Natal
de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!”
Por Gilvander Moreira[1]
Reprodução: Cartão de Natal do artista Banksy: muro de Israel no caminho da Sagrada Família. |
É tempo de natal e de
virada de ano. Sob a
avalanche do natal do mercado idolatrado, necessário se faz resgatar o sentido
bíblico do Natal de Jesus Cristo, que é revolucionário. Faz bem entendermos
a narrativa bíblica do Evangelho de Lucas (Lc 2,1-20) que versa sobre o
nascimento do galileu que se tornou Cristo, que testemunhou um jeito de
conviver libertador e salvador. O
Evangelho de Lucas não é crônica jornalística escrita sob o calor dos fatos. Escrito
na década de 80 do século I da era cristã, o Evangelho de Lucas é Teologia da
História a partir dos oprimidos e injustiçados e da sua fé na ressurreição de
Jesus Cristo. Que beleza que os opressores não exterminaram o movimento popular
e religioso de Jesus! Fizeram uma grande sexta-feira da paixão, mas as
discípulas e os discípulos de Jesus Cristo, experimentando que Ele vivia nelas
e neles, construíram um domingo de ressurreição com pão, terra e liberdade para
todos/as. Em algum lugar, nas periferias do
mundo, do ventre de uma mulher, uma criança quer vir à luz... Uma estrela
aponta para um cantinho, em um pedacinho de chão... "Olha a glória de Deus
brilhando!" Não morre a utopia da vida vencendo a
morte, do amor vencendo o ódio e da justiça sobressaindo sobre a injustiça. Para o evangelista Lucas
foram os pastores – os trabalhadores mais discriminados da época - os que, por
primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano. Quando
nasceu Jesus Cristo? Onde? Em que contexto? Na presença de quem? E foi visitado
e acolhido por quem?
Jesus nasceu em tempos de
imperialismo romano com o imperador Augusto baixando decreto para aumentar o
peso da tributação nas costas do povo, além de manter a superexploração, por
meio da escravidão, a quem eram submetidos mais de 60 milhões de pessoas nas
muitas colônias do Império Romano. Diz o evangelista Lucas: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou
um decreto ordenando recenseamento em todo o império” (Lc 2,1). Como o pai
de Jesus, José, era descendente de Davi e natural de Belém, ele teve que viajar
da cidadezinha de Nazaré, na Galileia, até Belém, na Judeia, mais de 120
quilômetros, a pé ou montando em jumento, com sua esposa Maria que estava na
iminência de dar à luz (Lc 2,3-5). Em uma colônia dominada pelo imperialismo
romano, por governadores submissos aos interesses imperiais e com a
cumplicidade de um poder religioso – o sinédrio – que usava o nome de Deus para
excluir e marginalizar a maioria do povo, como trecheiro, estradeiro, “irmão de
rua”, migrante, retirante, sem-terra, sem-teto, refugiado, migrante e judeu da
periferia, nasceu Jesus Cristo na periferia de Belém, pequena cidade do interior.
Jesus não nasceu em Jerusalém nem na capital do império, nem em Brasília, nem
na Avenida Paulista e nem nos Estados Unidos. Maria e José tiveram que ocupar
um curral, porque não encontraram hospedagem em Belém, certamente porque não
tinham como pagar hotel nem hospital particular. Ao descrever o
nascimento de Jesus, o evangelista Lucas estabelece estreito paralelismo com a
morte e ressurreição do Messias. De fato, em Lc 2,7a se diz que “Maria enfaixou Jesus e o colocou na
manjedoura”; em Lc 23,53a afirma-se que “José de Arimateia enfaixou o corpo de Jesus e o colocou em um sepulcro”.
Ou seja, o evangelista aponta que a missão de Jesus será espinhosa, terá que
enfrentar a violência de podres poderes e de opressores e, por isso, será
condenado à pena de morte, mas ressuscitará.
Jesus nasce no meio dos pastores (Lc
2,8), os injustiçados e execrados pela classe dominante onde estão os senhores
“de bens” que por cumplicidade reproduzem a desigualdade social. Entre todos os
segmentos da classe trabalhadora e camponesa, os pastores e as pastoras eram os/as
mais explorados/as, considerados/as impuros/as, principalmente porque não
respeitavam as propriedades privatizadas. Para os pastores e pastoras, o
território era um bem comum e, por isso, levavam os rebanhos que cuidavam para
pastar em outras propriedades. Assim eram considerados invasores de
propriedades privadas. Para os pastores e as pastoras, “Terra de Deus, terra de
irmãos!”.
“Um
anjo de Deus apareceu aos pastores” (Lc 2,9), não apareceu ao imperador,
nem ao governador, nem a nenhum sacerdote e nem a nenhuma pessoa considerada
pura, integrada à sociedade dos “de bens”. São esses pastores e pastoras que reconhecem o nascimento do menino Deus e vêm ao encontro daquele que
iria testemunhar um caminho de libertação para todos/as e tudo, a utopia “vida
e liberdade para todos/as e tudo” (Jo 10,10).
Nos Evangelhos de Lucas e de Mateus, o
nascimento de Jesus não é apresentado de forma neutra diante das contradições e
desigualdades sociais. José, Maria, Jesus, os evangelistas e as primeiras
comunidades cristãs (autoras dos Evangelhos) têm lado: o lado dos oprimidos e
injustiçados. A luz divina foi experimentada pelos pastores e pastoras, em uma
noite escura (Lc 2,8-9), – como a noite que se abateu sobre o povo brasileiro
com a ascensão do fascismo e de um capitalismo ultraliberal. A luz e a força
divina surgiram para aqueles e aquelas que eram os/as mais rejeitados/as pela
sociedade hipócrita e cínica. Nas primeiras comunidades cristãs se lia naquela época o texto
do profeta Isaías que dizia: “O povo que
andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma
terra sombria” (Is 9,1). A primeira mensagem do anjo aos pastores e pastoras foi:
“Não tenham medo! Eis uma ótima notícia
para todo o povo explorado. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um
Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,10). Essa mensagem ganha
eloquência se recordarmos que quando se elevava um novo imperador ou rei,
arautos do império anunciavam a entronização aclamando o que estava sendo
entronizado como novo Salvador (soter,
em grego) e Senhor (Kurios, em
grego).
As primeiras comunidades cristãs fazem
uma revolução copernicana e subvertem a ideologia dominante que divinizava o
poder e quem estava no poder. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ não será mais o imperador e
nenhum rei. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ será aquela criança que nasceu no meio dos
explorados. O anjo alerta: só quem consegue se misturar com os periféricos e
com eles conviver consegue experimentar o divino se revelando no humano a
partir dos porões da humanidade (Lc 2,12). Quem fica distante dos empobrecidos
e empobrecidas acumula preconceitos e se desumaniza. Diz o evangelista Lucas que
os anjos fazem festa ao experimentar a glória de Deus e a paz (shalom, em hebraico) no meio do povo (Lc
2,14). A glória de Deus brilha quando o humano em todas as pessoas é respeitado
e valorizado. Paz como fruto da justiça, shalom
acontece quando os governos com organização popular efetuam mudanças
estruturais para superar a desigualdade social e promover a justiça social com
respeito à imensa diversidade cultural, aos direitos da natureza, dos animais e
toda a biodiversidade existente no nosso país e no mundo. “Os pastores da região foram a Belém, às pressas, participar do
acontecimento” (Lc 2,15-16); não foram a Jerusalém, nem a Brasília, nem às
catedrais do deus mercado e nem ao Império do capital. “E todos que ouviam os pastores ficaram maravilhados” (Lc 2,18). Quem
não ouve, não respeita e nem participa da luta dos/as sem-terra, dos/as
sem-teto, dos/as migrantes, dos/as refugiados/as, dos irmãos e irmãs em
situação de rua, dos/as indígenas, dos/as quilombolas, das mulheres e dos
nossos irmãos e irmãs LGBTTQIs[2]
não conseguem compreender o divino se tornando humano a partir de Jesus Cristo.
Os pastores e as pastoras reconhecem o poder
popular nascido na periferia de Belém, cidade do rei e pastor Davi. “É de ti
Belém, a menor entre todas as cidades, que virá o Salvador” (Miq 5,1), bradava
a profecia inspiradora de Miqueias. Etimologicamente Belém (Betlehem, em hebraico), significa Casa do Pão. Belém é a cidade de Davi, o
menor entre os irmãos, aquele que organizou os injustiçados da sociedade para
lutar por um governo justo, popular e democrático. O verdadeiro “rei dos
judeus” não é violento e sanguinário como Herodes, é um recém-nascido, nascido
sem-terra e sem-casa e tendo que se exilar às pressas, como refugiado, para não
ser assassinado pelo poder repressor de plantão. Segundo o Evangelho de João, o
nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para todos/as (Jo 6,35-59). Os pastores
e as pastoras intuem com sabedoria que o poder alternativo, democrático,
participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos pequenos.
O natal trombeteado aos
quatro ventos pelos arautos do mercado idolatrado é um antinatal, abusa do nascimento
de Jesus Cristo para auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança,
viagens que resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões
de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças. Quem não se alia à luta por
direitos de sessenta por cento dos
brasileiros que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês não consegue
vivenciar o sentido sublime e profundo do Natal de Jesus Cristo, está sendo
mentiroso/a, pois não está abraçando o projeto de Jesus, o Cristo libertador e
salvador.
Não está em sintonia com o Natal de
Jesus Cristo quem reproduz, direta ou indiretamente, uma das maiores
desigualdades sociais do mundo: 1% mais rico, que abrange 1,2 milhão de brasileiros, com rendimento
médio superior a 55 mil reais por mês, no Brasil, em 2018. Quem é discípulo/a
do menino que nasceu como refugiado na periferia de Belém precisa insurgir ao
lado de toda a classe trabalhadora e camponesa e das forças vivas que lutam
pela superação de todas as injustiças. Ouçamos os/as anjos/as que nos dizem: “Não
tenham medo!” Os poderosos têm pés de barro. O menino Deus está vivo em nós na
luta por justiça social, justiça agrária, justiça ambiental, justiça urbana,
direitos humanos fundamentais.
Belo Horizonte, MG, 23/12/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais, Queers e Pessoas Intersex.
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