Escravidão no
Brasil: até quando?
Por
Gilvander Moreira[1]
Desde a
década de 1980, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) está comprometida com a luta
pela superação do Trabalho escravo contemporâneo. Exemplifica esse compromisso
a atuação, a partir de 1986, no sul de Minas Gerais, de 15 Sindicatos de
Trabalhadores Rurais (STRs) que aderiram a esta luta e passaram a denunciar a
existência e a intensificação de trabalho escravo nas fazendas de café. Perto
de Alfenas, no sul de Minas, foram encontrados em 1996, em uma única fazenda, 2
mil trabalhadores escravizados. A colheita do café era toda à mão, não tinha
maquinário ainda. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) era combativa e
apoiava os trabalhadores, que vinham de regiões quentes, como o norte de Minas
e o Vale do Jequitinhonha, adoeciam todos com o frio do sul de Minas e
terminavam a colheita enfermos, na hora de voltar para suas famílias. Após
inúmeras denúncias, o Ministério Público do Trabalho começou a intervir e os
fazendeiros tiveram que assinar termos de responsabilidade se comprometendo em
melhorar as condições de trabalho, senão poderiam ser multados e presos, inclusive.
A luta pela terra e pela Reforma Agrária no sul de Minas Gerais nasceu da luta
contra o trabalho escravo. Os camponeses abarracados nos acampamentos do MST[2],
no município de Campo do Meio, são quase todos imigrantes. Mesmo os que vieram
de São Paulo nasceram quase todos fora deste estado. Os trabalhadores
descobriram que era muito melhor lutar para conquistar um pedaço de terra do
que todo ano ficar migrando em busca de emprego degradante nas fazendas de
café. Hoje, território com 11 Acampamentos do MST, com mais de 500 famílias
acampadas e produzindo alimentos saudáveis, a Usina Ariadnópolis, em Campo do
Meio, é território em luta para ser livre em contraste com a situação anterior
na qual a usina fora forjada e mantida com trabalho escravo. Essa realidade
verificada no sul de Minas demonstra que os peões e o trabalho escravo com
escravidão por dívida, combatido em Campanha Permanente da CPT, são também
produtos do avanço do capital sobre o campo.
Em um
Brasil escravocrata, o trabalho escravo contemporâneo tem raízes históricas. Após
a invasão pelos brancos portugueses, a exploração iniciada no Brasil, primeiro,
pela tentativa de escravização dos povos originários gerando seu genocídio,
atingiu também, posteriormente, o povo negro, nossos irmãos de sangue, que alimentaram,
com suor e sangue, a ganância e a opulência da nobreza lusitana. O genocídio
indígena no Brasil se deu de muitas formas: por contaminação com vírus trazidos
pelos brancos, por massacres, escravização, catequização, por “guerra justa” definida
pela metrópole que queria exterminar os indígenas para se apropriar de terras e
matas almejadas para a expansão colonial e imperial – um absurdo sob todos os
aspectos, pois não existe guerra justa. Os brancos estimularam também conflitos
entre os povos indígenas. Porém, os povos indígenas resistiram bravamente às
investidas escravocratas dos brancos. Recorrer à escravidão de povos da mãe
África se tornou uma solução para manter a empresa Brasil explorando os bens
naturais. Entretanto, os povos trazidos de forma forçada da África nos navios
negreiros não aceitaram passivamente a escravidão. Houve resistência que ia da
negativa ao trabalho à fuga para os quilombos, o que alterou a correlação de
forças e obrigou uma das mais tardias ações da colonialidade no mundo: a
“libertação dos escravos” com a Lei Áurea de 1.888 e o aprisionamento da terra
38 anos antes, por meio da Lei de Terras, n. 601, de 1.850, no Brasil imperial.
Friso
que as condições objetivas forjadas para manter e reproduzir o trabalho escravo
contemporâneo é secular, vem de longe. “O
Brasil colonial foi organizado como uma empresa comercial resultante de uma
aliança entre a burguesia mercantil, a Coroa e a nobreza” (VIOTTI DA COSTA,
1999, p. 173). Extinto com a Constituição imperial outorgada dia 25 de março de
1824, o regime de sesmarias “era
racialmente seletivo, contemplando os homens de condição e de sangue limpo,
mais do que senhores de terras, senhores de escravos” (MARTINS, 1991, p.
64). Em outras palavras: com a invasão dos europeus portugueses, o Brasil
colonial foi organizado como uma empresa comercial para a produção de commodities
para a exportação. Entende-se por commodities mercadorias que são matéria-prima produzidas em escala pelo agronegócio em
sistema de monoculturas e que podem ser estocadas sem perda de qualidade, como
petróleo, suco de laranja congelado, boi gordo, café, celulose, soja, ouro e
minério, entre outras. Daí a exploração no passado do pau-brasil e
mais recentemente a produção de açúcar e café que se mantém também nos dias de
hoje com as monoculturas da soja, do eucalipto e a extração do minério, quase
tudo para exportação.
O processo de colonização de Minas
Gerais ocorre a partir do final do século XVII, quando inicia-se a subtração
voraz de suas riquezas naturais, minerais de vários tipos, fontes de águas e
biodiversidade, à custa do trabalho árduo de uma população escravizada e
espoliada. Minas Gerais hoje, em exaustão, representa um cenário de morte e de
destruição socioambiental. Foi o que restou. O nome do Estado significa muito
se refletirmos. “Destruições Gerais” este é o nome, agora, que reflete a
realidade das Minas e dos Gerais.
Há 24 anos, desde 1996,
quando a
Lei Complementar nº 87, conhecida como Lei Kandir, foi aprovada no Congresso
Nacional e sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, os
estados estão proibidos de arrecadar Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS) sobre as exportações de comodities:
produtos primários, como itens agrícolas e minério. O estado de Minas Gerais,
por exemplo, está exigindo do Governo Federal o pagamento de mais de 140
bilhões de reais relativos ao ICMS que deixou de recolher de empresas do
agronegócio e das mineradoras, que, na verdade, sonegaram e desviaram impostos
de Minas Gerais com a conivência do Governo Federal. Imagine a quantia que a
Lei Kandir roubou em todos os estados!
A quem
desconhece os horrores dos anos de chumbo da ditadura militar-civil-empresarial
de 1964 a 1985, que foi um regime de exceção que não pode se repetir, pois os
generais ditadores reforçaram a escravidão como política de Estado que deixou
marcas nas nossas formas de sociabilidade. Lamentavelmente, muitas pessoas
carregam dentro de si um pequeno ditadorzinho, vírus inoculado pelas ditaduras
do passado. Só teremos futuro, com vida e dignidade, se superarmos os entulhos
autoritários ainda presentes no tecido social que induz muita gente a pensar
que problema social se resolve com repressão e que será com militarismo que
chegaremos a uma sociedade justa. Cruel ilusão! Quanto mais repressão e mais
militarismo, maiores serão as injustiças sociais, a violência social e a já
gritante desigualdade social.
Não há estrutura fundiária que tenha o latifúndio como coluna mestra
que não traga consigo um campesinato pisado, injustiçado e violentado, causando
inclusive um alto índice de trabalho escravo contemporâneo. É o que nos indicam
os dados de 2007 do Atlas do Trabalho Escravo[3]. Na Bíblia, no livro do Deuteronômio
repete-se mais de 100 vezes o refrão: “Não
esqueçam que vocês foram escravizados no Egito e que Javé seu Deus libertou
vocês” (Dt 5,15; 15,15; 16,12; 24,18.22 etc.). Também na Bíblia, a lei do Ano
Sabático prescreve que de sete em sete anos, as dívidas devem ser
perdoadas, a terra devolvida ao antigo dono que a tivesse perdido por dívidas e
os escravos devem ser libertados após trabalharem seis anos (Cf. Dt 15,12). Em suma, a Bíblia repudia todo e qualquer tipo
de escravidão e propõe sempre a construção de sociedades justas, solidárias e
sustentáveis ecologicamente.
Dói,
pois é cruel realidade estarmos em 2020 em um Brasil escravocrata. Por isso, mais
do que nunca são necessárias as palavras proféticas do bispo Dom Pedro
Casaldáliga: “Malditas sejam todas as
cercas! / Malditas todas as propriedades privadas / que nos privam / de viver e
de amar! / Malditas sejam todas as leis, / Amanhadas por umas poucas mãos /
Para ampararem cercas e bois / e fazer a Terra, escrava / e escravos os humanos!”[4]
Referências.
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão
política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.
VIOTTI DA
COSTA, Emília. Da monarquia à república:
momentos decisivos. 6ª edição. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.
19/5/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 -
Documentário “Precisão”, produzido pela OIT
e MPT, conta a história de vida de trabalhadores(as) resgatados(as) de
condições análoga ao trabalho escravo.
2 -
Palavra Ética na TVC/BH: contra trabalho escravo, agrotóxicos, violência à
mulher
3 -
Viúvas de Unaí e auditoras fiscais: trabalho escravo, não! Prisão dos
mandantes, sim! RJ, 23/02/16
4 - A
conquista da liberdade. De escravo no Pará ao Assentamento Nova Conquista no
Piauí. 16/07/15
5 -
Escravos do aluguel acolhidos na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG.
02/06/15
6 - Trabalho Escravo no Sul do Pará
[1] Frei e
padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e
bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em
Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da
CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
[3] Atlas do Trabalho Escravo no
Brasil. Disponível em http://amazonia.org.br/wp-content/uploads/2012/05/Atlas-do-Trabalho-Escravo.pdf
[4] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora
em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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