Lapinha
da Serra, um paraíso natural e sagrado
Gilvander Moreira[1]
Cachoeira do Hapel, na Lapinha da Serra, no município de Santana do Riacho, na Serra do Cipó, em Minas Gerais. Fotos: M. R. O. Carneiro. |
Há quem acredita que só se pode chegar
ao paraíso após a morte. No entanto, sem morrer, nos primeiros dias do ano de
2019, estivemos em um paraíso natural e sagrado: a Lapinha, na Serra do Cipó,
no município de Santana do Riacho, MG. Por estrada rústica, ao longo de sete
quilômetros da cidadezinha de Santana do Riacho até o vilarejo da Lapinha, a
paisagem é exuberante. Montanhas, vegetação de mata, campo rupestre e cerrado –
berço e útero das águas -, flores exalando perfume com odores variados e
deliciosos; uma infinidade de nascentes jorrando água que formam pequenos
cursos d’água. Sem poluição, o ar oxigenado alimenta nosso corpo sagrado. Ainda
no alto de uma serra, de repente descortina-se um vale encantador. Ao fundo, a
Serra da Lapinha, aos pés da qual está o vilarejo Lapinha da Serra, distrito do
município de Santana do Riacho, entrecortada pelos córregos Mata Capim e
Riachinho. Com grandes e imponentes paredões que reluzem cores, entre elas, o
lilás, a Serra da Lapinha integra o complexo de serras e escarpas da grandiosa
Serra do Cipó, situadas na porção sul da Serra do Espinhaço. Impossível não
parar e contemplar a beleza natural daquele vale com a Serra, o seu grande lago
artificial (barragem) e, ao fundo, os picos da Lapinha e do Breu.
Na Lapinha da Serra encontramos o povo camponês
nascido naquele território. Simplicidade, acolhimento e espontaneidade são
traços característicos que experimentamos logo nos primeiros contatos. Ao
conversar, percebe-se o imenso amor que têm por aquele lugar. Muitos amargaram
por vários anos a vida surrada em Belo Horizonte, mas voltaram para o aconchego
das suas origens na Lapinha. Ao redor se percebe um número expressivo de casas
de pessoas da cidade que buscam um refúgio em ambiente de tranquilidade.
Percebe-se também que os interesses do capital estão chegando com força,
invadindo a Área de Proteção Ambiental (APA), o Morro da Pedreira e outras Unidades
de Conservação (UCs) existentes na região.
Visão panorâmica da Lapinha da Serra, em Santana do Riacho, MG. |
Após contemplar a beleza natural do Vale
da Lapinha, onde está também uma barragem de uma hidrelétrica de uma empresa
privada, e após conversarmos com o porteiro que dá acesso à Cachoeira das
Pedras e à Cachoeira do Hapel e sermos autorizados a entrar, logo no início do
percurso, já dentro do ambiente próximo às duas cachoeiras, senti e intuí que
estava em um lugar não apenas de natureza exuberante, mas um lugar sagrado e
profundamente místico. Lembrei-me subitamente da passagem bíblica do livro do
Êxodo que diz que Moisés, ao pastorear o rebanho, na montanha do Horeb, no
deserto, teve uma experiência mística ao contemplar uma sarça ardente. Um anjo
do Deus da vida lhe disse no meio de um fogo ardente: “Tire as sandálias dos
seus pés, porque o lugar em que você se encontra é uma terra sagrada” (Êxodo
3,5). Nessa experiência fulcral e fontal, Moisés fez a experiência de que o
Deus Javé não é um Deus neutro, mas é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos,
desce, se aproxima do povo injustiçado, convive e caminha junto às lutas
libertárias (Êxodo 3,7-9).
A vegetação é encantadora. Das flores do
campo e de muitas plantas exalam um perfume discreto, mas delicioso e com variados
odores trazidos pelos ventos de sucupira, pau d’óleo, angico, jatobá, pindaíba,
pequi, gameleira, sempre-viva, bromélia, alecrim e de delicadas orquídeas.
Caminhar devagarinho sobre as pedras e areias brilhantes, de preferência em
silêncio e descalço, vendo e observando o ambiente é o mais salutar. Contemplar
de forma panorâmica o maciço ruiniforme – rochas esculpidas pelo vento e que
tem aspectos de ruínas - da Serra da Lapinha com seus paredões imponentes, suas
fendas instigantes e girar o olhar devagarinho sobre o grande Vale da Lapinha da
Serra e seus picos deixa extasiado/a quem ainda não foi desumanizado pelo
frenesi e estresse das cidades mercantilizadas e mercantilizadoras de tudo, do
ser humano inclusive.
Na Cachoeira das Pedras, toda reverência
é pouca. Sentar nas pedras e ficar contemplando a beleza da cascata de água
vertendo até o poço das pedras é refrescante e energizante. A sinfonia da
orquestra da cachoeira é inebriante. Não é barulho, é música harmoniosa que
fala direto às cordas do mais profundo do nosso ser. Um convite para perceber a
aura de mística e de sacralidade ali que irradia das suas cristalinas águas. Ver
e sentir a apresentação da orquestra que é a cachoeira é revigorante, mas
também fechar os olhos e ficar só ouvindo, sem ver, parece que nos eleva às
nossas origens primeiras e ancestrais. Por outro lado, fixar o olhar no reflexo
das águas em movimento na rocha chega a hipnotizar quem mergulha com
sinceridade neste cenário extemporâneo. Assim como o profeta João Batista, do
Evangelho bíblico, batizava nas águas do rio Jordão, tomar um banho, nadar no
poço da Cachoeira das Pedras não é apenas inesquecível, é ser batizado pela
irmã água e por todos os bons espíritos que ali estão e acariciam quem se deixa
tocar pelo amor gratuito que irradia da cachoeira. Porém, é preciso ter cautela
para não se acidentar nas pedras.
Mais uns 100 metros de caminhada por
entre pedras e vegetação campestre perfumada, chega-se à imponente Cachoeira do
Hapel, na Lapinha da Serra. Que beleza encantadora! Indescritível! Inefável! A
vontade era de ficar ali e demorar ao máximo, esquecer o tempo de voltar. Recordei-me
imediatamente da Cachoeira Casca D’Anta – de 186 metros de queda -, que está próxima
das nascentes do Rio São Francisco, em São Roque de Minas, e também da
Cachoeira da Jiboia – com 144 metros de queda -, no município de Uruana de
Minas, no noroeste de Minas. Ao contemplar as maravilhas da Cachoeira do Hapel,
em silêncio, alguns momentos de olhos abertos, outros momentos de olhos fechados,
recordei também que o Deus vida que está no humano e nas entranhas da História,
criou – e continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias, mas no
sétimo dia descansou” (Gênesis 2,2-3). Por que Deus teria descansado após seis
dias de trabalho criativo? Conta-se que um sábio teria perguntado a Deus porque
ele resolveu descansar após o sexto dia. Ao contemplar a beleza e a sacralidade
de toda a natureza, de tudo o que havia sido criado nas ondas da evolução –
“Deus viu que tudo que tinha sido criado era muito bom” (Gênesis 1,31) -, Deus
teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e
de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador
concluiu que era melhor descansar, pois a natureza criada era pródiga.
Pinturas rupestres de 9 mil a 1.000 anos, estima-se, no Paredão da Cascalheira, na Lapinha da Serra, em Santana do Riacho, MG. |
Enfim, a região da Lapinha da Serra é um
paraíso natural pelo encanto das suas cachoeiras, vales, montanhas e pelo seu
povo camponês. Porém, a Lapinha é fundamentalmente um paraíso sagrado pelo grande
número de sítios históricos e arqueológicos. A Lapinha da Serra nos diz que não
basta lutarmos para conquistarmos direitos sociais e humanitários. É preciso
também resgatar as nossas origens mais profundas e ancestrais e nos reconectar
com a mãe terra, com a irmã água, com as serras esculpidas pelo tempo... e daí,
com os bons espíritos presentes na natureza. A Lapinha não é apenas um paraíso natural,
mas, acima de tudo, ambiente sagrado, por onde, aliás, viveram ao longo de
milênios povos pré-coloniais e ancestrais; trata-se de memórias de uma longa
duração e de uma natureza que é detentora de direitos e de dignidade. Penetrar
neste universo é revitalizador. São encantadores os inúmeros sítios
arqueológicos já encontrados e pesquisados por arqueólogas e arqueólogos, que
não são, muitos deles e delas, apenas profissionais em busca de artefatos históricos
e arqueológicos, mas são, em primeiro lugar, pessoas sagradas que nos mostram
que é imprescindível a conexão com as culturas pré-coloniais, seus deuses, mitos,
nossos parentes ancestrais, os encantados e os bons espíritos que não morrem
nunca. Em tempos de trevas e de desertos no Brasil – fascismo e extrema-direita
no poder -, parece imprescindível buscar os lugares naturais e mágicos, ver,
sentir e absorver as suas mensagens e energias primordiais para seguir na luta
e na resistência diante das injustiças sociais e ecológicas. Lapinha da Serra,
na Serra do Cipó, em Minas Gerais, é um desses lugares de onde irradia uma luz
e uma força divina impressionante. Gratidão eterna ao povo de Lapinha e a
todos/as os/as ancestrais e bons espíritos que ali habitam há milhares de anos.
Belo Horizonte, MG, 08/1/2019.
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
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