sexta-feira, 29 de maio de 2020

Frei Gilvander na luta por Ibirité, MG, como Território Livre de Mineração. Repúdio a derrubada da Lei do Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade


Frei Gilvander na luta por Ibirité, MG, como Território Livre de Mineração. Repúdio a derrubada da Lei do Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade - 21/05/2020.


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Videorreportagem de Frei Gilvander, assessor da CPT/MG, de CEBs, do CEBI, do SAB e de Movimentos Sociais Populares.
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terça-feira, 26 de maio de 2020

Basta de remédios que são novos venenos. Por Frei Gilvander

Basta de remédios que são novos venenos
Por Gilvander Moreira[1]

Padre Júlio Lancellotti, bom pastor e profeta no meio dos pobres nas ruas da capital de São Paulo, SP. Foto: Divulgação / Rede virtual
Muitas crises estão afetando as pessoas e todos os outros seres vivos que habitam nossa Casa Comum, o planeta Terra. A crise ecológica já acendeu o sinal vermelho há muito tempo. “O mundo está em chamas”, já dizia, ainda no século XVI, Teresa de Jesus, espanhola e freira carmelita, uma das três mulheres consideradas doutoras pela Igreja. O que acontece é que do século XVI para cá, o modo de produção industrial e os estilos de vida impostos pelo modelo capitalista e tecnocrático têm agravado, em progressão geométrica, os problemas socioambientais no Planeta e contribuído para aprofundar a injustiça socioambiental. “Não brinque com fogo”, dizia a mamãe Leontina. Tornou-se urgente interrompermos a espiral de autodestruição da humanidade e de todo o planeta Terra.
Com o auxílio dos omissos, dos cúmplices e dos coniventes, o capitalismo e os capitalistas causaram – e continuam aprofundando – a maior crise ecológica de todos os tempos.  As mineradoras com suas máquinas pesadas, cada vez mais potentes, como dragões cuspindo fogo, dizimam milhões de nascentes d’água pelo mundo afora e seguem demolindo montanhas, removendo terra e minerais diversos e em seu lugar deixando profundas crateras. Grandes empresas do agronegócio ampliam as monoculturas de eucalipto, de soja, de café e de cana, para citar apenas algumas e, assim, deixam um rastro de destruição nunca antes visto. O esgotamento dos solos férteis e a poluição ou mau uso das águas representam riscos para a segurança e soberania alimentar da humanidade. A devastação dos biomas - Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga, Pantanal e Pampas - gera processos de desertificação de territórios cada vez maiores. Megaempresas do hidronegócio transformaram a água em mercadoria. Um litro de água em alguns lugares, como aeroportos, custa um absurdo. No mercado internacional água vale muito mais que o minério e, mesmo assim, contraditoriamente, a ganância cega dos capitalistas não os deixa perceber que biomas preservados nos oferecem gratuitamente safras infinitas deste líquido vital – fonte de vida - enquanto que o minério só é extraído uma única vez e, para sua retirada, se promove a devastação das nascentes.
Nesse contexto dramático, que interpela a consciência de todas as pessoas de boa vontade, faz-se necessário resgatar a profecia do Concílio Vaticano II e a Opção da Igreja afrolatíndia pelos Pobres e pelos Jovens. Imprescindível ouvirmos os clamores de todos os seres vivos injustiçados, entre os quais encontra-se a Terra, as nascentes e toda a biodiversidade. Não podemos tardar mais em levar a sério o testemunho e os ensinamentos do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, nos seus Discursos aos Movimentos Sociais e na Encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas!), sobre o cuidado da Casa Comum.
O cap. IV da Exortação apostólica do papa Francisco A Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium, em latim) trata da Dimensão Social e Econômica da Fé Cristã. Prestemos atenção a algumas afirmações do papa Francisco: “Se a dimensão social da evangelização não for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora” (EG n. 176). É traição ao Evangelho de Jesus Cristo pensar que a fé cristã diz respeito apenas à dimensão espiritual do nosso ser e existir. O papa Francisco puxa a orelha dos espiritualistas, moralistas e fundamentalistas que deturpam a missão da Igreja. Diz ele em alto e bom tom: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos” (EG n. 49).
Além de ser pobre e para os pobres, a Igreja sonhada e gestada por Francisco  deve ter a coragem de denunciar o atual sistema econômico, "injusto na sua raiz" (EG n. 59). A Igreja "não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça" (EG n. 183). "Saiam para missão transformadora!" é a essência da mensagem que o papa Francisco está enviando aos bispos, padres e membros das comunidades cristãs, desde o início do seu pontificado. Saiam das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos, anunciem o Evangelho nas periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos pobres, aos injustiçados!
Às questões sociais, o papa Francisco dedica o segundo e o quarto capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho. Critica o "fetichismo do dinheiro" e "a ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano", versão nova e implacável da "adoração do antigo bezerro de ouro". Francisco critica o atual sistema econômico: "esta economia que mata" porque prevalece a "lei do mais forte" e promove a cultura do "ser humano descartável" que criou "algo novo" e dramático: "Os excluídos, mais do que 'explorados', são considerados resíduos, 'sobras'" (EG n. 53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando "à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum", alerta o papa
Francisco. Ele também indica que as raízes dos males sociais estão na "desigualdade social”.
A Igreja não pode ficar indiferente a tais injustiças. Papa Francisco diz profeticamente: “A economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos” (EG n. 204). Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco dedica muitas páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual" em que vivemos, um "mercado divinizado", onde reinam a "especulação financeira", a "corrupção ramificada", a "evasão fiscal egoísta" (Laudato Si, n. 56).
Diante das revelações da reunião ministerial estarrecedora, já em meio à pandemia, ocorrida dia 22 de abril de 2020, em Brasília, fica claro que a intenção do presidente e de ministros não é a preservação da vida. Antes, sim, querem a garantia de privilégios de cunho pessoal e corporativo, a continuidade de um projeto de saque dos bens naturais e do entreguismo do patrimônio público via privatizações ou concessões de empresas públicas como, por exemplo, o Banco do Brasil tal como citado pelo ministro da economia na referida reunião. Ficou claro o discurso de ódio e de insensibilidade diante do povo que está submetido às agruras da pandemia, o saque de direitos e de uma política econômica que privilegia os interesses dos banqueiros. Posturas odiosas e execráveis foram vomitadas e recheadas por 37 palavrões proferidos na reunião, 29 deles pelo presidente que, inclusive, ameaçou de forma clara e evidente trocar a chefia da Polícia Federal para barrar investigações de familiares e amigos. Também nos saltou aos olhos os dizeres estarrecedores de vários ministros, entre os quais o Ministro Ricardo Salles, que, na prática, atua contra o Meio Ambiente. Para espanto de todo o povo, Salles disse: "A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas ..."
Podemos notar que a má intenção do Ministro em pôr em prática seu projeto de morte está sustentada em duas muletas: a primeira é aproveitar da comoção nacional causada pela pandemia do novo coronavírus, que ocupa boa parte dos noticiários, para avançar com a devastação do meio ambiente; a segunda é aproveitar de um momento de excepcionalidade do direito que deveria garantir o direito à Vida, para exatamente ferir de morte as condições de vida, exigindo uma desregulamentação infralegal, com potencial de comprometer a existência das atuais  e futuras gerações. Não satisfeito, o ministro deixou as pessoas de boa vontade e as instituições democráticas estarrecidas, ao bradar seu plano macabro para devastar o meio ambiente em conluio com os grandes interesses econômicos: “Então, [...] porque só fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. [...]. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação.
O Ministro do Meio Ambiente quer aproveitar o momento de luto e atenção da imprensa à pandemia para acentuar seu projeto de morte: saquear os bens naturais que são necessários para garantir as condições de vida do povo e de toda a biodiversidade. Essa postura do antiministro do Meio Ambiente é gravíssima e intolerável, pois revela falta de ética, falta de transparência, interesses sombrios e incompatibilidade moral para ocupar um cargo tão importante para o presente e futuro do povo brasileiro e de toda sociobiodiversidade. “Mudar e simplificar” quais regras para favorecer quem? O que a opinião pública não deve saber? O antiministro Ricardo Salles foi condenado judicialmente em primeira instância por improbidade administrativa quando era secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, na prática, ministro contra a Educação, afirmou durante a repugnante reunião ministerial: “Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo, odeio. Odeio povos ciganos”, bradou o ministro cuspindo ódio. E se referiu aos ministros do Supremo Tribunal Federal chamando-os de vagabundos chegando a dizer “eles devem ser presos”.
As falas e posturas vergonhosas e repugnantes na reunião ministerial apenas evidenciam o que já era ressaltado por muitas pessoas: a insensibilidade do desgoverno federal com o direito à vida. Não dá mais para tolerar as políticas neoliberais que, na prática, são recolonizadoras e também não dá mais para tolerar quem privatiza a fé cristã, amputando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. A questão religiosa está umbilicalmente ligada aos projetos políticos fascistas e devastadores de direitos e destruidores do meio ambiente, pois normalmente quem, religiosamente, é intimista, fundamentalista e moralista, é também apoiador do desgoverno federal. Enfim, quem privatiza a fé cristã para promover a opressora teologia da prosperidade persegue também quem luta pela superação dos desmandos políticos da necropolítica.[2] Por isso, basta de remédios que são novos venenos, sejam eles na religião ou na política.

26/5/2020.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Capitalismo como religião opressora, por Leonardo Péricles, do MLB e da UP. 17/6/2019



2 - Jesus Cristo anuncia o "Reino dos Céus"; o capitalismo como religião, o império/violência. Vídeo 1 - 17/ 6/2019.



3 - Palavra Ética, na TVC/BH, c/ Frei Cláudio van Balen: Deus, Páscoa e Religião. 12/04/14



4 - Desmatamento feito no Brasil em 2019: 99% foi ilegal - "Fantástico" - Rede Globo - 24/5/2020



5 - Ameaças, milícia e morte: a nova e velha cara do Velho Chico no norte de Minas Gerais. Grilagem de terras.




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

"Trabalho Escravo no Brasil: até quando?" Por frei Gilvander – (Vídeo)


"Trabalho Escravo no Brasil: até quando?" Por frei Gilvander – (Vídeo) - Na luta por direitos - Belo Horizonte, MG, 23/5/2020.



Texto e filmagem de frei Gilvander Moreira, da CPT, das CEBs, do CEBI, do SAB e da assessoria de Movimentos Populares.

Marcha do MST. Arquivo da CPT/MG
Edição de Nádia Oliveira, colaboradora da CPT-MG.

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sexta-feira, 22 de maio de 2020

CAOS À VISTA: escassez hídrica e fim da Agricultura Familiar na RMBH? Por Alenice Baeta


CAOS À VISTA: escassez hídrica e fim da Agricultura Familiar na RMBH?
Alenice Baeta[1]

Ameaças de Escassez Hídrica e à Agricultura Familiar na Serra do Rola Moça em Ibirité e na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), MG.

Plantação de hortaliças no Sítio Demétria - AABD (Associação de Agricultores Agroecológicos e Biodinâmicos da Serra do Rola Moça). Município: Ibirité, MG. Foto: Alenice Baeta, Dezembro de 2019.
A região da Serra do Rola Moça, que separa as águas dos vales do rio das Velhas e do rio Paraopeba, possui uma importante categoria de Comunidade Tradicional: os agricultores familiares - fruto da riqueza histórica, do árduo trabalho e da complexidade cultural excepcional de seus habitantes. Antes da chegada dos invasores europeus no final do século XVII no vale do Paraopeba, já existia há milênios uma população nativa que vivia da caça, da pesca, do extrativismo vegetal e mais recentemente, também, de práticas agrícolas (BAETA&PILÓ, 2015).  
Os pequenos povoados que se formaram há mais 300 anos nos territórios que compõe esta região são remanescentes das expedições de Fernão Dias Paes e de Borba Gato e suas inúmeras ramificações, sendo que as mesmas sustentavam-se a partir do tripé: procura de riquezas minerais, anexação de terras e preagem de índios visando a sua escravização. Piedade do Paraopeba serviu de pouso para essas bandeiras mercenárias, que depois desceram o rio Paraopeba, atingindo o Vale do São Francisco. São José do Paraopeba, Brumado do Paraopeba e Aranha, que hoje pertencem ao município de Brumadinho, tornaram-se pequenos arraiais e pontos de abastecimento de caminhantes. O transporte e guarnição de víveres para Vila Rica (Ouro Preto) e Vila do Carmo (Mariana) eram realizados inicialmente por tropas de mula que seguiam por estreitas estradas escoradas por empilhamentos de pedras, cortando as serras, dentre elas, as serras da Calçada e do Rola Moça (TÚLIO, 2015; BAETA& PILÓ, 2019). Por sua vez, as terras que constituíram a fazenda Santa Rosa Cachoeira e Vargem do Pantana foram originariamente territórios de produção agrícola e de criação de gado e, atualmente, correspondem a porções dos domínios dos municípios de Sarzedo e de Ibirité, situados no sopé da Serra do Rola Moça, onde há inúmeros mananciais de água (SENA, 1909), dentre eles, Capão da Serra, Taboões, Bálsamo e Rola Moça, alguns, que se tornaram fontes de captação de abastecimento público.
O vale do rio Paraopeba possuía, assim, núcleos mineradores periféricos à Ouro Preto, Mariana e Sabará, sendo um caminho alternativo de acesso às minas de ouro, onde ocorriam atividades associadas de tropeirismo, comércio ambulante e de caixeiros viajantes, estimulados devido à produção contínua e suprimento de gêneros alimentícios, tais como, milho, arroz, feijão, mandioca, toucinho, leite, queijo, aguardente, farinhas, hortaliças e frutas em suas glebas, o que viabilizava a atividade mineradora e administrativa na capitania, e posteriormente, na fase imperial. Foi por meio de uma política de abdução e concessão de terras pela metrópole, na forma de sesmarias e/ou de datas minerais, que as atividades econômicas coloniais iniciais foram ali implementadas. Algumas propriedades rurais instalaram benfeitorias agregadas de produção, tais como, engenhos de pilão, casas de vivenda, paiol, chiqueiros, juntas de boi, rodas de mandioca, prensas, engenhos, teares, rodas de fiar, regos e pilões de água, monjolos, fornos de torrar farinha, estrebarias, criatório de gado, muros, currais de pedra e caminhos anexos (TÚLIO, 2015; SENA, 1909).         
Pouca luz se deu à geopolítica estratégica da região da Serra do Rola Moça e aos produtores braçais dos gêneros alimentícios ao longo da história mineira, baseada no sistema escravista, ou melhor, no trabalho compulsório da mão-de-obra indígena e africana, e posteriormente, na agricultura familiar tradicional camponesa. Isso favoreceu a reorganização administrativa de Minas Gerais nas serranias vizinhas denominadas “Serro das Congonhas” (BARBOSA, 1985: 27), conhecida atualmente como Serra do Curral, onde se implantou no final do século XIX a nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte. O nome da serra, segundo Barreto (1996) se deve à existência de cercado ou curral existente na localidade, que fazia parte deste grande sistema de abastecimento e de circulação regional.
A Serra do Rola Moça e alhures continuam, apesar da degradação e da espoliação histórica e contínua de suas riquezas naturais e minerais, com a mesma função de provedora de alimentos, como também de fornecedora de água para os principais centros populacionais, agora via porção norte, se tornando parte do “cinturão verde” e da “caixa d´água” da região metropolitana de Belo Horizonte, que se constituiu e se expandiu a partir do início do século passado.
Os agricultores familiares e lavradores dessa região são os protagonistas da produção de alimentos, como exposto, munidos de direitos específicos em função de serem Comunidades Históricas e Tradicionais - grupos sociais culturalmente diferenciados, com formas próprias de organização socioeconômica e de produção, bem como de transmissão de conhecimentos, possuindo dimensão territorial específica, com fortes laços de pertencimento e identificação com o lugar que vivem ou transitam (DIEGUES, 2004; COSTA FILHO et al., 2015). Logo, reproduzem historicamente o seu modo de vida, de forma isolada ou diferenciada, com base na sua campesinidade, no seu modo de vida familiar e na sua organização social, estabelecendo relações espaciais e intrínsecas com a natureza e com o seu manejo (DIEGUES & ARRUDA, 2001; ALMEIDA, 2004). Neste contexto, água é concebida como recurso comum de uma coletividade circunscrita, sujeita a códigos específicos de apropriação e uso. Em contraposição, vem sendo tratada como mercadoria, o que vem exigindo novas reflexões e bandeiras de luta a respeito da proteção, regulação, partilha e normas de acesso aos recursos hídricos - bem comum e direito de todos.
Mas com o aumento dos conflitos fundiários e territoriais, ampliação do agronegócio e da mineração e suas barragens, da monocultura do eucalipto (‘deserto verde’), da construção de hidrelétricas, empreendimentos imobiliários e industriais, aberturas de estradas, expansão urbana e escassez hídrica, esses Agricultores Familiares, apesar das grandes dificuldades que sofrem em sua longa história de resistência, vêm se organizando na luta pelos seus direitos e novas conquistas por meio de associações comunitárias, cooperativas e federações. 
As absurdas instalações e a expansão de mineradoras na região da Serra do Rola Moça vêm mais uma vez ameaçar o abastecimento de água e a produção de alimentos na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), sendo que os órgãos ambientais nas esferas municipal, estadual e federal apresentam-se coniventes com essa política de morte e de extermínio da Mãe-Terra e dos seres vivos que a habita. Para piorar este quadro estarrecedor de Injustiça Socioambiental, o atual prefeito municipal de Ibirité, com a anuência da maioria dos vereadores da Câmara Municipal, vetou[2] um projeto de lei[3], elaborado de forma participativa junto à Câmara Municipal, inicialmente com a aprovação unânime de todos os vereadores, que propunha elevar a “Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade” esta localidade, que se situa rente ao manancial do Taboões, que abastece Ibirité, parte de Belo Horizonte e parte da RMBH.
É inconcebível, portanto, a reinstalação de uma mineradora, no caso a mineradora Santa Paulina, onde, inclusive, já existe grandes crateras profundas em plena zona de amortecimento do Parque Estadual Serra do Rola Moça (PESRM), terceira maior unidade de conservação em área urbana do país. Este local degradado já deveria ter sido, aliás, objeto de um plano de recuperação ambiental anos atrás, como almejado pelos moradores e ambientalistas, visando a harmonização com a biodiversidade local.
Para piorar este quadro, já há um histórico de claros sinais de crise hídrica na RMBH e em vários bairros de Ibirité, como pode ser constatado em inúmeros noticiários e denúncias de moradores - fora as tantas localidades que ainda necessitam de obras de infraestrutura e de saneamento básico em um município já tão depauperado.    
Não cabe mineração em localidade destinada a abastecimento de água e de conservação ambiental remanescente, utilizada também para a produção agrícola, pois os aquíferos subterrâneos precisam ser preservados, ainda mais em solos com grande histórico de degradação ambiental. Sobraram poucas localidades com fontes de água, pois muitas delas já foram assoreadas e/ou contaminadas no passado.  Cabe lembrar que a barragem de rejeito da mina Córrego do Feijão que se rompeu em 25 de janeiro de 2019, epicentro da grande catástrofe e crime socioambiental do país que assolou o vale do rio Paraopeba, situa-se na vertente oposta da Serra do Rola Moça, no município vizinho Brumadinho. Sem água as centenas de famílias de Agricultores Familiares da região – Povo Tradicional, friso - não poderão trabalhar e produzir alimentos saudáveis na terra, e consequentemente haverá comprometimento e exiguidade alimentar na região. Ainda importante lembrar que se por ventura outros rompimentos de barragens consideradas instáveis que se encontram na RMBH ocorrerem, o manancial Taboões torna-se importante reserva hídrica e alternativa de provimento de água e de sobrevivência para a população atingida e demais moradores. Com a morte do rio Paraopeba, o que ocasionou o fechamento da captação de água que a COPASA tinha inaugurado em 2015 e que representava 50% da captação de água de Belo Horizonte e Região Metropolitana, tornou-se mais necessário ainda preservar integralmente o Manancial Taboões e os outros existentes na Serra do Rola Moça.
Segundo Bruno Freitas, agricultor familiar na Serra do Rola Moça, a mineração em Ibirité só agravará os graves problemas socioambientais na região, já instalados nos municípios vizinhos Sarzedo e Brumadinho.
“Moro nas margens onde estão querendo implantar esta maldita mineração (Santa Paulina). Estamos juntos nessa luta para livrar Ibirité da mineração. Este não é um drama só de Ibirité e de Sarzedo, é um drama de todos nós. O grande desafio  é barrar as mineradoras.  Ibirité não suporta uma mineração. Tantos problemas que já temos aqui sem mineração.  Ibirité quer também doenças respiratórias, transporte de minério, terminal de carga de minério e mais poluição do ar e sonora, como ocorre em Sarzedo e em Brumadinho? Muito triste, pois a vida não vale nada. Minha família, que tem raízes antigas na região, tem plantação ao pé de uma barragem de mineração, em Sarzedo. Cadê Sarzedo rico?  Estamos no pior cenário ambiental  possível em Minas Gerais. Mineração não trouxe riqueza. Só lucro para os seus  donos, mas  não para o povo”.[4]      

Os Agricultores Familiares se encontram em situação de precariedade ambiental na Serra do Rola Moça. Por isso, reitera-se que as normas patrimoniais e ambientais internacionais[5] e nacionais[6] sejam devidamente respeitadas e cumpridas pelo Poder Público. Os direitos dos agricultores estão associados à manutenção do meio ambiente ecologicamente sustentável, previsto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, na medida em que é fundamental para o exercício de sua atividade a preservação da biodiversidade, da água, do solo e do ar.
Em síntese, os Agricultores Familiares têm direito à terra e ao reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados; livre acesso ao uso dos bens da natureza, como a água e os demais componentes da biodiversidade; preservação das tradições culturais, incluindo o reconhecimento e a proteção do conhecimento tradicional e das formas de ser e fazer; o direito de participar das decisões da administração sobre marcos legais e políticas públicas agrícolas, agrárias e ambientais; o direito à liberdade de associação; o direito de reconhecimento do valor ecológico e sustentável da produção de alimentos, sementes e produtos extrativistas; o direito à não contaminação por transgênicos e agrotóxicos, entre muitas outras conquistas (PACKER, 2012).
Inaceitável e na contramão dos direitos pautados, acima, é a situação do Brasil com relação ao uso de agrotóxicos. Os pesticidas usados na agricultura do agronegócio para conter pragas nas plantações, muitos deles proibidos na Europa e nos Estados Unidos, por estarem causando câncer e doenças genéticas, vêm sendo aqui utilizados indiscriminadamente, de forma permissiva, crescente e criminosa, sendo ainda patrocinados pela bancada ruralista no Congresso Nacional e pelo atual governo federal por meio de um nefasto projeto necropolítico.   
Nesta esteira, é fundamental garantir a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional de toda a população incentivando as atividades da agricultura familiar, da agroecologia, recuperação de nascentes e a produção de alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, de forma compatível com outras necessidades essenciais, segundo o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, barrando assim o crescimento das políticas agrícolas degradantes voltadas para o monocultivo e para o agronegócio, que transformam os alimentos em commodities e desterritorializam o campesinato, agricultores familiares e outros povos tradicionais.
Esta é uma grande expectativa da sociedade organizada no âmbito dos direitos humanos e ambiental, pois os índices de violência social, pobreza e de fome da população brasileira vêm aumentando, o que é extremamente preocupante e alarmante.
Por isto, imprescindível compreender as relações socioambientais das Comunidades Tradicionais voltadas à agricultura familiar que podem garantir a soberania e a segurança alimentar, seus eixos de luta e suas conectividades históricas no atual contexto de forte ameaça de escassez hídrica e de epidemias, além de suas lutas contra a mudança climática e os mercados agroquímicos, em defesa da biodiversidade. É preciso respeitar e valorizar o imenso repertório cultural dessas Comunidades Tradicionais associadas às praticas agrícolas, alimentares em diversos ambientes - terreiro, horta, roça, quintal e demais territórios culturais, muitos deles, já confrontantes com zonas urbanas, como ocorre em Ibirité.              
A invisibilidade das comunidades tradicionais de Agricultores Familiares e o não reconhecimento da sua legitimidade por muitos ainda promovem um distanciamento abismal entre as pessoas, impedindo a construção de um mundo justo, sustentável ecologicamente e inclusivo socialmente; que respeite as diferenças, as demandas específicas, as distintas histórias e as visões particulares de mundo. 
A diversidade e a complexidade das Comunidades de Agricultores Familiares e de camponeses na Serra do Rola Moça são enormes tanto quanto a sua secular resistência cultural, frente a todas as adversidades e ameaças ambientais e territoriais que têm sofrido.
Enfim, Agricultores Familiares na Serra do Rola Moça, sim; mineração, jamais!

 

Referências:
ALMEIDA, A. W. B. Terras Tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. R. B. Estudos Urbanos e Regionais, 6 ( 1) : 9-32, Maio, São Paulo, 2004.
BAETA, A. & PILÓ, H. Os Povos Ceramistas pré-coloniais na região do Ouro, Vale do Paraopeba. In: Carta Arqueológica de Congonhas (Orgs. BAETA, A. & PILÓ, H.) pp. 24-53, Belo Horizonte: Ed. Orange, 2015.
BAETA, A. & PILÓ, H. Territórios, Campos Sagrados e Resistência Cultural nas Festas de Reinado em Ibirité-RMBH, Outubro de 2019. Disponível em: https://www.cedefes.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Artigo-Congado-Ibirit%C3%A9.pdf
BARRETO, Abílio. Memória Histórica e Descritiva. Coleção Mineiriana, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 1996.
COSTA FILHO, A. et. al. Mapeamento dos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais: visibilização e inclusão sociopolítica. In: Interfaces- Revista de Extensão, 3 (1) : 69-88, jul/dez, Belo Horizonte, 2015. 
DIEGUES, A. C. As populações tradicionais: conceitos e ambiguidades. In: O Mito Moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2004.

PACKER, Larissa A. Biodiversidade como bem comum: Direitos dos Agricultores, Agricultoras, Povos e Comunidades Tradicionais. Curitiba: Terra de Direitos, 2012.
SENA, Nelson Coelho de. Annuário histórico e Chrorográfico de Minas Gerais. Ano III. Vol.2., Belo Horizonte, 1909.
TÚLIO, Paula R. A. Vale do Paraopeba: o (des)caminho do Ouro – Minas Gerais Século XVIII. In: SERRA DA MOEDA: Patrimônio e Memória (Orgs. BAETA, A. & PILÓ, H.) pp. 66-89, Belo Horizonte : Orange Editorial, 2015.  




[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado em Antropologia e Arqueologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e Membro da ONG CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) e do Movimento Serra Sempre Viva.

[2] Confira Análise Jurídica imparcial que demonstra a inconsistência jurídica do veto do prefeito de Ibirité, MG. http://www.cptmg.org.br/portal/veto-do-prefeito-de-ibirite-mg-nao-tem-fundamento-a-camara-de-vereadores-precisa-derrubar-o-veto-diz-analise-juridica/
[3] PL 058/2019. Para maiores informações cf. a live do Movimento Serra SempreViva por meio do link: https://www.facebook.com/serrasemprevivamg/videos/2662583524018681/
[5] Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT de 1989, ratificada no Brasil em 2004; Convenção sobre a Diversidade Biológica ou da Biodiversidade – CDB/ONU de 1992;  CARTA DA TERRA/ONU em 2000; Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura (TIRFAA), ratificado no Brasil em 2002; Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial adotada em Paris/UNESCO de 2006; Declaração sobre Direitos de Camponeses e Camponesas-Via Campesina/ONU, 2018.
[6] Lei da Agricultura Familiar (Lei 11326/2006); Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais-PNPCT de 2007.

Rompimento de Barragem na Fazenda Gravatá em Novo Cruzeiro, MG, violenta mais de 40 famílias de agricultores familiares.


Rompimento de Barragem na Fazenda Gravatá em Novo Cruzeiro, MG, violenta mais de 40 famílias de agricultores familiares.


Rompimento da Barragem na Fazenda Gravatá em Novo Cruzeiro/MG, atingindo mais de 40 famílias no Córrego da Saudade. Todos os agricultores familiares perderam parte ou totalmente a sua produção.
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Fonte: Canal no youtube: Ediel Rangel

Rastro de devastação socioambiental que o criminoso rompimento de uma barragem na Fazenda Gravatá, no município de Novo Cruzeiro, no Vale do Jequitinhonha, MG, causou dia 30/3/2020. Mais de 45 famílias de agricultores familiares foram afetadas e perderam parcialmente ou totalmente suas condições de vida. Foto: www.jornalmontesclaros.com.br

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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Laudato Si’ 5 anos: a Ecologia Integral em tempos de coronavírus e crise climática – LIVE com Átila Iamarino, Carlos Nobre, Dom Leonardo Steiner e Cleusa Andreatta.

Laudato Si’ 5 anos: a Ecologia Integral em tempos de coronavírus e crise climática – LIVE com Átila Iamarino, Carlos Nobre, Dom Leonardo Steiner e Cleusa Andreatta.



Dia 20 de maio de 2020, no quinto aniversário da Encíclica Laudato Si', o Movimento Católico Global pelo Clima convidou o cientista Átila Iamarino, o pesquisador Carlos Nobre, Dom Leonardo Steiner e Cleusa Andreatta para um diálogo sobre a ecologia integral em tempos de coronavírus e crise climática. A LIVE aconteceu também via facebook do Movimento Católico Global pelo Clima: https://www.facebook.com/VivaLaudatoSi/

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Videorreportagem de Frei Gilvander da CPT/MG.

Fonte: facebook do Movimento Católico Global pelo Clima: https://www.facebook.com/VivaLaudatoSi/

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terça-feira, 19 de maio de 2020

Escravidão no Brasil: até quando? Por Frei Gilvander


Escravidão no Brasil: até quando?
Por Gilvander Moreira[1]



Desde a década de 1980, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) está comprometida com a luta pela superação do Trabalho escravo contemporâneo. Exemplifica esse compromisso a atuação, a partir de 1986, no sul de Minas Gerais, de 15 Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) que aderiram a esta luta e passaram a denunciar a existência e a intensificação de trabalho escravo nas fazendas de café. Perto de Alfenas, no sul de Minas, foram encontrados em 1996, em uma única fazenda, 2 mil trabalhadores escravizados. A colheita do café era toda à mão, não tinha maquinário ainda. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) era combativa e apoiava os trabalhadores, que vinham de regiões quentes, como o norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha, adoeciam todos com o frio do sul de Minas e terminavam a colheita enfermos, na hora de voltar para suas famílias. Após inúmeras denúncias, o Ministério Público do Trabalho começou a intervir e os fazendeiros tiveram que assinar termos de responsabilidade se comprometendo em melhorar as condições de trabalho, senão poderiam ser multados e presos, inclusive. A luta pela terra e pela Reforma Agrária no sul de Minas Gerais nasceu da luta contra o trabalho escravo. Os camponeses abarracados nos acampamentos do MST[2], no município de Campo do Meio, são quase todos imigrantes. Mesmo os que vieram de São Paulo nasceram quase todos fora deste estado. Os trabalhadores descobriram que era muito melhor lutar para conquistar um pedaço de terra do que todo ano ficar migrando em busca de emprego degradante nas fazendas de café. Hoje, território com 11 Acampamentos do MST, com mais de 500 famílias acampadas e produzindo alimentos saudáveis, a Usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, é território em luta para ser livre em contraste com a situação anterior na qual a usina fora forjada e mantida com trabalho escravo. Essa realidade verificada no sul de Minas demonstra que os peões e o trabalho escravo com escravidão por dívida, combatido em Campanha Permanente da CPT, são também produtos do avanço do capital sobre o campo.
Em um Brasil escravocrata, o trabalho escravo contemporâneo tem raízes históricas. Após a invasão pelos brancos portugueses, a exploração iniciada no Brasil, primeiro, pela tentativa de escravização dos povos originários gerando seu genocídio, atingiu também, posteriormente, o povo negro, nossos irmãos de sangue, que alimentaram, com suor e sangue, a ganância e a opulência da nobreza lusitana. O genocídio indígena no Brasil se deu de muitas formas: por contaminação com vírus trazidos pelos brancos, por massacres, escravização, catequização, por “guerra justa” definida pela metrópole que queria exterminar os indígenas para se apropriar de terras e matas almejadas para a expansão colonial e imperial – um absurdo sob todos os aspectos, pois não existe guerra justa. Os brancos estimularam também conflitos entre os povos indígenas. Porém, os povos indígenas resistiram bravamente às investidas escravocratas dos brancos. Recorrer à escravidão de povos da mãe África se tornou uma solução para manter a empresa Brasil explorando os bens naturais. Entretanto, os povos trazidos de forma forçada da África nos navios negreiros não aceitaram passivamente a escravidão. Houve resistência que ia da negativa ao trabalho à fuga para os quilombos, o que alterou a correlação de forças e obrigou uma das mais tardias ações da colonialidade no mundo: a “libertação dos escravos” com a Lei Áurea de 1.888 e o aprisionamento da terra 38 anos antes, por meio da Lei de Terras, n. 601, de 1.850, no Brasil imperial.
Friso que as condições objetivas forjadas para manter e reproduzir o trabalho escravo contemporâneo é secular, vem de longe. “O Brasil colonial foi organizado como uma empresa comercial resultante de uma aliança entre a burguesia mercantil, a Coroa e a nobreza” (VIOTTI DA COSTA, 1999, p. 173). Extinto com a Constituição imperial outorgada dia 25 de março de 1824, o regime de sesmarias “era racialmente seletivo, contemplando os homens de condição e de sangue limpo, mais do que senhores de terras, senhores de escravos” (MARTINS, 1991, p. 64). Em outras palavras: com a invasão dos europeus portugueses, o Brasil colonial foi organizado como uma empresa comercial para a produção de commodities para a exportação. Entende-se por commodities mercadorias que são matéria-prima produzidas em escala pelo agronegócio em sistema de monoculturas e que podem ser estocadas sem perda de qualidade, como petróleo, suco de laranja congelado, boi gordo, café, celulose, soja, ouro e minério, entre outras. Daí a exploração no passado do pau-brasil e mais recentemente a produção de açúcar e café que se mantém também nos dias de hoje com as monoculturas da soja, do eucalipto e a extração do minério, quase tudo para exportação.
O processo de colonização de Minas Gerais ocorre a partir do final do século XVII, quando inicia-se a subtração voraz de suas riquezas naturais, minerais de vários tipos, fontes de águas e biodiversidade, à custa do trabalho árduo de uma população escravizada e espoliada. Minas Gerais hoje, em exaustão, representa um cenário de morte e de destruição socioambiental. Foi o que restou. O nome do Estado significa muito se refletirmos. “Destruições Gerais” este é o nome, agora, que reflete a realidade das Minas e dos Gerais.
Há 24 anos, desde 1996, quando a Lei Complementar nº 87, conhecida como Lei Kandir, foi aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, os estados estão proibidos de arrecadar Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre as exportações de comodities: produtos primários, como itens agrícolas e minério. O estado de Minas Gerais, por exemplo, está exigindo do Governo Federal o pagamento de mais de 140 bilhões de reais relativos ao ICMS que deixou de recolher de empresas do agronegócio e das mineradoras, que, na verdade, sonegaram e desviaram impostos de Minas Gerais com a conivência do Governo Federal. Imagine a quantia que a Lei Kandir roubou em todos os estados!
A quem desconhece os horrores dos anos de chumbo da ditadura militar-civil-empresarial de 1964 a 1985, que foi um regime de exceção que não pode se repetir, pois os generais ditadores reforçaram a escravidão como política de Estado que deixou marcas nas nossas formas de sociabilidade. Lamentavelmente, muitas pessoas carregam dentro de si um pequeno ditadorzinho, vírus inoculado pelas ditaduras do passado. Só teremos futuro, com vida e dignidade, se superarmos os entulhos autoritários ainda presentes no tecido social que induz muita gente a pensar que problema social se resolve com repressão e que será com militarismo que chegaremos a uma sociedade justa. Cruel ilusão! Quanto mais repressão e mais militarismo, maiores serão as injustiças sociais, a violência social e a já gritante desigualdade social.
Não há estrutura fundiária que tenha o latifúndio como coluna mestra que não traga consigo um campesinato pisado, injustiçado e violentado, causando inclusive um alto índice de trabalho escravo contemporâneo. É o que nos indicam os dados de 2007 do Atlas do Trabalho Escravo[3]. Na Bíblia, no livro do Deuteronômio repete-se mais de 100 vezes o refrão: “Não esqueçam que vocês foram escravizados no Egito e que Javé seu Deus libertou vocês” (Dt 5,15; 15,15; 16,12; 24,18.22 etc.). Também na Bíblia, a lei do Ano Sabático prescreve que de sete em sete anos, as dívidas devem ser perdoadas, a terra devolvida ao antigo dono que a tivesse perdido por dívidas e os escravos devem ser libertados após trabalharem seis anos (Cf. Dt 15,12). Em  suma, a Bíblia repudia todo e qualquer tipo de escravidão e propõe sempre a construção de sociedades justas, solidárias e sustentáveis ecologicamente.
Dói, pois é cruel realidade estarmos em 2020 em um Brasil escravocrata. Por isso, mais do que nunca são necessárias as palavras proféticas do bispo Dom Pedro Casaldáliga: “Malditas sejam todas as cercas! / Malditas todas as propriedades privadas / que nos privam / de viver e de amar! / Malditas sejam todas as leis, / Amanhadas por umas poucas mãos / Para ampararem cercas e bois / e fazer a Terra, escrava / e escravos os humanos!”[4]

Referências.
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.
VIOTTI DA COSTA, Emília. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6ª edição. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

19/5/2020.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Documentário “Precisão”, produzido pela OIT e MPT, conta a história de vida de trabalhadores(as) resgatados(as) de condições análoga ao trabalho escravo.


2 - Palavra Ética na TVC/BH: contra trabalho escravo, agrotóxicos, violência à mulher

3 - Viúvas de Unaí e auditoras fiscais: trabalho escravo, não! Prisão dos mandantes, sim! RJ, 23/02/16

4 - A conquista da liberdade. De escravo no Pará ao Assentamento Nova Conquista no Piauí. 16/07/15

5 - Escravos do aluguel acolhidos na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG. 02/06/15

6 - Trabalho Escravo no Sul do Pará








[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
[3] Atlas do Trabalho Escravo no Brasil. Disponível em http://amazonia.org.br/wp-content/uploads/2012/05/Atlas-do-Trabalho-Escravo.pdf 
[4] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.