Concentração fundiária no Brasil: por quê?
Gilvander Moreira[1]
Sem Terra do MST no Acampamento Alvimar Ribeiro, em Francisco Sá, norte de MG, dia 13/3/2018. |
Não é por acaso, nem
por incompetência do Estado e da classe dominante que se mantém a concentração
crescente da terra como propriedade privada capitalista no Brasil.
Diferentemente de muitos outros países, o capitalismo no Brasil tem como sua
essência constitutiva a concentração fundiária, porque é um capitalismo
rentista: a renda da terra é conditio
sine qua non da reprodução do capital no nosso país. “A concentração da
propriedade privada da terra no Brasil, não pode ser compreendida como uma
excrescência à lógica do desenvolvimento capitalista, ao contrário, ela é parte
constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. Um capitalismo que
revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna no verso e outra atrasada
no reverso” (OLIVEIRA, 2007, p. 132).
Há uma intrínseca
relação entre capitalismo e propriedade privada da terra: são ‘carne e unha’,
pois “o desenvolvimento capitalista transformou a terra em propriedade privada,
e a terra transformada em propriedade privada promoveu o desenvolvimento
capitalista” (MARÉS, 2003, p. 81).
A Lei 601/1850, a chamada Lei de Terras, no seu art. 3º, §2º, diz o que
são
terras devolutas: “[...] § 2º. As que não se acharem no domínio particular por
qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões
do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do
cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura” (sic). Recorde-se
que até 1850 não havia proprietário de terra no Brasil com o título de
propriedade. A Coroa concedia terra para uso agropecuário. “Durante a colônia,
a concessão de sesmaria era gratuita e abertamente nepotista, isto é, o
funcionário com poderes de concessão podia favorecer a quem quisesse” (MARÉS,
2003, p. 71). Quem recebia certa área de terra em sesmaria tinha o direito de
usufruto sobre a terra, vender/repassar para outro, mas a propriedade da terra
continuava sendo da Coroa portuguesa. Os que recebiam a terra da Coroa, antes
da Lei de Terras, não recebiam a propriedade da terra, apenas o direito de
usufruto e tinham o dever de cultivar a terra, senão poderiam perder o direito
de usufruto, conforme a Lei de 26 de junho 1375. “Aqueles para os quais a terra
era doada tinham apenas o usufruto: a propriedade era reservada à Coroa”
(VIOTTI da COSTA, 1999, p. 173). Entretanto, “a posse do fazendeiro conduzia à
legitimação através do título de sesmaria; o mesmo não se dava com a posse do
camponês, do mestiço, cujos direitos se efetivavam em nome do fazendeiro”
(MARTINS, 1983, p. 35). O regime de sesmarias, extinto com a Constituição de
1824, “era racialmente seletivo, contemplando os homens de condição e de sangue
limpo, mais do que senhores de terras, senhores de escravos” (MARTINS, 1991a,
p. 64).
O geógrafo da USP Ariovaldo
Umbelino alerta que com a Lei de Terras houve a inauguração da propriedade da
terra e a separação entre o domínio[2] conferido
pelo título de compra e a posse; pior, o sufocamento da posse pelo título de
compra. “Outro ponto fundante da Lei de Terras de 1850 foi a separação entre o
domínio garantido pelo título e a posse. O título da terra tornou-se pela lei
superior à posse efetiva, assim, tornou aquele que tem efetivamente a posse da
terra destituído do direito sobre ela. E garantiu, portanto, a aquele que sendo
portador do título da terra, mesmo, sem nunca tê-la ocupado de fato, ter o
domínio sobre ela, ou seja, o direito de propriedade privada da terra”
(OLIVEIRA, 2010, p. 294).
Imprescindível considerar o que ensina Ernane Fidélis dos Santos: “A
posse, passível de proteção possessória, deve ser aquela de que houve prova do
fato da posse anterior” (SANTOS, 1999, p. 123). Logo, em strictu sensu, a propriedade privada da terra no Brasil se
inaugurou apenas em 1850. “Na maior parte do período de vigência da
escravidão, o uso da terra não dependia de compra, e sim de cessão de uso do
domínio do que de fato pertencia à Coroa. Não existia, propriamente, a não ser
como exceção, a propriedade fundiária, que só se formalizará com a Lei de
Terras de 1850” (MARTINS, 2013, p. 40).
O latifúndio se
fortaleceu açambarcando as terras dos camponeses posseiros, que, com história
de perambulação, são expulsos ou mortos. Observe-se que os primeiros posseiros
foram os mestiços, filhos de brancos e índias, os que não tinham direito a
herança e nem eram escravos negros. “Tanto o deslocamento do posseiro quanto o
deslocamento do pequeno proprietário são determinados fundamentalmente pelo
avanço do capital sobre a terra” (MARTINS, 1983, p. 17). “Do nordeste, de 1890
a 1910, saíram milhares, centenas de milhares de camponeses em direção à
Amazônia, para trabalhar na extração da borracha, o produto que na época chegou
a emparelhar, em importância econômica, com o café. Esse nomadismo do camponês
brasileiro foi e ainda é muito característico” (MARTINS, 1983, p. 49).
O sociólogo
estadunidense Kevin Bales constata que o desenvolvimento econômico na economia
global tem aumentado a concentração fundiária e, consequentemente,
intensificado a exploração do capital. “Embora a modernização tenha produzido
efeitos bons, trazendo melhorias para a saúde e a educação, a concentração de
terra nas mãos de uma elite e o seu uso para a produção de fins comerciais,
voltada à exportação, têm tornado os pobres mais vulneráveis. Por conta da
presença de elites políticas no desenvolvimento mundial focadas no crescimento
econômico, que não é voltado apenas aos seus interesses coletivos, mas
requerido também por instituições financeiras globais, pouca atenção é dada ao
razoável sustento da maioria” (BALES, 1999, p. 13).
Enfim, a concentração
fundiária no Brasil, em propriedade capitalista da terra, cumpre um papel
essencial na acumulação capitalista, e espinha dorsal do capitalismo
brasileiro. Logo, impossível superar as injustiças sociais e as desigualdades
sociais, políticas e econômicas enquanto não se socializar e democratizar o
acesso a terra no Brasil.
Referência.
BALES, Kelvin. Disposable people: new slavery in the global economy. Berkeley:
University of California Press, 1999.
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da
terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.
MARTINS, José de Souza. MARTINS, José de
Souza. O Cativeiro da Terra. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013.
______. Expropriação e violência: a questão política
no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.
______. Os Camponeses e a Política no Brasil:
as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição.
Petrópolis: Vozes, 1983.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão
agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no governo Lula. In:
Vv.Aa. Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de
janeiro: Garamond, p. 287-328, 2010.
_____. Modo de Produção Capitalista,
Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf
VIOTTI DA COSTA, Emília. Da monarquia à
república: momentos decisivos. 6ª edição. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1999.
Belo Horizonte, MG, 13/3/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1)
Acampamento
Veredinha, do MST, Vazante, MG, clama por terra e por ajuda humanitária.
31/8/2017.
2)
Bispo
Dom José Aristeu e Padre Tonhão, da Diocese de Luz, MG, com o MST: 600 famílias
em Córrego Danta, MG. 22/04/2017.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2] É o vínculo legal da
propriedade que corre com o registro imobiliário.
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