Autolicenciamento?
Mineração zero?
Por Gilvander Moreira[1]
Em Belisário, no município de Muriaé, na zona da mata mineira, frei Gilberto Teixeira foi ameaçado de morte por estar na luta junto do povo para impedir mineração no entorno do Parque Serra do Brigadeiro. Divulgação / http://www.domtotal.com |
Sentindo-me corresponsável pelos
destinos do povo, da mãe terra, da irmã água, da biodiversidade e de todos os
seres vivos, no dia 29 de março último (2019) voltei à Assembleia Legislativa
de Minas Gerais, em Belo Horizonte, para participar de mais uma Audiência
Pública da Comissão dos Direitos Humanos, sobre a violência, o terror e o
pânico que a mineradora Vale, com parceria do Estado de Minas Gerais,
está causando a mais de nove mil pessoas em Barão de Cocais, onde a barragem
Sul Superior, com seis milhões de metros cúbicos de rejeitos, na mina de Gongo
Soco, está no nível 3 (o máximo de risco de rompimento). Centenas de famílias
já foram tiradas de suas residências e empurradas para quartos de hotéis ou acolhidas
em casas de parentes em cidades da região. Já foi feito simulado para ensinar o
povo a correr para se salvar. Dizem que com o rompimento já anunciado da
barragem da mina de Gongo Soco a lama tóxica (rejeitos de mineração) pode
chegar a sete metros de altura no centro de Barão de Cocais, uma cidade
histórica. Amigos e parentes não visitam mais quem mora na área de risco na
cidade. Imóveis estão sendo fortemente desvalorizados em Barão de Cocais,
Itabira, Congonhas, Brumadinho e em tantas outras cidades mineiras, povoados e
locais de vida e trabalho que podem ser invadidos pela lama tóxica de barragens
- “bombas relógios” - construídas por mineradoras.
Ouvi atentamente todos os depoimentos, as
denúncias, reivindicações e apelos. Entretanto, algumas coisas me causaram
estranheza. Primeiro, todos, sem dó – com acerto -, criticaram com veemência a mineradora
Vale, mas poucos falaram explicitamente que os crimes e tragédias estão sendo
perpetrados há décadas, com licenças e fomento do Estado. Digo licença,
conivência e cumplicidade também dos poderes executivos municipais e estadual
(incluem-se aí os vários governos
estaduais ao longo dos anos), poderes legislativos municipais e estadual e o
poder judiciário, com a complacência, em alguns casos, do Ministério Público,
inclusive.
O último superintendente do IBAMA/MG,
demitido após dar exemplo de boa conduta na Câmara de Atividades Minerárias
(CMI), do Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), Júlio Grillo, bradou
reiteradas vezes que, nos últimos 30 anos, o Estado de Minas Gerais esteve a
reboque das mineradoras. E disse a verdade: todos os governos, sem exceção, nos
últimos 25 a 30 anos foram cúmplices da mineração devastadora em Minas.
Enquanto não houver de fato equilíbrio
na composição dos órgãos colegiados de licenciamento ambiental, nenhum projeto
de interesse das mineradoras será indeferido ou alterado, pois mais de 80% dos
representantes que estão, por exemplo, na Câmara de Atividades Minerárias são
representantes de entidades parceiras das grandes mineradoras: IBRAM[2], FEDERAMINAS[3],
CREA[4],
ANM[5], SINDIEXTRA[6],
SEDECTES[7],
SEGOV[8],
SECCRI[9] e CODEMIG[10]. De
41 projetos de mineração apreciados nos últimos dois anos, 40 foram aprovados
com a quase totalidade dos votos, exceto os votos contrários da ambientalista
Maria Teresa Corujo, representante da sociedade civil, do representante citado
do IBAMA/MG e, às vezes, da conselheira do CEFET/MG.
Essa realidade demonstra que os crimes
continuados e anunciados não são apenas crimes da Vale, mas também do Estado de
Minas Gerais, que perpetua o atual desequilíbrio da representação, como também
emite compulsivamente pareceres favoráveis a tais empreendimentos, orientando
seus conselheiros a fecharem posição conforme interesses das mineradoras.
Injusto também deixar representante da
Vale falar em audiências mais tempo do que aqueles que exercem o contraditório.
As oitivas da Vale deveriam ser direcionadas especialmente às investigações e
inquéritos policiais e do Ministério Público, como da Justiça. É nojento ouvir
ou ler as falas de representantes da Vale e de outras iguais - em reuniões,
programas de rádio e TV, em veículos de comunicação impressa e digital -, sobre
paliativos que estão fazendo e promovendo a distribuição de migalhas, por
meio de ações emergenciais sobre violências atrozes que a própria mineradora
e o Estado cometeram.
O fato é que com um exército de 70 mil
“soldados”, sendo cerca de 95% terceirizados, a Vale está em 30 países fazendo
guerra contra os povos, a mãe terra, a irmã água, os biomas e todos os seres
vivos. No Brasil, Minas Gerais é o maior foco das suas arbitrariedades.
Nos últimos 50 a 60 anos de intensa
atividade em Minas Gerais, a mineração atingiu o colapso das condições
socioambientais objetivas de vida de vastas regiões do estado. O nível de
impactos ultrapassa em muito qualquer possibilidade de desenvolvimento socioambiental
harmônico, responsável e equilibrado. O cenário aterrador está a exigir uma
moratória da mineração em Minas Gerais e em outros estados que reproduzem este
modelo devastador na íntegra. Ou o povo e o estado assumem e tomam atitudes
para mudar radicalmente esse ritmo e modus
operandi das mineradoras, ou continuarão a remendar um modelo que, a
olhos e lágrimas de não poucos, ultrapassou os limites da decência e da
dignidade das pessoas, do ambiente e até mesmo de trabalhadores que sobrevivem
da atividade minerária. Está se tornando imoral trabalhar nessas grandes
mineradoras.
A Mineração Zero e em de decrescimento
planejado deve ser o freio de arrumação sem o qual a irresponsabilidade
das autoridades e a volúpia de um mercado idolatrado continuará a causar danos
socioambientais, sofrimento e poderá semear a violência espontânea como
resposta à situação de caos e impunidade em que fomos lançados a partir dos
desastres-crimes da Samarco/Vale/BHP, em 2015, e da Vale, em 2019, todos com a
cumplicidade do Estado. Tal situação vem se agravando com a publicação diária
das revelações que indicam a falência do modelo econômico de
exploração/exportação iniciado no século XVI e da instauração do estado de emergência
de uma região central efetivamente sitiada, nas bacias dos rios Paraopeba,
das Velhas, do Carmo e do Piracicaba, especialmente.
Diante disso, exigimos que os/as
deputados/as da Assembleia Legislativa de Minas revoguem a Lei que o
ex-governador Fernando Pimentel enviou para a Assembleia Legislativa, em regime
de urgência, durante o cometimento do crime/tragédia da Samarco/Vale/BHP,
iniciado com a devastação de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Gesteira,
Barra Longa e todo o rio Doce, a partir de 05 de novembro de 2015. Essa lei flexibilizou
ainda mais os processos de licenciamento ambiental no estado de Minas Gerais.
Esvaziou ainda mais a participação popular no COPAM, criou uma superintendência
de projetos prioritários e “estratégicos” – para os interesses das
mineradoras -, retirou o Ministério Público das câmaras especializadas do COPAM,
a exemplo da de Atividades Minerárias. Enfim, legalizou uma espécie de
autolicenciamento ambiental, pois com quase todas as cadeiras na Câmara de
Atividades Minerárias ocupadas por entidades aliadas das mineradoras e por
secretarias que obedecem aos ditames do Governo de Minas, tudo o que as
mineradoras pleiteiam é aprovado, injustamente.
Exigimos também a suspensão por tempo
indeterminado de todas as licenças ambientais de todas as grandes minas que
foram aprovadas nesses processos imorais – autolicenciamento na prática – até
que se façam auditorias realmente independentes e não por empresas parceiras
das mineradoras ou da confiança dos agentes do Estado a seu serviço.
Após deixarem engavetado por três anos o
Projeto de Lei “Mar de Lama”, estranhamos a pressa com que a grande maioria
dos/as deputados/as da Assembleia Legislativa aprovou, na véspera do carnaval
de 2019, um Projeto de Lei para aumentar a segurança de barragens. Saudado por
muitos como muito bom, eis que traz no seu teor, entretanto, um vírus capaz de
atender aos interesses das grandes mineradoras: manteve-se a delegação às
mineradoras de serem as responsáveis por fazer o autocontrole, o
automonitoramento e avaliações que não poderiam substituir o papel
indispensável do Poder Público na arbitragem, avaliação e poder de polícia
sobre a gestão e a segurança das barragens - haja vista as protelações
ocorridas em Fundão, na barragem de Córrego do Feijão, previamente à ocorrência
dos respectivos crimes/tragédias.
Esse absurdo deve ser interrompido já,
pois sabemos que enquanto as mineradoras puderem contratar as empresas que
atendam aos seus interesses para elaborar e assinar laudos, a verdade será
sempre ocultada. “Quem paga a banda escolhe a música”.
Exigimos, assim, que a Assembleia
Legislativa de Minas Gerais altere este ponto na Lei “Mar de Lama” que visa
garantir segurança nas barragens que as mineradoras insistem em continuar
construindo. Exigimos que todos os processos de mineração de ferro com
beneficiamento a úmido sejam suspensos pelo Estado, por força de lei e outras
medidas cabíveis. Exigimos, pois, e clamamos, que a vida seja respeitada
em toda a sua biodiversidade e que as comunidades possam seguir suas vidas com
a possibilidade de vislumbrar um futuro promissor para seu povo e para as
próximas gerações. Não dá mais para tolerar essa ganância opressora do capital
e dos capitalistas em detrimento de uma sociedade do bem viver e conviver, em
que todas e todos tenham respeitada sua dignidade humana e possam viver com
saúde, bem-estar, harmonia, paz e justiça social, agrária, urbana e ambiental.
Chega de mineração!
Belo
Horizonte, MG, 03/4/2019.
Obs.: Abaixo, vídeos
que versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Rompimento de barragens: Governança ambiental falha/Profa. Andréa
Zhouri/vídeo 1/UFMG/26/1/19
2 - Estado de MG a serviço das mineradoras/Prof. Dr. Klemens/UFMG/Vídeo
1 - 26/1/2019.
3 - “Licenciamento ambiental decente é necessário”/Professor Dr.
Klemens/UFMG/ Vídeo 2 – 26/1/2019.
4 - CRIME DA VALE/ESTADO EM BRUMADINHO/MG:
IRRESPONSABILIDADE/Prof.Klemens/Profa.Andréa Zhouri/26/1/19
5 - Palavra Ética com Raquel Oliveira, do GESTA/UFMG: Por Justiça
socioambiental. 29/11/2012
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas;
assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Instituto Brasileiro de Mineração.
[3]
Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado de Minas Gerais.
[4]
Conselho Regional de Engenharia e Agronomia.
[5]
Agência Nacional de Mineração.
[6]
Sindicato da Indústria Mineral do Estado de Minas Gerais.
[7]
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior.
[8]
Secretaria de Estado de Governo.
[9]
Secretaria de Estado de Casa Civil e de Relações Institucionais.
[10]
Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais.
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