Ecumenismo
e prática da justiça agradam a Deus
Por frei Gilvander Moreira[1]
Atualmente,
diante de tanto fundamentalismo, moralismo, intolerância, ódio despejado no
tecido social e preconceitos com relação à multiplicidade de igrejas e à
diversidade de religiões, faz bem olharmos para a experiência das primeiras
comunidades cristãs, pois elas buscavam colocar em prática um ecumenismo
libertador com prática da justiça. Pode parecer anacronismo falar em ecumenismo
nas primeiras comunidades cristãs a partir de Atos dos Apóstolos, na Bíblia, mas
se justifica, pois não existiu somente uma igreja cristã primitiva, mas muitas
igrejas cristãs primitivas se relacionando com pessoas de outras religiões,
inclusive.
Após
a experiência da ressurreição de Jesus Cristo, na década de 30 do 1º século da
era cristã, ao longo de muitas décadas, a partir das casas (oikia, em grego), várias igrejas-comunidades
foram se constituindo a partir da igreja-mãe de Jerusalém: igrejas da Samaria,
de Cesareia, de Antioquia, de Roma, de Corinto, de Tessalônica, de Filipos, da
Galácia, de Éfeso, de Colossas, de Esmirna, de Pérgamo, de Tiatira, de Sardes,
de Filadélfia, de Laodiceia, de Roma e muitas outras, nessas cidades e em
outras não registradas no Segundo Testamento bíblico, provavelmente. Eram igrejas
que buscavam cultivar o respeito ao diferente nas suas relações internas e
também na sua relação com outras igrejas que, mesmo sendo cristãs, tinham
ensinamento e práticas distintas. Assim sendo, podemos dizer que segundo a obra
de Lucas – Evangelho de Lucas (Lc) e Atos dos Apóstolos (At) -, as primeiras
comunidades cristãs tinham entre suas prioridades conviver de forma ecumênica.
As
primeiras comunidades cristãs buscavam a unidade entre elas com base na
diversidade e na pluralidade e regiam-se por um projeto de justiça social, de
comunhão, de convivência fraterna, de respeito mútuo, de partilha do pão e
oração. No livro de Atos dos Apóstolos há uma valorização da alteridade, do
outro injustiçado. É a partir do outro e, especialmente, do outro que é
injustiçado, que se analisa a realidade e se atua de forma emancipatória. Uma
convicção guiava todos/as: o Espírito Santo está em nós como está no outro (At
10,44-45). Não se estabelecia hierarquias entre as igrejas e nem entre as
pessoas religiosas. Buscava-se uma sociabilidade justa e de respeito mútuo,
onde a troca de experiências enriquecia a todos/as.
Identificamos
nove posturas ecumênicas nas primeiras comunidades-igrejas cristãs.
Uma delas é o desapego de doutrinas. Ser ecumênico significa desapegar-se de
doutrinas e colocar a vida humana – envolvendo também todos os biomas e os seres
vivos - acima de tudo. Isso era buscado pelos primeiros cristãos e cristãs. Segundo
Atos dos Apóstolos, o apóstolo Pedro teve a grandeza de se desvencilhar da
doutrina/lei da pureza e da impureza. Ele se desinstalou da capital Jerusalém,
onde nasceu e se desenvolveu a comunidade-mãe, e partiu para a missão no meio
dos injustiçados e discriminados. Conviveu por algum tempo com Simão, seu xará,
que era um curtidor de couro, considerado o mais impuro entre os impuros. Convivendo
com os considerados impuros e, por isso, rejeitados, Pedro empreende um bonito
processo de conversão. Pedro foi ao encontro do oficial militar romano
Cornélio, mas teve de justificar sua conduta perante a igreja-mãe, em Jerusalém
(At 11,1-18). Pedro arcou com as conseqüências da sua postura aberta e
inculturada. Voltando a Jerusalém, “foi encostado na parede” e interrogado.
Dois grupos se enfrentaram: de um lado, os apóstolos e irmãos da Judeia, os apegados
à circuncisão, censuravam Pedro por ter entrado em casa de incircuncisos e
comido com eles (At 11,3). Do outro lado, o próprio Pedro, com a experiência do
Pentecostes dos gentios (At 10,44.47) no coração e na mente (At 11,17).
Pedro
teve de partilhar sua experiência de Deus vivida no meio dos gentios, ignorados
e rejeitados. O autor de Atos dos Apóstolos registra que a conversão do
apóstolo Pedro contribuiu para a conversão da Igreja-mãe, a de Jerusalém (At
11,4-18). Por três vezes Pedro ouviu: “Não chame de impuro o que Deus
purificou” (At 11,9); e por três vezes esse acontecimento é narrado em Atos dos
Apóstolos. Isso mostra a interpretação rigorosa que alguns faziam das leis, e
aponta a barreira que devia ser superada. As primeiras comunidades cristãs
sofriam no próprio corpo as conseqüências dramáticas da doutrina/lei da pureza
e da impureza. “Um povo inteiro” era marginalizado e considerado impuro,
principalmente as mulheres, os pobres, os doentes e os estrangeiros. O Espírito
de Deus aponta insistentemente em outra direção: para Deus não existe puro e
impuro. Para Deus tudo é sagrado, “é bom, muito bom” (Cf. Gênesis 1). O Deus de
Abraão, de Isaac e de Jacó ama a todos/as sem discriminação, não rejeita
ninguém.
Provavelmente
havia na comunidade cristã de Jerusalém um grupo radical e outro moderado. O
motivo da reprovação não foi o fato de Pedro batizar estrangeiros (At 10,44-48),
mas a entrada de Pedro em casa de uma pessoa pagã, considerada impura, e a
refeição comum de ambos. Em sua defesa, Pedro acentua a iniciativa divina, e os
de Jerusalém acabam por abrir-se à ação do Espírito no meio dos injustiçados
(At 11,18).
O
episódio do militar Cornélio ocupa um lugar de destaque em Atos dos Apóstolos:
foi uma antecipação da “Assembléia de Jerusalém”, em At 15,1-35, que levou à
superação da maior barreira: a circuncisão, e preparou as missões do apóstolo Paulo
(At 15,36–19,20). Cornélio representava o Império Romano e o modo como Lucas
achava que as pessoas deviam comportar-se em relação ao império. O oficial
romano Cornélio não se fechou e nem pôs condições. Pedro falou e ele ouviu
atentamente o Evangelho de Jesus Cristo. Para Lucas, não era impossível que
funcionários públicos do império romano se convertessem e, assim, pusessem
serviços e estruturas do império à disposição da irradiação da Palavra de Deus,
o projeto do evangelho de Jesus Cristo: todos vivendo dignamente. Com esse
exemplo, o autor de Atos dos Apóstolos espera conquistar para o projeto de
Jesus Cristo aliados no meio dos altos funcionários romanos. Enfim, agrada a
Deus quem pratica justiça libertadora e vive de forma ecumênica.
Belo
Horizonte, MG, 17/4/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1)
Diversidade
Religiosa - Professor Mateus – Ateísmo, na Escola Municipal Machado de Assis,
em Contagem/MG, 23/11/2017.
2)
Joaquim
Dias - Diversidade Religiosa – Kardecismo, na Escola Municipaç Machado de
Assis, em Contagem/MG, 23/11/2017.
3)
Pastor
José Barbosa - Igreja Batista - Diversidade Religiosa, na Escola Municipal
Machado de Assis, em Contagem/MG, 23/11/2017.
4)
Frei
Gilvander: Diversidade Religiosa - Igreja Católica, na Escola Machado de Assis,
em Contagem, MG, 23/11/17.
5)
Pai
Juvenal de Oxalá - Diversidade Religiosa – Umbanda, na Escola Muncipal Machado
de Assis, em Contagem, MG, 23/11/2017.
[1]Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação
pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos
Populares Urbanos; Professor na pós-graduação de Direitos Humanos e Movimentos
Populares no IDH, em Belo Horizonte, MG; e-mail: gilvanderlm@gmail.com– www.freigilvander.blogspot.com.br
- www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
Facebook: Gilvander Moreira III
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