quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: uma das locomotivas da profecia: o que vi e ouvi em uma viagem.

Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: uma das locomotivas da profecia: o que vi e ouvi em uma viagem.
Por frei Gilvander Moreira[1]

Partindo de Belo Horizonte, MG, dias 27 de setembro de 2015, após 27 horas seguidas de viagem de avião, ônibus e automóvel cheguei a Santa Terezinha, umas das cidadezinhas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Por lá, durante cinco dias vi e ouvi muita coisa que merece ser partilhada. Vi com os meus olhos, com a minha cabeça e com o meu coração. Se já tinha ouvido que a região é conhecida como sertão, pude ver um sertão diferente. Diferente do sertão mineiro e do sertão nordestino. Foi uma oportunidade de relembrar que não há sertão, mas sertões.
Mato Grosso era mato grosso. Hoje não mais, porque “está sendo fritado em pouca gordura”: o estado mato-grossense está sendo despelado. Lá, toda a pele da mãe terra está sendo arrancada com desmatamentos para a pecuária e depois pelas monoculturas da soja e do milho. O agronegócio impõe-se por todo lado. Nas estradas de chão batido, muitas carretas transitam levando a riqueza produzida em solo que vai se tornando cada vez mais pobre. Nas veredas e no cerrado, ainda existente, vê-se a presença de muitos cajueiros, pequis e buritizeiros. “Onde a gente vê reserva florestal é terra indígena. O que não é terra indígena já foi tudo derrubado e transformado em pastagens e depois em lavoura. Não sei para que índio precisa de tanta terra,” comentava uma gaúcha no ônibus da empresa Xavante, empresa com nome indígena, mas de propriedade de brancos.
Meu sangue ferveu de ira ao ouvir um trabalhador negro, no pequeníssimo aeroporto de Confresa, dizer: “Porcaria de índio.” Ouvi falar que muitos fazendeiros dizem: “índio bom é índio morto” e que um grande político – coronel moderno - foi aplaudido em praça pública ao dizer: “índio não precisa de terra, pois não trabalha”. Os mesmos que apunhalam os povos indígenas, a começar pela linguagem preconceituosa, grilando suas terras, são os mesmos que já gritaram muitas vezes: “Fora dom Pedro Casaldáliga!” “Fora Prelazia de São Félix!” Um fazendeiro perguntou a um padre recém-chegado para ser missionário na Prelazia: “O senhor é contra ou a favor do progresso?” E ameaçou: “Se for um dos nossos, será bem-vindo! Se não! ...”
Meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das irmãzinhas de Jesus, e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Vi um grande grupo de indígenas delimitando seu território reconquistado, fazendo cerca na divisa com um mega latifúndio. À beira de uma estrada federal ainda sem asfalto e toda esburacada, vi ruínas de um lugarejo que a Força Nacional e o Exército puderam devolver o território aos povos indígenas. “Vieram e disseram para as famílias que quem aceitasse sair espontaneamente das terras indígenas ganharia um lote de terra em outra localidade próxima, mas quem não saísse seria expulso após seis meses. Assim aconteceu,” me informou um agente de pastoral.
Passei ao lado da Fazenda Rio Preto com uma grande fachada e segurança na entrada. “Essa fazenda tem 100 mil hectares. O dono cria 200 mil bois aí”, me informaram. Ao lado dessa fazenda está o território do povo indígena Xavante com 160 mil hectares para 1400 indígenas. A Força Nacional e o Exército estiveram na área em 2012 para desentrusar fazendeiros que grilavam terras indígenas e derrubaram muitas casas de “brancos” que foram construídas na área indígena. Muitas pessoas dizem que os indígenas têm muita terra, mas não acham que 100 mil hectares para um só “branco” seja problema.
O agronegócio avança como um tsunami, mas deixa atrás de si um rastro de destruição: terras devastadas, nascentes exterminadas, terra, ar e águas envenenadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravidão etc. Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente contra o Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizado nas lavouras vai para os cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.” A UTI mais próxima está em Cuiabá, MT, ou em Goiânia, GO, distante de 1000 a 1500 Kms. Para se tentar salvar alguém em situação grave só através de taxi aéreo, que custa cerca de 15 mil reais.
Muitos indígenas, peões e lideranças foram assassinados na região. Ouvi que ainda existem muitos jagunços que ameaçam quem se opõe aos interesses dos donos de terras. Em Ribeirão Cascalheira, visitei o Santuário dos Mártires da Caminhada. Emocionante caminhar onde o padre João Bosco Burnier, missionário jesuíta, foi martirizado de 11 para 12 de outubro de 1976. Ouvi que Dom Pedro Casaldáliga, ameaçado de morte na Prelazia, e o padre João Bosco Burnier, após celebrarem com o povo os festejos de N. Sra. Aparecida, incomodados pelos gritos de duas mulheres presas – Margarida e Santana – foram interceder por elas na delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira. As mulheres estavam “impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas; essa repressão desumana”, relata dom Pedro no livrinho “Martírio do Pe. João Bosco Penido Burnier”, da Ed. Loyola.
Naquela ocasião, Dom Pedro e o padre João Bosco chegaram à delegacia, se apresentaram e tentaram cumprimentar os policiais que os esperavam enfileirados em atitude agressiva. Tentaram dialogar com serenidade, mas os policiais cuspiam insultos e ameaças. Padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando. Essas palavras foram como riscar um palito de fósforo em um barril de combustível. “O soldado Ezy pulou até ele – três metros apenas – dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Inutilmente dom Pedro tentou cortar ali o impossível diálogo: “João Bosco, vamos ...” O soldado, seguidamente, descarregou também no rosto do padre João Bosco um golpe de revólver e, num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio”, escreveu dom Pedro para nós e para as futuras gerações.
Agonizando em um automóvel pelas estradas esburacadas do Xingu, antes de morrer em Goiânia no dia 12 de outubro, por volta das 17:00h, padre João Bosco lamentou com saudade comovedora: “Sinto não ter tomado nota do que os índios (Tapirapé) falaram...” Ainda bem que as Irmãzinhas de Jesus, que convivem com os povos Tapirapés, desde 1952, em seus diários registraram muita coisa da vida do povo Tapirapé, parte publicado no livro Renascer de um povo. A camisa ensanguentada do mártir padre João Bosco está exposta no Santuário dos Mártires da Caminhada. Na missa de corpo presente estenderam uma faixa: “Sem derramamento de sangue não há libertação”.  O corpo do padre João Bosco virou semente de muitos missionários militantes da causa da justiça e da paz.
Padre João Bosco deixou para nós como testamento sua doação de vida e também lições proféticas, tais como: “Contra esses abusos da autoridade e da falsa justiça, temos que opor os nossos protestos e a nossa ação pública; mesmo com risco de ficarmos expostos às represálias e à incompreensão das “autoridades””. “Embora transitoriamente separados, acontece conosco o que se passa quando, de dentro da casa com persiana, olhamos para a rua. Vemos todos os movimentos dos transeuntes, enquanto eles, por seu lado, não nos enxergam. Assim também os que já estão com Deus na posse da felicidade eterna acompanham as nossas vidas com todos os pormenores e nos ajudam com a sua amorosa assistência e intercessão.”
Após a missa de 7º dia do padre João Bosco, a delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira foi destruída pelo povo possuído por uma ira santa. Alguém questionou: “Será que isso é violência?” O povo respondeu: “Violência é eles matarem o padre João, e queimar as nossas casas.” O que existe hoje em Ribeirão Cascalheira é o Santuário dos Mártires da Caminhada, que recebe a cada cinco anos a Romaria dos Mártires da Caminhada, a próxima acontecerá de 16 a 18 de julho de 2016, para celebrar também os 40 anos do martírio do padre João Bosco. Quem puder ir viverá uma experiência indescritível de conversão, de espiritualidade profética.
Na missa de 7º dia do padre João foi dito: “Como dizia Lourenzo, índio Bororó, na época em que assassinaram o padre Rodolfo, em Merure: “A arma é o argumento dos covardes”.” “Padre João morreu no nosso lugar porque não tivemos coragem de ir juntos lá”. “Essa cadeia só serviu para prender e judiar gente pobre: posseiros e peões. Nunca se viu um rico nela.”
Acima das coisas que vi com os olhos, com a cabeça e com o coração, vi a eloquência do testemunho espiritual profético do padre João Bosco, de dom Pedro Casaldáliga, que segue irradiando espiritualidade profética, mesmo que agora esteja sentado em uma cadeira, ou deitado em uma cama, na companhia do irmão Parkinson, de três bons samaritanos – padres agostinianos – e de três anjos que o acompanham diariamente. Vi a paixão, a simplicidade, a humildade e a profecia presente em toda a equipe de agentes de pastoral da Prelazia de São Félix: leigos/as, freiras, freis, padres e o bispo dom Adriano Ciocca, todos/as missionários/as, de mãos dadas tocando em e para frente o legado espiritual e profético da Prelazia e abraçando os novos/velhos e grandes desafios da hora presente.  Obrigado a todos/as que me acolheram na fraternidade e por tudo o que me ensinaram em poucos dias de intensa convivência em retiro na Casa de Pastoral de Santa Terezinha, às margens do rio Araguaia.
Belo Horizonte, MG, 08 de outubro de 2015.





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  - www.twitter.com/gilvanderluis  - Facebook: Gilvander Moreira

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