Foto montagem: Nádia A. O. Sene. |
Advento, palavra de Deus no “deserto” e não nos palácios. Por Gilvander Moreira[1]
Advento. Ventos natalinos soprando. De onde e para onde? Que tipo de vento? Para não sermos enleados no turbilhão e no redemoinho do consumo exacerbado que, em uma sociedade capitalista, a idolatria do mercado provoca no final de cada ano, faz bem recordarmos na Bíblia, o Evangelho de Lucas (Lc), especialmente Lc 3,1-6. Os dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas referem-se ao nascimento e às infâncias de João Batista e de Jesus de Nazaré. Provavelmente, em uma primeira versão, o Evangelho de Lucas iniciou no capítulo 3 mostrando inicialmente o contexto no qual a Palavra de Deus é dirigida a João, que se tornará o Batista, o precursor de Jesus de Nazaré. Eloquente é que o evangelista Lucas faz questão de abrir o Evangelho mostrando quem estava nos poderes político e religioso na época em que “a palavra de Deus foi dirigida a João, no deserto” (Lc 3,2b). Lucas informa: “Fazia quinze anos que Tibério era imperador de Roma. Pôncio Pilatos era governador da Judeia. Herodes governava a Galileia. O Tetrarca Filipe reinava sobre a Itureia e a Traconítide. E o tetrarca Lisânias reinava sobre a Abilene” (Lc 3,1).
Abre-se a primeira versão do Evangelho de Lucas dizendo nas entrelinhas: Atenção! Veja quem estava no poder político na época em que “a palavra de Deus foi dirigida a João no deserto” (Lc 3,2b)! O imperialismo romano grassava: escravidão e injustiça tributária era o que imperava. O imperador Tibério dominava sob poucos questionamentos mais de 60 milhões de pessoas já por quinze anos. Tempo longo de subjugação dos povos das colônias, entre os quais estavam os povos da Palestina onde João Batista e Jesus de Nazaré nasceram e exerceram missão libertadora. O rei Herodes Agripa, dez anos mais tarde, escreveu ao Imperador Calígula traçando o perfil de Pilatos: "Pilatos é naturalmente inflexível e intolerável, corrupto, atos de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassino de inocentes e violento selvagem." Essa informação histórica nos leva a pensar que provavelmente Pilatos não foi um governador fraco que “lavava as mãos” diante de situações complexas e espinhosas. Pilatos era violentador de direitos do povo. Às vezes, se confundem os três reis Herodes que dominaram o povo na época de João Batista, de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, pois os três Herodes aparecem no Segundo Testamento bíblico com o mesmo nome. O historiador que participou da Guerra Judaica que levou à destruição do Templo de Jerusalém e da cidade de Jerusalém por volta do ano 70 no século I, Flávio Josefo (37-100 d.C.) nos informa que o primeiro Herodes, chamado o Grande, (des)governou durante 33 anos toda a Palestina de 37 a 4 a.C. Ele aparece no nascimento de Jesus. Ele mandou assassinar as crianças de Belém (Mt 2,1.16). Herodes, “o Grande”, era um idumeu estrangeiro, que antes de ser Rei da Palestina inteira, foi comandante militar da Galileia (47-37 a.C.). Ele enfrentou e matou Ezequias, o famoso líder dos revolucionários, que atuava na Galileia. O segundo Herodes, chamado Antipas, filho menor de Maltace e de Herodes, o Grande, (des)governou durante 43 anos a Galileia, a parte norte e fértil da Palestina, de 4 a.C. a 39 E.C. Ele aparece como cúmplice da morte de Jesus (Lc 23,7). Herodes Antipas foi o mandante do assassinato do profeta João Batista (Mc 6,14-29). O terceiro Herodes, chamado Agripa, (des)governou com ‘mão de ferro’ durante 4 anos toda a Palestina, de 41 a 44 d.C. Segundo o livro de Atos dos Apóstolos, Herodes Agripa perseguiu e violentou as primeiras comunidades cristãs, comunidades de pessoas oprimidas e exploradas (At 12,20). Ele foi o mandante do assassinato do apóstolo Tiago, irmão de João (At 12,2). O tetrarca Filipe (des)governou sua região durante 38 anos, de 4 a.C., até 34 d.C. A designação ‘tetrarca’ se refere, originalmente, ao que reinava sobre a quarta parte de um determinado território. Controlavam seus ‘feudos’. Eram coronéis cada um em sua região, para dizer em uma linguagem de Victor Nunes Leal, autor da clássica obra Coronelismo, Enxada e voto. Segundo Flávio Josefo, as regiões de Pereia e Galileia davam à corte de Herodes cerca de 200 talentos por ano[2]. Um ‘talento’ indica uma grande soma de dinheiro. 01 talento = 26 Kg e 436 gramas (Cf. Mt 18,24). Segundo cálculos de alguns estudiosos, um trabalhador como aquele da ‘parábola dos trabalhadores da vinha’, de Mt 20,1-16, que recebeu um denário por um dia de trabalho, deveria trabalhar mais de quinze anos para conseguir juntar um único talento.
Após apresentar quem eram os poderosos do poder político, o evangelista Lucas faz questão de apresentar quem eram os poderosos do poder religioso: “Anás e Caifás eram sumos sacerdotes” (Lc 3,2a), não contemporaneamente. Anás, filho de Set, foi nomeado sumo sacerdote pelo governador romano P. Sulpício Quirino (Cf. Lc 2,2) no ano 6 d.C., e se manteve no cargo até que foi deposto no ano 15 d.C. Seus sucessores foram: Ismael, filho de Fiabi (ano 15 d.C.,); Eleazar, filho do próprio Anás (anos 16 e 17); Simão, filho de Camit (anos 17 e 18) e finalmente, José, genro de Anás, apelidado de Caifás, foi sumo sacerdote de 18 a 36 d.C. O quarto evangelho menciona Caifás duas vezes, como "o que era sumo sacerdote naquele ano" (Jo 11,49; 18,13b), isto é, no ano da morte de Jesus. Deve-se notar também que se atribui a Anás o título de "sumo sacerdote" (Jo 18,13a.19). Em At 4,6, Lucas volta a mencionar Anás como "sumo sacerdote", enquanto que Caifás aparece simplesmente como um dos "dos que pertencia à família de sumos sacerdotes”. Segundo o historiador Flávio Josefo, depois de perder o sumo sacerdócio, nos bastidores, Anás continuou a ser, por muitos anos, o homem forte da aristocracia sacerdotal e do Sinédrio, poder religioso teocrático comandado pelo sumo sacerdote.
É imprescindível notar que “a Palavra de Deus foi dirigida a João (o Batista) no deserto” (Lc 3,2b), em uma época em que o povo estava sendo violentado nos seus direitos e subjugado pelo imperialismo romano, por reis repressores e opressores e por chefes do poder religioso que lamentavelmente eram cúmplices das opressões dos poderes político e econômico. É nesse contexto que “... a Palavra de Deus foi dirigida a João Batista, no deserto” (Lc 3,2). Quem era o João a quem a palavra de Deus foi dirigida? João se tornou um grande líder popular e religioso que convocava o povo para empreender um radical processo de conversão e se comprometer com a superação das desigualdades sociais (Lc 3,3-5). Onde a palavra de Deus foi ouvida? No ‘deserto’! Não em deserto geográfico onde o sol é escaldante e só existe areia, mas nos desertos sociológicos e existenciais: nas periferias, nas ocupações, no meio dos camponeses, nas aldeias indígenas, nos territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais, no meio dos milhões de pessoas que estão em situação de rua, no meio do povo negro, nos terreiros e nos centros religiosos de matriz afrobrasileiras, todos violentados pelos que defendem “a ordem e o progresso”, cultuam a teologia da prosperidade e abusam do nome de Deus para acumular capital e tranquilizar consciências que elegem fascistas para o poder político.
João Batista terminou sendo martirizado, pois se doou integralmente à causa da construção de uma sociedade sem desigualdades sociais, econômicas e culturais. Após nascer sem-terra, sem-teto, em uma colônia, sob o imperialismo e na contramão dos podres poderes, Jesus de Nazaré experimentou no seu próprio corpo as agruras e as violências perpetradas pelo imperialismo romano, pelos reis dominadores e por um sinédrio (poder religioso) encastelado em mordomias e cúmplices de opressões políticas e econômicas. Ao saber que João Batista tinha sido preso (Mc 1,14) e posto em uma penitenciária de segurança máxima, Jesus de Nazaré iniciou sua missão pública que visava libertação integral de todos e tudo, o que passa pela construção de uma sociedade justa, solidária, democrática politicamente, sustentável ecologicamente e ecumênica religiosamente. Jesus de Nazaré viveu a vida consolando os aflitos e incomodando os opressores. Os oprimidos da época (pastores e magos) viram naquele menino que nascia em uma ocupação na periferia da cidadezinha de Belém Deus nos visitando (Lc 2,1-20), Deus conosco, em nós e em todas as pessoas, sem exceção! Enfim, feliz quem busca ouvir a Palavra de Deus nos ‘desertos’ de hoje, junto aos João Batistas da atualidade, e vira as costas ao que é ecoado dos palácios do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), do capital (Empresas transnacionais), do poder midiático e dos templos luxuosos que mais tramam violência contra o povo e todos os biomas do que constroem políticas públicas para o bem comum. “Toda carne verá a salvação” (Lc 3,6), pontua o evangelista Lucas. Ou seja, ninguém pode ser excluído e nem discriminado do projeto do Deus da vida, que é o projeto de Jesus Cristo: vida para todos e tudo, e convivência respeitosa. Não basta ter natal feliz. É preciso sermos natal, presença da luz e da força divina nos ‘desertos’ de hoje e ao lado dos Joãos de hoje.
BH, 11/12/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] JOSEFO, Flávio. Ant. XVIII, 11, 4, n. 318; cf. Guerra I, 33, 8, nn. 668-669.
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