O absurdo
do ‘marco temporal’ e a violação dos direitos originários
Visando o fortalecimento desta política de violação de direitos dos povos originários, também em julho de 2017, o impostor (des)governo Temer publicou uma portaria que criou um grupo de trabalho formado pela Polícia Federal, Secretaria de Segurança Pública e Fundação Nacional do Índio (FUNAI), visando formular propostas de “organização social” das comunidades indígenas e quilombolas. A ideia seria trazer ainda a questão quilombola para o âmbito do Ministério da Justiça, até então tratada na esfera do Ministério da Cultura e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dificultando procedimentos identitários, demarcatórios e trâmites relacionados à titulação das terras remanescentes (MILANEZ, 2017).
Esta
medida se alinha também à proposição de Emenda Constitucional conhecida como
PEC 215 bancada pelo mesmo grupo político reacionário ruralista que prevê a transferência
do Executivo[3] Federal para
o Congresso Nacional com relação à decisão final sobre a demarcação de terras
indígenas, a titulação de territórios quilombolas e a criação de unidades de
conservação ambiental. O texto ainda proíbe a ampliação de terras indígenas já
demarcadas, prevendo a indenização aos proprietários.
O
que também se pretende legitimando o ‘marco temporal’ e todas estas proposições
fascistas é anistiar os crimes cometidos contra os povos tradicionais
relacionadas à escravidão, torturas, confinamentos em pequenos territórios,
aprisionamentos, exílios, remoções forçadas, desterros, separação de
familiares, assassinatos, apropriações indevidas de territórios tradicionais, desconsiderando
assim as noções de reparação histórica, de dívida histórica com os povos
originários, de resguardo cultural e imemorial, de direitos congênitos,
imprescritíveis, intangíveis e da posse coletiva da terra.
Além
de lideranças indígenas e quilombolas e especialistas em Direitos Humanos,
renomados juristas brasileiros afirmam que o argumento do ‘marco temporal’ é
inconstitucional e inconvencional, ferindo, em especial os artigos 231 e 232 da
Constituição, além de desrespeitar a Convenção da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) n. 169, de 1989, ratificada pelo Brasil, que consagra os
direitos culturais e territoriais, bem como a autodeclaração, como instrumento
primaz da identidade étnica, além do reconhecimento das diferentes formas de ocupação,
manejo e uso da terra. Isto implica, obviamente, que o preceito da
tradicionalidade deve transcender requisitos temporais e restritivos. Ainda vem
sendo constatada a infringência do direito à consulta, prevista na convenção
supracitada, uma vez que novos processos não têm tido a participação prevista
por parte dos povos tradicionais, criando um clima de provisoriedade e
injustiça jurídico-política.
Ainda
na esfera Internacional, importante mencionar o posicionamento da Corte Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) no tratamento de julgamentos relacionados aos
direitos possessórios indígenas, que costuma considerar em suas sentenças violação
aos seus direitos a demora ou postergação na adoção de medidas internas que
visem o eficaz reconhecimento e a demarcação de terras, além de reiterar a
prerrogativa da autodeterminação, invocando a sua plena autonomia. Fica mais
que claro que os procedimentos do STF estão em total desacordo com a jurisprudência
da referida Corte (SCHWANTES & STARCK, 2017).
“Agora, o Supremo ao invés de ser portador da
segurança dos direitos possessórios indígenas, cria um entendimento que viola
totalmente a Constituição e documentos internacionais de direitos humanos em
nome de, entre outras razões, a dificuldade de se estabelecer uma retrospectiva
imemorial sobre as terras indígenas” (SCHWANTES & STARCK, 2017: 160).
Contudo,
o advogado indígena Luiz Henrique Eloy, da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (APIB), alerta que: “Muitos juízes
de primeira instância têm aplicado cegamente o ‘marco temporal’ e determina
reintegração de posses”[4] avaliando que aplicações
nas varas de primeira instância vêm desestabilizando e impactando a organização
de comunidades indígenas.
A
demora ultrajante por parte do STF em julgar[5] infundada a tese do ‘marco
temporal’ afronta os direitos humanos, contrariando também as informações e
revelações contidas no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)[6]. Tal documento da CNV
denuncia que no período de 1940 a 1988, o Estado foi responsável por várias
omissões e ilicitudes, sendo comum a elaboração de laudos fraudulentos
atestando a inexistência de povos tribais em inúmeras parcelas de terras
almejadas. Houve uma clara tentativa de eliminar famílias e comunidades
tradicionais durante o regime ditatorial civil-militar-empresarial, agravando
ainda mais o quadro de violações de suas terras em nome do chamado “desenvolvimento
e integração nacional”. Neste período, povos foram aprisionados, forçados a
serviços militares e banidos de seus territórios para instalações de
agroindústrias, hidrelétricas, explorações de minerais, madeira, abertura de
estradas, entre outros empreendimentos e negociatas. As informações sobre
delitos e transgressões contra os povos indígenas foram tão aviltantes que
resultou na proposição final da criação de uma Comissão Nacional da Verdade
Indígena (CNVI). O que se pretende é dar luz e tornar públicas as remoções
forçadas dos povos indígenas de seus lugares, a partir da compreensão da
realidade fática e não da institucionalmente construída ou fabricada, dando
visibilidade à história da resistência indígena e de sua espoliação (OSOWSKI,
2017).
O
que se constata é que o poder judiciário vem agenciando uma verdadeira política
de esquecimento, negando o território e o sentido de pertencimento desses
povos. Baseando-se nas premissas sobre a “memória das tragédias ou do
infortúnio” de J. Candau (2016), R. Osowsky propõe que “a lembrança das violências, dos deslocamentos forçados e a usurpação de
terras por parte dos brancos continua na esfera do memorável por parte dos
povos indígenas (OSOWSKY, 2017: 337). As lembranças frequentemente estão
associadas a lugares com testemunhos materiais, arqueológicos e intangíveis do
passado e de uma ancestralidade, ou seja, a espaços territoriais onde fluem memórias
coletivas vividas, construídas e reinterpretadas.
Segundo
o jurista Carlos Frederico Marés (2013), a manutenção desta política de
esquecimento por parte do Estado resultará na ausência de demarcação de terras,
o que ocasionará, no médio e longo prazo, um verdadeiro etnocídio. O direito
originário não se restringe somente em restaurar um passado ancestral e a sua história
marcadamente violenta, mas também garantir um futuro possível e harmônico, por
meio de políticas que coadunam com os preceitos dos direitos humanos
internacionais e com os prevalecentes dispositivos constitucionais.
Vale
a pena mencionar uma importante frase dos assessores jurídicos do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI) a respeito do ‘marco temporal’, reiterando que
este fere os direitos possessórios indígenas e o instituto do indigenato
(direitos originários), gerando um cenário de alto risco.
“(...)
Além de se configurar como uma
interpretação distanciada do contexto histórico e social, é visivelmente
inconstitucional. (...) Verifica-se que se tenta impor uma interpretação
jurídica desvinculada dos sujeitos de direito de hoje - os povos indígenas -
como se não houvesse relação entre o passado, o presente e futuro das 305
etnias que vivem no território brasileiro atualmente” (CUPINSKY et al., 2018).
A
mais recente manobra ocorreu no mês agosto de 2018, quando os representantes da
Confederação Nacional de Agricultura (CNA), da Frente Parlamentar de
Agricultura (FPA) no Congresso Nacional e uma deputada do DEM do Mato Grosso do
Sul encaminharam ao golpista Temer a revogação do Decreto nº 6040/2007 que
institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos Indígenas,
solicitando ainda a suspensão de processos demarcatórios. Especialistas
analisam que esta ação da “bancada do boi e da bala” seria uma represália
declarada à conquista das comunidades quilombolas sobre o julgamento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3239, que questionava o Decreto nº 4.887/2003,
que regulamenta o processo de demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos.
Em
entrevista[7], a procuradora da
República Deborah Duprat assevera que o judiciário desconhece a real profundidade
e a multiplicidade de circunstâncias históricas que envolvem os povos tradicionais,
sendo que os direitos fundamentais destas comunidades apresentam caráter
inalienável, propondo que o “problema” do ‘marco temporal’ antecede o
julgamento da Raposa Serra do Sol, tendo sido construído internamente pelo STF
desde o final da década de 1990. Duprat considera que foi a mobilização contínua
e aguerrida dos povos indígenas e quilombolas que impediu, de fato, que estas
medidas e políticas conservadoras avançassem ainda mais. “A PEC 215 já teria sido aprovada e as decisões do STF sobre o ‘marco
temporal’ e as demarcações já estariam consolidadas.”
Sigamos atentos e na
luta. ‘Marco Temporal’ Não, porque é
absurdo, inconstitucional e violação aos direitos dos povos originários!
Referências Bibliográficas
Acessos entre 19 e 22
de Agosto de 2018.
CUPINSKI, A. et al. Terra tradicionalmente ocupada,
direito originário e a inconstitucionalidade do Marco Temporal. CIMI, Maio de
2018. https://cimi.org.br/2018/05/terra-tradicionalmente-ocupada-direito-originario-e-a-inconstitucionalidade-do-marco-temporal/
NAKANE, M. &
MICHELLETI, A. Indígenas contra o marco temporal: ‘Nossa História não começa em
1988’. Brasil Debate, 14/08/2017. https://jornalggn.com.br/noticia/indigenas-contra-o-marco-temporal-%E2%80%98nossa-historia-nao-comeca-em-1988%E2%80%99-por-mariel-nakane-e-alvaro-micheletti
MILANEZ, F. “Marco
Temporal”, um argumento racista para legitimar massacres. Carta Capital,
Sociedade, 15/08/2017. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/marco-temporal-um-argumento-racista-para-legitimar-massacres
SCWANTES, S. & STARCK, G. Marco temporal
e as violações aos direitos dos povos indígenas. In: Anuário Brasileiro de Direito Internacional, vol. 2, n. 23, jul. de
2017.
SOUZA FILHO, C. F. M. Os Povos indígenas e o
Direito Brasileiro. In: SOUZA FILHO, C. F. M &
BERGOLD, R. C. (Orgs). Os Direitos dos Povos
Indígenas no Brasil: desafios no século XXI. Curitiba: Letra da Lei, 2013. p. 13-34.
Belo Horizonte, MG, 28/8/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 -
Retomada Indígena Kamakã Grayra/Esmeraldas/MG: O direito à terra. 1ª Parte.
06/6/2018.
2 -
Direito à terra: retomada Indígena Kamakã Grayra, Esmeraldas/MG. 2a parte.
16/6/2018.
3 -
Retomada Indígena na FUCAM/Esmeraldas/MG: Luta legítima pelo direito à terra/3ª
Parte. 06/6/2018.
4 -
Quilombo Marobá dos Teixeira, Almenara/MG: clamor por justiça. Sr. Orlindo
Teixeira e Kena. 15/04/2017
5 -
Daiane, Comunidade Quilombola Baú/MG - Ameaças e violência por lutar pelo
território/24/5/2018.
6 -
Comunidade Quilombola Braço Forte, em Retomada/Salto da Divisa, MG/A luta pela
terra/09/6/2016.
[1] Doutora em Arqueologia pelo
MAE/USP; Pós-Doutorado no Departamento de Antropologia e Arqueologia na FAFICH/UFMG;
Mestra em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e integrante do CEDEFES (Centro
de Documentação Eloy Ferreira da Silva – www.cedefes.org.br ).
[2] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[3] Segundo o Estatuto do
Índio, em vigor desde 1973, o reconhecimento de terras para uso exclusivo dos
índios é homologado por decreto do presidente da República. Ao Executivo,
também cabe proteger esses povos. O
processo de demarcação depende de estudos técnicos realizados pela FUNAI e de
aprovação do Ministério da Justiça. A pasta também determina a desapropriação
de fazendas na área demarcada e os proprietários são ressarcidos pelas
benfeitorias realizadas no local. Já o pagamento pela terra não está previsto
em lei. A PEC 215 segue em tramitação no Congresso Nacional.
[4] Depoimento
compilado na matéria “Porque o debate do
marco temporal é tão importante para os indígenas”, na Carta Capital de B. Ramos e J. A. Lima, publicado
em 16/8/2017. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-debate-do-marco-temporal-e-tao-importante-para-os-indigenas
[5] No dia 16 de agosto de 2018 foi
previsto pelo STF a análise do ‘marco temporal’, o que não ocorreu, postergando
a decisão, mantendo sob ameaças os direitos básicos dos povos indígenas e
quilombolas. Nessa seção julgaram,
todavia, duas ações civis abertas pelo estado do Mato Grosso com questionamento
sobre demarcações de terras indígenas.
[6] BRASIL. Comissão Nacional da
Verdade (CNV). Violações de direitos dos povos indígenas. 2016. http://memoriasdaditadura.org.br/cnv-e-indigenas/index.html
[7] Concedida a M.
Pellegrini publicado em 18/11/2015 na Carta Capital. (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/temos-tracos-de-colonialismo-dos-quais-nao-nos-libertamos-1405.html)
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