Retrocesso ambiental e a falácia desenvolvimento
sustentável
Por Profa. Dra. Andréa Zhouri (coord. GESTA-UFMG), Prof.
Dr. Klemens Laschefski (IGC-UFMG) e Vinicius Papatella (advogado, pesquisador
GESTA-UFMG).
Face às mobilizações sociais e ambientalistas em nível
nacional e internacional, o Estado brasileiro organizou ao longo das décadas de
1980 e 1990 uma nova política ambiental, centrada em dispositivos de avaliação
de impacto e licenciamento de obras ou atividades potencialmente causadoras de
significativa degradação do ambiente. A orientação participativa previa não
somente a conjugação de uma avaliação técnica e política sobre a viabilidade
dos novos projetos, quanto abria espaço para a oitiva da sociedade civil, em
especial, os grupos potencialmente atingidos pelas prováveis intervenções.
Desse modo, organizava-se institucionalmente o licenciamento ambiental como um
espaço de governança e progressiva negociação, através do exame de três
licenças sucessivas que deveriam ajuizar sobre a conformidade das obras às
exigências técnicas, locacionais e legais.
Os contornos e instrumentos dessa política
incorporavam à sua pauta a noção de “desenvolvimento sustentável”, a qual se
projetava como uma proposta alternativa, mais convergente e otimista, capaz de
agregar os diferentes “setores” da sociedade na busca de soluções orientadas
para a harmonização entre o desenvolvimento econômico e a preservação
ambiental. Com surpreendente capacidade catalisadora, o crescente prestígio da
noção de desenvolvimento sustentável foi acompanhado por um processo de
despolitização dos debates e escamoteamento dos conflitos abrindo espaço para o
paradigma da modernização ecológica e sua lógica operativa da “adequação” no
âmbito do licenciamento ambiental.
As expectativas participativas com vistas à acomodação
de interesses e à construção de decisões consensualizadas se viram
progressivamente frustradas devido à concomitante multiplicação das tensões no
terreno, onde os sentidos de “desenvolvimento” e “sustentabilidade”
permaneciam, como permanecem, sendo contestados. De forma concomitante,
delineavam-se novas formas de inserção do país na economia-mundo e suas
correspondentes exigências de ajuste econômico e liberalização. Nesse processo,
as conquistas da redemocratização no campo ambiental foram capturadas e
ingeridas por novos aspectos conjunturais que redundaram na hegemonia da
incorporação dos constrangimentos ecológicos à lógica do capitalismo.
Vivemos atualmente o ápice desse processo. No último
dia 06 o Plenário da Assembléia Legislativa recebeu do Governador de Minas o PL
nº 2.946/2015 em regime de urgência, o que compromete o tempo necessário para
avaliações criteriosas do que significariam as propostas de alteração do
Sistema Estadual de Meio Ambiente. Seus apoiadores defendem o “aperfeiçoamento
e a modernização” do licenciamento e, como justificativa, apresentam números
que alegam representar o quanto este procedimento administrativo estaria
“emperrando” o desenvolvimento mineiro. Os números e a argumentação não deixam
dúvidas sobre a perspectiva desenvolvimentista e os interesses economicistas
que agora se arrogam como defensores da “sustentabilidade”. Com efeito,
trata-se aqui, de forma evidente, da sustentabilidade dos negócios.
Ambientalistas de diferentes matizes, sejam
conservacionistas, preservacionistas, socioambientais, assim como grupos
atingidos, técnicos, pesquisadores e acadêmicos disputam o sentido de
desenvolvimento e de sustentabilidade apresentado pelo governo no PL. Nossas
pesquisas há muito vem denunciando os problemas do licenciamento ambiental
pautado pela pressão economicista que, de fato, foi transformando aquele em um
balcão de licenças ao longo dos anos. As Audiências Públicas, único momento
formal em que a participação está prevista durante todo o processo, na maioria
das vezes, não se prestam a ouvir os interessados e a esclarecer dúvidas sobre
os projetos, mas tão somente operam um jogo de cena de procedimentos
democráticos e participativos. Como prática cada vez mais recorrente, os
Estudos Ambientais são mal elaborados, com casos evidentes de cópias mal
adaptadas e o uso de dados já defasados, sendo uma das reais causas daquilo que
reclamam ser a “morosidade” do licenciamento ambiental. O problema então não está
simplesmente no SISEMA. Falta, sobretudo, compromisso dos setores produtivos e
das suas equipes de consultoria ambiental para a realização de estudos sociais,
econômicos e ambientais sérios e competentes. Uma leitura técnica feita com um
mínimo de seriedade não permite aprovar licenças sem uma adequação igualmente
mínima aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, precaução e
prevenção.
Em nota pública, técnicos do SISEMA já denunciaram a
ingerência do setor produtivo além da carência de equipamentos básicos como
GPS, máquina fotográfica, computadores, má remuneração, entre outros fatores de
precarização do trabalho do agente ambiental. O sucateamento das instituições
ambientais e o trânsito de sujeitos entre estas e as funções diretivas de empresas
extrativas são apenas alguns dos ingredientes do processo de desmanche do
Sistema Ambiental em Minas Gerais.
Nas ordens de justificativa contra o PL 2.946/2015 os
números e volumes são outros. Minas Gerais lidera por 5 anos consecutivos o
ranking do desmatamento da Mata Atlântica no Brasil (Estado de Minas,
17/12/2014) e ocupa o 2º lugar em lista de trabalho escravo (MTE, 2015). O
SISEMA tem sido conivente com a transferência de recomendações dos Termos de
Referência para etapas posteriores à emissão da Licença Prévia; tem concedido
licenças ambientais com expressivo número de condicionantes muitas vezes não
cumpridas na fase adequada do licenciamento, a exemplo do projeto de mineração
e mineroduto em Conceição do Mato Dentro, com aproximadamente 400
condicionantes, número maior que a polêmica barragem de Belo Monte.
Devido a má gestão e a falta de planejamento ao longo
dos anos, outros indicadores ainda são expressivos: Minas tem convivido com a
destruição dos aquíferos e áreas de recargas, principalmente pela mineração e
extensivas monoculturas de eucalipto, com altos índices de assassinatos no
campo, além de comunidades quilombolas que aguardam o reconhecimento de seus
territórios e os conflitos em terras indígenas. Para boa parte daqueles que se
reconhecem como membros da sociedade civil, esses são temas indicadores do
desenvolvimento sustentável e da modernidade de um estado. Analisar projetos em
fatias isoladas, bem como submeter um PL dessa natureza ao regime de urgência,
deixam ocultas as falhas e os danos potenciais, representando uma metodologia
desfiguradora da realidade, imprecisa, ilegal e até imoral.
Os defensores do PL 2.946/2015 evidenciam uma
compreensão do licenciamento ambiental como mera instância concessora de
licenças quando, em realidade, a sua função é a avaliação dos possíveis
impactos sociais e ambientais dos empreendimentos de modo a concluir pela sua
viabilidade ou inviabilidade. Trata-se, portanto, de uma inversão de sentido
que desmascara a defesa de um desenvolvimento que, ao mesmo tempo que é sedento
por água potável, é perverso, faz adoecer, amputar e morrer.
O que os defensores do PL 2.946/2015 pretendem é
consagrar institucionalmente a sustentabilidade dos negócios de setores
específicos, a despeito das culturas dos ambientes, dos povos ecossistêmicos e
de todos nós, que vivemos na dependência da materialidade ambiental e não das
cifras e metas econômicas abstratas traçadas por interesses econômicos
particulares. Mudanças no sistema ambiental são necessárias e urgentes, porém a
parcialidade da proposta e a arbitrariedade na proposição do PL nos fazem temer
pelo retrocesso ambiental e político no estado de Minas de Águas Gerais.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 27/10/2015.
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