Na
pesquisa, escrever compreende ou prende?
Por Gilvander Moreira[1]
Para que uma pesquisa seja instrumento de
transformação na perspectiva emancipatória, precisamos investigar as causas
complexas – cocausas - não apenas imediatas, mas também as mediatas e
principalmente as condições materiais objetivas, bem como as relações entre os
vários problemas, buscando as razões de fundo para que os processos de luta por
direitos humanos fundamentais aconteçam de tal maneira que persiga a indicação
de variáveis nas quais é possível empreender lutas de emancipação humana. Isso
implica em sistematizar as experiências pesquisadas, cônscio de que o decisivo
é “entender, compreender, interpretar a fundo o que ocorreu, quais foram suas
causas, quais as consequências, quais os efeitos secundários e as raízes dos
fenômenos. Devemos também interpretar quais têm sido as contradições, as
continuidades e as descontinuidades, as coerências e as incoerências”
(HOLLIDAY, 2006, p. 230).
Sistematizar experiências teorizando-as pode
ter várias serventias, entre as quais destacamos: a) ter uma compreensão
profunda da experiência, com o fim de qualificar nossa própria prática na luta
por direitos; b) compartilhar com outras práticas semelhantes as descobertas
reveladas pelas nossas experiências; c) enriquecer a reflexão teórica
produzindo novos conhecimentos com base nos conhecimentos que surgem das
práticas concretas.
Construir uma tese implica compreender o
‘objeto-sujeito’ pesquisado. O que é compreensão? Não é algo que apenas se
associa ao exercício de uma técnica ou de um método. Segundo Hans-Georg Gadamer
(1997), “a compreensão é um encontro – no sentido existencialista do termo – e
um confronto com algo essencialmente diferente de nós” (GONÇALVES, 2006, p.
253). Compreensão não é um exercício de distanciamento de nossa própria
cosmovisão, mas acima de tudo, “uma fusão e construção de uma amálgama de
nossos horizontes com os horizontes dos outros” (GONÇALVES, 2006, p. 253).
A pesquisa participante acontece enquanto a
luta por direitos continua, em um processo permanente. Cada ação pensada e
realizada pode ser geradora de novos conhecimentos e abrir novos caminhos a
serem trilhados. “Existe entre a pesquisa e a ação uma interação permanente. A
produção do conhecimento se realiza através da transformação da realidade
social” (LE BORTEF, 1987, p. 72).
Pesquisamos uma questão social com finalidade
pedagógica, mas considerando os meandros sociológicos da questão investigada. As
pessoas pesquisadas falam, comunicam ao/à pesquisador/a, por expressão oral. Ao
se transcreverem as entrevistas que registraram a expressão oral das
pesquisadas e dos pesquisados pode ocorrer um processo de acrisolamento e perda
de vários aspectos que poderiam enriquecer os dados colhidos. Perdem-se os
sons, os odores, as imagens, os gestos, os relevos e os gostos. Temos sempre
que perguntar: Qual é o efeito produzido pela transcrição da palavra falada? O
que o/a pesquisador/a ganha ou perde, escrevendo-a? Está aqui uma relação do
tipo analista e analisando: “o cliente e o pesquisado falam; o analista e o
pesquisador tomam notas e interpretam” (LE BOTERF, 1987, p. 79). Não foi sem
motivo que o filósofo Sócrates não se cansava de dialogar com a juventude, por
meio da maiêutica, e se recusou a escrever. Platão optou por filosofar por meio
de diálogos: para não se distanciar da palavra falada e para não acrisolar a
linguagem na escrita.
Problematizamos a questão da escrita em uma
sociedade, hoje, profundamente marcada pelos avanços tecnológicos dos meios de
comunicação. A desconfiança na escrita é um tema recorrente ao longo da
história do pensamento ocidental. Desde Platão e Aristóteles, os filósofos
tenderam a considerar a escrita como uma fachada exterior e visível para a
realidade interior e sonora das palavras faladas. Platão, no Fédon, faz
Sócrates declarar que a escrita não oferece mais que “a aparência e não a
realidade da sabedoria” (PLATÃO, 1973 apud INGOLD, 2008, p. 5). No artigo
“Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano”, Ingold diz: “para
Rousseau, a escrita não era “nada além da representação da fala”” (ROUSSEAU
apud INGOLD, 2008, p. 5). Para Bloomfeld, a escrita era “meramente uma forma de
registrar a linguagem por meio de marcas visíveis”, enquanto de acordo com
Saussure, “a linguagem e a escrita são dois sistemas distintos de signos: o
segundo existe com o único objetivo de representar o primeiro” (BLOOMFELD;
SAUSSURE apud INGOLD, 2008, p. 5).
Em todas essas afirmações, existe uma
priorização implícita da audição sobre a visão. Não só os olhos veem, mas os
ouvidos também veem. Segundo Ingold (2008, p. 6), Marshall McLuhan argumentou
que a invenção da imprensa conduziu a uma era inteiramente nova na história da
cultura humana, marcada pela dominância absoluta do olho e, com ela, a um viés
em direção a uma maneira de pensar que se pretende objetiva e analítica e que
segue um caminho linear de conexões lógicas explícitas.
Referências.
GONÇALVES,
Elisa Pereira. Pesquisar, participar: sensibilidades pós-modernas. In: BRANDÃO,
Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. 2ª edição.
Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2006.
HOLLIDAY,
Oscar Jara. Sistematização das
experiências: algumas apreciações. In: BRANDÃO,
Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. 2ª edição.
Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2006.
INGOLD, Tim. Pare, Olhe, Escute!
Visão, Audição e Movimento Humano. In: Ponto Urbe 3, 2008. https://journals.openedition.org/pontourbe/1925
LE BOTERF,
Guy. Pesquisa participante: propostas e reflexões metodológicas. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.).
Repensando a pesquisa participante.
3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Belo Horizonte, MG, 21/8/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1 -
Defesa do ambiente, garantia de vida/Dom Mauro Morelli/2ª Pré-Romaria/XXI
Romaria/Águas/Terra/MG. 05/8/2018.
2 -
Do Agrotóxico para a Agroecologia/1ª Pré-Romaria da XXI Romaria/Águas e
Terra/MG/Arcos/23/6/2018.
3 -
Pelo Rio Pará, por terra e contra Aterro sanitário - Ocupação Nova Jerusalém:
Nova Serrana/MG. 29/7/2018.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas;
assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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