A
prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 7 de abril de 2018, é um
acontecimento histórico diante do qual não há espaço para omissão ou pretensa
neutralidade. Quem não se posicionar será arguido pela história como cúmplice. Mesmo
sendo crítico da política de conciliação de classes, da inclusão pelo consumo,
da manutenção da política econômica concentradora de riqueza e renda, sem fazer
as reformas de base e de outras contradições que Lula, o PT e Dilma praticaram
ao longo de 13 anos no governo federal (2013 a 2016), uno-me a todas as pessoas
que têm senso de justiça para discordar da condenação e da prisão de Lula,
sobretudo da prisão em segunda instância, antes do trânsito em julgado, o que
ameaça a presunção de inocência e o direito à ampla defesa de toda pessoa.
Caso
a barbárie que é o capitalismo não provoque um apocalipse final para a
humanidade e para grande parte de todas as espécies vivas, ao estudar história,
as futuras gerações perguntarão a nós, seus pais ou avós: “O que estava
acontecendo no Brasil quando o ex-presidente Lula foi preso?” Se não tiverem
sido cúmplices, os pais e avós terão que dizer aos filhos/as e netas/os que o
contexto socio-econômico-político-cultural e religioso no qual se deu a prisão
de Lula era de um país tremendamente desigual e há 518 anos reproduzindo
relações sociais escravocratas do tipo Casa Grande versus senzala, dirão que se tratava da continuidade da colonização,
agora sob a hipócrita argumentação de
Estado Democrático de Direito.
Dirão
que em 2018, no Brasil, quem estava sendo preso e injustiçado não era apenas o
Lula, pois o Brasil era uma sociedade capitalista não apenas exploradora da
dignidade humana, mas superexploradora da dignidade humana e, pior, devastadora
de todas as fontes de vida: envenenadora da mãe terra pelo uso indiscriminado
de agrotóxico na agricultura empresarial, a do agronogócio; dizimadora das
nascentes de água, dos córregos, rios e lençóis freáticos; devastadora de todos
os biomas, que estão sendo tratorados para invadir os territórios das
comunidades originárias e tradicionais – indígenas, quilombolas e camponeses
dos mais diversos matizes. O capitalismo e os capitalistas, no Brasil – país
que deveria ser do povo brasileiro -, reproduzindo uma das maiores
concentrações fundiárias do mundo e, pior, crescente. Uma política econômica inviabilizando
a realização de uma reforma agrária popular e deixando “a ver navios” 14
milhões de desempregados, com trabalho intermitente análogo à situação de
escravidão. Sem controle do tráfico de drogas, mais de 70 mil jovens sendo
assassinados anualmente (700 mil em 10 anos). Após o impeachment da presidenta
Dilma, consumado em 31 de agosto de 2016, aconteceu sucessivamente um desmonte
de direitos sociais das classes trabalhadora e camponesas, direitos
conquistados à custa de muita organização e luta popular. Os direitos
trabalhistas foram aniquilados por meio da chamada reforma trabalhista, que, na
prática, foi aniquilamento da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Cerca
de 50% do orçamento do governo sendo sequestrado para reproduzir e ampliar uma
dívida pública que apenas em 2017 cresceu 14,3%, ultrapassando 3,5 trilhões de
reais e podendo chegar a 100% do PIB em 2022, dívida que já devia, segundo a
Constituição de 1988, ter sido auditada e demonstrada como “as veias abertas do
Brasil”. Direito à saúde e à educação indo para os ares por meio do congelamento
– melhor dizendo, amputação gradativa - de investimentos governamentais nas áreas
sociais por 20 anos. A maioria do poder judiciário nitidamente demonstrando
disparidade de tratamento ao lidar com crimes de empresários e políticos, os que
sustentam o status quo das
desigualdades sociais, muitos sendo abonados pelo braço jurídico do Estado.
Pesquisas
científicas nos informam que o agronegócio está fazendo mais de 600 mil pessoas
contraírem câncer a cada ano. Encarceramento de massas, em presídios superlotados:
mais de 700 mil presos quase todos empobrecidos, negros e de periferia, entre
os quais 40% são presos preventivamente, sem terem sido julgados ainda. Vários
ministros do Governo Federal golpista, mais de 200 deputados federais e dezenas
de senadores arrolados em crimes de corrupção sendo livrados das barras da
justiça por meio de foro privilegiado, algo nojento que coloca mais de 30 mil
pessoas inatingíveis pela justiça.
Ah!
Os pais e avós não poderão esquecer que no Brasil, em 2018, o povo brasileiro –
206 milhões de pessoas – estava anestesiado pela imprensa midiática, grande latifúndio
de poucas famílias oligárquicas. Essa mídia com imenso poder econômico e
tecnológico disseminava a mentira, a criminalização dos movimentos populares e
de quem aguerridamente defendia os direitos humanos. A ideologia dominante
imperava sempre invertendo as relações sociais: afirmando os oprimidos como
opressores e apresentando os opressores como se fossem oprimidos. Enfim, em uma
sociedade capitalista com classes antagônicas, com uma elite controlando o
Estado – poderes executivo, legislativo, judiciário – as terras, o capital
financeiro e a mídia. Caso não tenham sido mortos antes do tempo, os pais e
avós das próximas gerações deverão ainda dizer, por fidelidade à verdade, que
vários políticos profissionais sobre os quais existem fartas provas de crimes –
malas de dinheiro, áudios comprometedores etc. – continuam intocáveis e
protegidos pelo poder judiciário. Uns, embora com provas contundentes, não foram
punidos e nada recaíram sobre eles, mas outros, condenados sem provas. Nesse meio, muitas decisões
judiciais foram tomadas para fortalecer o status
quo capitalista, tal como o impeachment
de Dilma Rousseff, sem prova de crime de responsabilidade. O congresso
brasileiro destituiu Dilma como se no Brasil houvesse parlamentarismo por voto
de desconfiança. Era apenas o começo de um golpe que se desdobrou na prisão de
Lula e que seguirá até a classe trabalhadora e camponesa se rebelar
massivamente.
Nesse
contexto, para seguir fortalecendo o poderio da Casa Grande sobre as novas
senzalas, tornou-se necessário, segundo a elite que comanda o Estado brasileiro,
condenar sem prova e prender Lula. Cumpria-se, assim, justiça dos doutores da
lei e de certos tipos de fariseus. Porém, o Evangelho de Mateus alerta: “Se a
justiça de vocês não superar a justiça dos doutores da lei e dos fariseus,
vocês não entrarão no reino dos céus” (Mateus 5, 20). Dom Angélico Sândalo, ao
lado do Lula, poucas horas antes de ele se entregar para ser preso, pôs o dedo
em uma das feridas: “No Brasil, a maior parte da imprensa está a serviço dos
poderosos. Os pobres clamam por direitos e por respeito”.
Entretanto,
a história demonstra que os vencedores não terão a última palavra e serão
varridos da história. Segundo o livro de I Reis 21, na Bíblia, o rei Acab e a primeira
dama Jezabel, em meados do século IX antes da era cristã, para roubar as
pequenas propriedades dos camponeses da época, tal como Nabot, tiveram que
difamar, criminalizar, mentir e engendrar falso julgamento e até matar
camponeses, como Nabot, um pequeno agricultor. Mas surgiu, possuído pela ira
santa, o profeta Elias para desmascarar a violência que tinha sido cometida. Os
que mandaram prender e assassinar Jesus de Nazaré comemoraram, mas, após três
dias, a partir de uma mulher, Maria Madalena, que muito amava Jesus, irradiou-se
por todo o mundo a mensagem de ressurreição do projeto de fraternidade, justiça
e paz para todos e, e entre todos e tudo. Não podemos nos curvar diante da
injustiça. Assim como há o direito de legítima defesa, também há o direito
fundamental e o dever à desobediência civil até que triunfe a construção de uma
sociedade justa, solidária, sem preconceitos, amorosa e sustentável
ecologicamente. No momento, predominam os violentos, mas eles passarão, pois
das trevas da injustiça está sendo gestada uma nova aurora, sob a inspiração de
Marielle Franco, Margarida Alves, Irmã Dorothy, Chico Mendes e milhares de
outros/as lutadores/ras do povo. Enfim, justiça da Casa Grande não é justiça,
pois para ser justiça precisa ser a partir da ética e da alteridade muitas
vezes violentada. Preparemos um futuro justo, pois as próximas gerações têm
direito.
Belo Horizonte,
10/4/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG.
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
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