivo para este projeto de mineração”, nos disse um engenheiro elétrico. Em 1998, a CELPA (Centrais Elétricas do Pará) foi privatizada e passou a se chamar Rede Energia. Em 2012, a Equatorial Energia S/A adquiriu o controle da quase falida Rede Energia por apenas 1 real. O povo paraense está reclamando muito da privatização da energia, porque o preço mensal da energia está sendo muito caro e falta energia com muita frequência. Nas vilas rurais todo o dia falta energia muitas vezes. Sem energia, o povo fica sem água, porque se precisa de energia para bombear a água de poços artesianos, queimam-se com frequência os eletrodomésticos, não há como ligar ventiladores para amenizar o calor e as pessoas com diabete ou diálise ficam sem poder ser medicadas. Quem pode se vira comprando gerador próprio com motor movido à gasolina, o que consome os poucos recursos econômicos que as famílias têm. Eis outra injustiça que se abate sobre o povo paraense. Energia é bem comum e é injusto reduzi-la a mercadora para se lucrar na bolsa de valores.

Ficamos felizes ao chegar à Casa de Formação da Prelazia de Itaituba, ao lado da cidade, e passar por entre várias imponentes castanheiras centenárias. Degustamos castanha do Pará e várias outras delícias da culinária paraense, mas ao retornarmos da Missão, dia 31 de março, fomos tomados de um profundo espanto ao vermos que tinham sido derrubadas cinco daquelas castanheiras que admirávamos, cada uma com mais de 60 metros de altura, com troncos com mais de um metro de diâmetro. Quem cortou? Quem mandou cortar estas castanheiras? O IBAMA deu licença? Uma das árvores símbolo da Amazônia, as castanheiras são madeira de lei, há lei que proíbe cortá-las, mas ouvimos também de muitos ribeirinhos que o IBAMA e a Polícia Federal são implacáveis com os ribeirinhos e condescendentes/cúmplices com grandes e poderosos desmatadores. Uma pessoa nos informou que este bairro aqui era uma mata de castanheiras. Foram todas derrubadas para se construir o bairro. Estes troncos gigantes das castanheiras derrubadas serão vendidos e se transformarão em móveis de luxo não sabemos em qual capital do brasil ou do exterior.”

Na bacia do Rio Tapajós há vários Povos Indígenas, entre eles o Povo Mundurucu com mais de 13 mil parentes que resistem e estão lutando pela demarcação do seu território. Igrejas evangélicas e (neo)pentecostais estão se espalhando no meio dos povos indígenas e das comunidades ribeirinhas e nas cidades também, muitas delas desrespeitando as culturas dos povos originários e solapando lutas coletivas pelos direitos dos povos.

Enfim, a Amazônia, os Povos Amazônidas e todos os seres vivos da Amazônia estão clamando por cuidado, respeito e solidariedade. Preservar a Amazônia e o que ainda resta de todos os biomas e ecossistemas se tornou uma questão de sobrevivência para a humanidade. Os clamores são ensurdecedores. Feliz quem ouvi-los e se comprometer com a superação do capitalismo, máquina bárbara de moer vidas, e do agronegócio, com suas monoculturas e mineração, que estão causando brutais sextas-feiras da paixão em plena terceira década do século XXI!

03/04/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Leonardo Boff no Palavra Ética da TVC/BH, com frei Gilvander: Sínodo da Amazônia. 23/11/2019

2 - "Lavando os pés uns dos outros e beijando os pés do próximo." - Comunidade Ribeirinha de Barreiras, no município de Itaituba, no Pará - 28/03/2024

3 - Os Ladrões e Poluidores das Água - Vídeo produzido pela FASE - Solidariedade e Educação - Março/2024

4 - Realidade/desafios das CEBs do Oeste e Amazônia no XV Intereclesial das CEBs, Rondonópolis/MG. Víd11

5 - Amazônia. O Resgate dos Yanomani, com a urbanista Regina Fittipaldi

6 - Estudo: Em três décadas Amazônia perde o equivalente aos estados de SC, PR, SP, RJ e ES/JN/02-7-2020

7 - Desmatamento na Amazônia é o maior dos últimos dez anos - JN - 19/1/2021



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III