Sem ouvir o povo, Projeto de Lei 3601 abre espaço para privatização de terras públicas e devolutas em Minas Gerais: injustiça agrária e urbana!
“Terra de Deus, terra de irmãos”, lema da Campanha da Fraternidade de 1986.
Retirada de madeira em área de Cerrado no município de Grão Mogol: muito lucro para as empresas eucaliptadoras, destruição e pobreza para a região norte de Minas Gerais. Foto: Arquivo da CPT. |
De autoria do Deputado Luiz Tadeu Martins Leite (Tadeuzinho), do MDB, o Projeto de Lei 3601/2016 trata das terras públicas e devolutas estaduais, já passou por três comissões e está prestes a ser aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). O PL propõe a revogação da Lei nº 7.373, de 3 de outubro de 1978, da Lei nº 11.020, de 8 de janeiro de 1993, da Lei nº 14.313, de 19 de junho de 2002, e de parte da Lei nº 9.681, de 12 de outubro de 1988, que tratam, respectivamente, das terras públicas e devolutas estaduais, da legitimação e da doação dessas terras em zona urbana ou de expansão urbana, da isenção do pagamento de emolumentos por beneficiários de terras rurais e da concessão de terra devoluta. Muito grave revogar quatro leis que versam sobre terras públicas e devolutas sem discussão séria com a sociedade. É necessário pontuar algumas questões sobre o tema, a forma com que o projeto de lei foi feito e as consequências deste PL 3601. Segundo Estatísticas Cadastrais do INCRA, dados de 2014, o estado de Minas Gerais possui área de terras potencialmente públicas devolutas de 13.398.101 hectares (22,8%), quase todas elas griladas por fazendeiros e grandes empresas ‘reflorestadoras’ - na verdade, eucaliptadoras.
Mapa do Estado de Minas Gerais com microrregiões classificadas segundo a desigualdade de distribuição de terras pelo índice de Gini e o PIB agropecuário - 1996. Reprodução: https://politicaspublicas.almg.gov.br/temas/index.html?tagNivel1=8&tagAtual=8 |
Em grande parte situada nas regiões Norte e Nordeste de Minas Gerais, as terras públicas e devolutas estão ocupadas/griladas por grandes empresas monocultoras de eucalipto. Beneficiadas pela ditadura militar, na da década de 1970, estas empresas destruíram o Cerrado – mãe das águas -, impactaram de forma muito negativa a vida das Comunidades Tradicionais Camponesas e impuseram uma grande tragédia ao bioma do cerrado: monoculturas. O Cerrado destruído, terras comuns dos Povos Tradicionais exploradas pelas empresas, as fontes d’água em crescente escassez e a vida das famílias desestruturadas, muitas forçadas a sobreviver como migrantes temporários ou permanentes.
São as mesmas empresas eucaliptadoras, já tantas vezes denunciadas, seja pelas comunidades tradicionais ou movimentos sociais e também investigadas pelo Ministério Público, que demonstraram fortes esquemas de corrupção e grilagem de terra. Com contratos vencidos junto ao Governo de Minas, nos últimos anos, parte das empresas estão criando estratégias e artifícios legais para ‘legitimar-se” nas terras públicas e devolutas retificando e aumentando áreas, abrindo processos absurdos de usucapião, registrando em cartórios “direitos” hereditários sem documentos legais e judicializando demandas, entre outras formas. Tudo isso é inaceitável sob o signo da justiça agrária e da ética.
Se o PL 3601/2016 realmente representasse o “anseio popular”, como diz na justificativa do projeto, iria combater tais injustiças agrárias, citadas acima, e não beneficiar mais uma vez as grandes empresas eucaliptadoras que estão desertificando grande parte do estado de Minas Gerais e auferindo acumulação de capital à custa da vida dos povos camponeses e do bioma Cerrado. Para citar um exemplo, vejamos a tremenda injustiça anunciada no artigo 49 do PL 3601:
“Para fins de recebimento das áreas devolutas dos contratos de arrendamento que ainda se encontram na posse das empresas arrendatárias o Estado poderá, através do órgão competente, adotar medidas que visem à celeridade na resolução e arrecadação das áreas, incluindo, dentre outras: I – perdão de dívida das empresas arrendatárias; II – recebimento de áreas na situação de fato em que se encontrem; III – permuta de terras públicas, dominiais, devolutas ou arrendadas, para a consecução da política de que trata esta lei”.
Perdão de dívida das empresas arrendatárias? O perdão de dividas implica em renúncia de receitas o que está vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), sem a devida fonte de compensação. Recebimento de áreas na situação de fato em que se encontrem? Em relação ao passivo ambiental esta norma é contrária ao principio do "poluidor-pagador", que é uma norma de direito ambiental que consiste em obrigar o poluidor a arcar com os custos da reparação do dano por ele causado ao meio ambiente.
Sobre o Art. 52: cessão de terra pública a pessoas estrangeiras é antagônica à preferencialidade de concessão aos nacionais ferindo o princípio da soberania nacional e vedada pela lei de Aquisição de Terras Por Estrangeiros que não pode ser superior a 30% do território municipal.
Em um momento que o Estado de Minas Gerais tanto precisa de arrecadação, como poderá renunciar receitas e perdoar a dívida de grandes empresas do agronegócio que arrendaram terras públicas e não devolveram as terras? Como serão perdoados pelos graves passivos ambientais que causaram? Poderão ainda fazer a permutas das terras passando por cima das famílias camponesas e das famílias sem terras? Essas famílias devem ter prioridade no acesso às terras devolutas, conforme está assegurado na Constituição do Estado de Minas, inclusive.
Além deste, outros pontos do Projeto de Lei 3601 são extremamente contraditórios, abrindo brechas para que grandes empresas e latifundiários possam legitimar-se sobre o domínio das terras devolutas e ainda aumentar seus capitais em detrimento do bem comum.
Por fim, o PL 3601 está tramitando na ALMG sem debate com os Movimentos Sociais do campo e urbanos e sem ouvir os povos camponeses e os urbanos que são os diretamente afetados. As Comunidades Camponesas Tradicionais que vivem em situação de constantes conflitos agrários com os tais projetos não foram consultadas e estão alijadas mais uma vez da formulação de leis. O PL 3601 é exemplo de deputados a serviço dos grandes empresários, dos que já concentram riqueza, terras e dinheiro e, assim, promovem desertificação do cerrado e empobrecimento dos povos camponeses.
O objetivo não confessado do PL 3601 é privatizar as terras devolutas e públicas existentes em Minas Gerais, no campo e em áreas urbanas. Para os camponeses terra não é mercadoria. “Terra de Deus, terra de irmãos” era o lema da Campanha da Fraternidade de 1986. Logo, terra é bem comum e não pode ser sequestrada nas garras de poucas empresas.
No Substitutivo n. 2, com aprovação de três comissões, o art. 3 desconsidera a necessidade de preservação ambiental das terras devolutas. Isso é muito grave. Sem preservação, não teremos futuro, pois o processo de desertificação se intensificará. Não há inclusão do que prescreve o Decreto 47.289/2017 da Política Estadual para Povos e Comunidades Tradicionais. Isso é injusto. Para abrir brecha para os empresários do agronegócio, no art. 5º incluem “produtores rurais” onde deveria ser restrito a “trabalhadores rurais e urbanos e agricultores familiares”. O Art. 17 abre espaço para alienar acima de 100 hectares sem necessidade de ação discriminatória. Essa é outra brecha para privatização de terras públicas e devolutas em Minas Gerais. Repassar terras públicas estaduais e devolutas para a iniciativa privada sem autorização da Assembleia Legislativa, conforme prescreve a Constituição mineira, cheira legitimação de grilagem de terras.
Comunidades Geraizeiras na luta em defesa da Casa Comum. Foto: Arquivo da CPT. |
Reivindicamos que este projeto não seja votado e, sim, suspenso, até que seja exaustivamente discutido com os povos e comunidades camponesas, com o os povos urbanos, com os Movimentos Sociais e com toda a sociedade. E que os/as deputados/as da Assembleia Legislativa de Minas tenham a coragem de vir para o mundo real, no meio dos camponeses, do povo e debater as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade sustentável com justiça social, justiça agrária, justiça ambiental. Enfim, com respeito ao povo e à natureza.
Assinam essa Nota Pública:
Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG)
Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP)
Movimento Nacional dos Pescadores e Pescadoras Artesanais
Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)
Comunidades Tradicionais Geraizeiras Núcleo Tingui, Lamarão e Josenópolis
Coletivo Margarida Alves de Assessoria Jurídica Popular (CMA)
Coletivo São Francisco de Assessoria Jurídica Popular
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB)
Unidade Popular pelo Socialismo (UP)
Instituto DH - Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania.
Instituto DH - Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania.
Belo Horizonte, MG, 12 de dezembro de 2018.
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