Padre
Ernesto, profeta do Reino de Deus no meio do povo
Por Gilvander Moreira[1]
Padre Ernesto de Freitas Barcelos. Fotos: Maria José de Souza (Maju) e Maria Imaculada de Oliveira e Silva. |
O sol brilhou mais dia 8 de setembro
de 1955, porque estava nascendo Ernesto de Freitas Barcelos, que se tornou
padre do clero da Diocese de Itabira-Coronel Fabriciano, MG, e, acima de tudo,
um profeta do Reino de Deus no meio do povo. Dia 27 de julho de 2019, às 8h30,
iniciou-se mais uma linda festa no céu, pois com quase 64 anos “combatendo o
bom combate”, sendo profeta do Reino de Deus no meio do povo, padre Ernesto fez
sua travessia para a vida plena, vida terna e eterna. Em Pitangui, MG, padre
Ernesto iniciou sua caminhada aqui no Planeta Terra e também nos deixou
fisicamente.
Falar sobre o padre Ernesto é difícil,
pois diante dele temos que tirar as sandálias, porque estamos diante de uma
“terra sagrada”, pessoa sagrada que, como Jesus Cristo, conquistou pelo seu
jeito de ser e agir uma santa autoridade. Padre Ernesto jamais se curvou diante
dos poderosos. Em missão em Acaiaca, MG,
fiquei profundamente comovido quando soube da passagem do padre Ernesto para a
eternidade. Inesperadamente ele partiu... Penso que todas as pessoas que
tiveram a alegria e a responsabilidade de conviver com padre Ernesto, de fazer
pastoral e missão libertadoras ao lado dele têm o dever de escrever e/ou gravar
áudio e/ou registrar em vídeo algo do muito que padre Ernesto fez e ensinou no
meio do povo pelo Brasil afora. A Bíblia existe graças às milhares de pessoas
que perceberam a importância e a necessidade de registrar os ensinamentos e a
práxis das profetizas e dos profetas na caminhada do povo da opressão para a
libertação. Arrisco escrever aqui um pouco do muito que vi, ouvi, senti e
aprendi com padre Ernesto, tendo tido a alegria e a responsabilidade de lutar
ao lado dele inúmeras vezes, desde 1994.
Padre Ernesto me marcou indelevelmente
desde a 1ª vez que o vi. Foi em uma missa na igreja de Cristo Libertador, em
Ipatinga, MG, onde ele conclamava a todas/os que lotaram a igreja e um grande
número de padres presentes a repudiar as ameaças de morte que estava sofrendo o
padre Ricardo Resende, da CPT de Rio Maria, no Pará. Padre Ernesto me ensinou
que as ameaças de morte a quem está na luta contra as injustiças são também
ameaças de ressurreição.
Padre Ernesto sempre nos interpelava
para a vivência coerente com o ensinamento de Jesus Cristo e com o seu
Evangelho; primeiro, por ter vivido sempre de forma simples e austera. Sempre
calçando sandálias de dedo, com camiseta das CEBs, ou das Romarias da Terra e
das Águas, ou de Pastorais Sociais, ou do Grito dos Excluídos – umas camisetas trazia a inscrição
"Desobedeça!"; outra, "Luto pela democracia"; outra,
"A causa indígena é de todos nós" - , embornal, no ombro, com balas
de rapadura e gengibre que ele sempre levava para partilhar, e trajando
calça surrada. Para proteger a cabeça do sol, Ernesto usava chapéu de palha ou
bonés das romarias, da Pastoral Carcerária, do MST, das CEBs ... Símbolo da
aliança com a causa dos injustiçados, o anel de tucum Ernesto sempre carregava
em um dedo da mão. Com esse estilo de vida simples padre Ernesto testemunhava a
única possibilidade de futuro na nossa única Casa Comum, o Planeta Terra:
construirmos uma sociedade do Bem Viver e Conviver, freando o progresso e o
desenvolvimento econômico de uma
minoria, socializando os bens da criação e preservando ao máximo a mãe terra,
as nascentes, revitalizando as bacias hidrográficas, reconstituindo os biomas e
ecossistemas e, óbvio, vivendo com o mínimo de forma sóbria e austera. Padre
Ernesto não apenas fez Opção pelos Pobres, mas viveu pobre.
Padre Ernesto sempre apontava o rumo
certo e libertador das lutas populares, sempre com Opção de Classe Trabalhadora
e de Classe Camponesa, Opção pelos Pobres. Padre Ernesto nunca fez média com a
pequena burguesia e muito menos com a classe dominante. Ele estava sempre do
lado dos empobrecidos e violentados por uma sociedade capitalista, máquina de
moer vidas. Padre Ernesto sabia e ensinava que o Evangelho de Jesus Cristo é
ótima notícia para os empobrecidos, mas péssima notícia para os opressores.
Padre Ernesto trabalhou em paróquias
durante décadas, mas nunca se restringiu à burocracia das paróquias e nem ficou
limitado aos limites geográficos das paróquias ou da sua Diocese. Com teimosia
e garra, padre Ernesto participava sempre de todas as lutas do povo. Ele
marcava presença em tudo que gera vida, fraternidade real e liberdade para o
povo. Foi protagonista na Pastoral Carcerária, ciente de que todo preso é um
preso político e devemos lutar para construirmos uma sociedade sem prisões, pois
Jesus iniciou sua missão pública possuído por uma ira santa ao saber que o
profeta João Batista tinha sido preso e, algemado, tinha sido empurrado para
dentro de uma prisão de segurança máxima, conforme escreveu o historiador
Flávio Josefo. Padre Ernesto alertava sempre que Jesus anunciou em seu discurso
de abertura de sua missão pública um projeto de libertação integral: econômica,
política, social e espiritual, onde consta a libertação dos presos, inclusive.
Jesus foi prisioneiro político condenado injustamente pelos podres poderes da
economia, da política e da religião.
Padre Ernesto sempre foi um animador das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cônscio de que as CEBs são o jeito
normal/antigo da igreja ser e agir, sendo fermento no meio da massa alienada e
cegada, luz no meio das trevas das opressões e corrupções e sendo sal para
impedir tantas deteriorações, entre as quais a desencarnação da fé cristã, a
amputação da dimensão social da fé cristã, os espiritualismos, os intimismos e
os fundamentalismos. Para participar dos Intereclesiais (Encontros Nacionais
das CEBs), padre Ernesto sempre organizava uma caravana de romeiras e romeiros
que, mesmo não sendo representantes das CEBs no Intereclesial, participavam de
vários momentos dos Intereclesiais e bebiam na mesma fonte de espiritualidade
libertadora.
Padre Ernesto foi sempre um agente de
pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), pois sabia que sem a partilha, a
socialização e a democratização da mãe terra não haverá justiça agrária, nem
justiça urbana, nem justiça socioambiental e nem respeito aos direitos humanos
fundamentais. Padre Ernesto foi um entusiasta animador, organizador e
participante das Romarias das Águas e da Terra no estado de Minas Gerais e em
outros estados. Inesquecível ver a paixão do padre Ernesto pela Bíblia lida e
interpretada em uma linha libertadora. As homilias do padre Ernesto e suas
falas nas Romarias, sempre inspiradas na Bíblia, brotavam de genuína inspiração
bíblica. Padre Ernesto participou junto com uma caravana de 50 pessoas das CEBs
do Vale do Aço das duas Romarias da Terra do noroeste de Minas Gerais,
realizadas em Arinos em 25/7/1991 e 25/7/1993, romarias que levaram à prisão e
condenação do assassino dos camponeses posseiros irmãos Januário e José Natal e
à fuga do mandante do assassinato dos posseiros, o fazendeiro José Alfredo, que
desapareceu. Interrompeu-se com essas duas romarias a matança sem nenhuma
punição de camponeses no noroeste de Minas Gerais.
Padre Ernesto participava também do Centro
Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), pois sabia que a Bíblia, se interpretada
de forma sensata a partir dos empobrecidos, se torna um farol aceso e um motor
possante na nossa caminhada e luta pela construção do Reino de Deus a partir do
aqui e do agora. Padre Ernesto era essencialmente missionário, apóstolo do
Reino de Deus, ungido e outro Cristo no nosso meio. Por isso, ele animava,
organizava e realizava Missões Populares, não em uma linha só de devoção, mas
em uma perspectiva de entrosamento da fé cristã com a realidade do povo. Padre
Ernesto foi missionário em regiões assoladas por injustiças agrárias e sociais,
tais como: Rio Maria no Pará, onde padre Ernesto lutou ao lado do padre Ricardo
Resende fortalecendo a luta dos camponeses contra as violências perpetradas pelo
latifúndio e pelos latifundiários. Padre Ernesto atuou pastoralmente também na
Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, ao lado do profeta, místico
e poeta Dom Pedro Casaldáliga e de sua Equipe missionária. Padre Ernesto foi
missionário no norte de Minas Gerais, em Riacho dos Machado e região. Foi
também missionário no Vale do Jequitinhonha em Fronteira dos Vales, em Bandeira
etc.
Padre Ernesto não era neutro
politicamente. Ele participava também do Movimento de Fé e Política, pois sabia
que política não se reduz a política partidária e nem a politicagem, mas é luta
pelo bem comum. Padre Ernesto, onde estava, era um ardoroso defensor dos Direitos
Humanos fundamentais. Por isso foi muito incompreendido, perseguido e caluniado
por pessoas integrantes da pequena burguesia e/ou da classe dominante.
Padre Ernesto também lutou na defesa dos
direitos dos povos indígenas. Eis um exemplo: a partir de 1986 é que a luta e
visibilidade do Povo Indígena Kaxixó, que resiste nos municípios de Martinho
Campos e Pompéu, no centro-oeste mineiro, teve início no cenário indigenista e
indígena no país, considerados como povo ressurgido. O sindicato dos trabalhadores Rurais (STR) de
Pompéu por meio de seu presidente, o Sr. Ivo Machado, foi a primeira entidade
que acudiu e assessorou os Kaxixó quando as perseguições e conflitos
perpetrados pelos fazendeiros locais se acirraram. De imediato, o sindicalista
Ivo Machado (assassinado tempos depois) fez contato com o coordenador da
CPT/MG, padre Jerônimo Nunes, que visitou junto com o padre Ernesto as
Comunidades Kaxixó situadas à beira do rio Pará. Foram decisivas as
colaborações iniciais da CPT/MG à luta Kaxixó, cuja equipe também contou com a
participação de Geraldo Cristino de Assunção, conhecido carinhosamente como Tiago,
agente de pastoral da CPT/MG, e do Padre Ernesto, grande conhecedor da região
de Pitangui, sua terra natal. Padre Ernesto realizou inúmeras visitas ao Povo
Indígena Kaxixó, inclusive quando da realização dos trabalhos de campo
relativos ao projeto: “Kaxixó: Quem é este povo”, desenvolvidos pelas entidades
CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) e ANAI (Associação
Nacional de Ação Indigenista), quando visitou taperas antigas, grutas, sítios
arqueológicos e cemitérios indígenas, ajudando na identificação do território
ancestral Kaxixó.
Se tivesse tempo, poderíamos citar
inúmeras frases anunciadas pelo padre Ernesto com muita paixão e amor ao
próximo. Por exemplo, padre Ernesto, sempre bem-humorado e atencioso com
todos/as dizia: “Jesus passou no nosso
meio só fazendo o bem para todos, principalmente para os oprimidos e
explorados. Eu gosto muito de uma frase do Gandhi que diz ‘Eu não conheço uma
pessoa que mais fez bem para a humanidade do que Jesus, mas vocês que se dizem
cristãos atrapalham a mensagem de Jesus’.
... As coisas partilhadas rendem. ... Quem calunia os que lutam por
justiça não têm perdão. Caminhemos na justiça, no amor, pois justiça e paz se
encontrarão.”
Realmente o Roberval, da Pastoral dos
Migrantes, tem razão ao cantar que padre Ernesto foi – e continuará sendo - “um
padre amigo, sem riqueza e sem poder”. Padre Ernesto não foi sepultado, mas
semeado no coração da mãe terra. Padre Ernesto virou semente e se multiplicou.
Gratidão eterna, padre Ernesto, pelo
imenso legado espiritual, ético, profético e revolucionário que você nos
deixou. Perdemos sua presença física, mas você continuará sempre vivo em nós,
na luta. Que o Deus da vida nos dê a coragem e a sabedoria necessária para
honrarmos seu nome, seus ensinamentos, sua coragem e seu jeito destemido de
lutar ao lado dos empobrecidos construindo o Reino de Deus aqui e agora também.
Enfim, como padre Ernesto, que compartilha o nome com Ernesto Che Guevara, é
sempre mais do que nossas visões parciais e localizadas nos permitem alcançar e
também para o texto não ficar muito longo, termino com a eloquente poesia “Na
porta do céu”, do Padre Antônio Claret, outro profeta do Reino de Deus no meio
do povo, sobre Padre Ernesto de Freitas Barcelos:
Na
porta do céu
Tira esse avental
E entra logo Ernesto
Camarada justo e fiel
A casa é tua
Descansa
E não me leves a mal:
Da voz rouca
Da pouca saúde da perna
Da viagem breve
Do peso (leve)
Do preço (caro) da coerência
E da licença pra partir.
E entra logo Ernesto
Camarada justo e fiel
A casa é tua
Descansa
E não me leves a mal:
Da voz rouca
Da pouca saúde da perna
Da viagem breve
Do peso (leve)
Do preço (caro) da coerência
E da licença pra partir.
Belo Horizonte, MG, 30/7/2019.
Obs. 1: Eis, abaixo, além de vídeos, algumas fotografias do padre Ernesto de Freitas Barcelos.
Obs. 2: Os vídeos,
abaixo, ilustram o tratado acima.
1 - Tributo ao
Padre Ernesto: Um Profeta no meio do Povo - Versão melhor. 27/7/2019
2 - Padre
Ernesto, presente em nós na luta! O seu sonho não morreu. - 28/7/2019
3 - Padre
Ernesto faz denuncia crimes em Felisburgo, MG, no III Enc de CEBs de Almenara -
2 a 4 12/2011
5 - Padre
Ernesto, Veio e Simão: XVIII Romaria da terra e das águas de MG (8a parte),
Brejo.
6 - Marcha
Profética - 20a Romaria das Águas e da Terra/MG "Nas Veredas da Fé"-
22/7/2017
7 - "Nas
Veredas da Fé" e a 20a Romaria das Águas e da Terra/MG- 2a Parte - 22/ 7
/2017
8 - 20a Romaria
das Águas Terra/MG/Rádio Veredas: frei Gilvander/padre
Ernesto/Gilsilene/Udelton
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP;
mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações;
prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo
Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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